Interrupção


- Do que você está falando? - Respondi o homem que entrou correndo. - Aconteceu algo?

- Você não é a dona deste lugar. - Ele apontou para Cere. 

- Não. - Ela se levantou orgulhosa. - Eu sou sua filha.

- Então eu não acredito que você possa fazer nada. - Seu rosto se fechou. 

- Termine o que veio falar. - Eu exigi. - De que perigo você está falando?

Seu rosto sério se contorceu em uma terrível risada e seus dedos ossudos apontaram para o meu rosto com escárnio. Todo o seu corpo parecia estar próximo de se quebrar ao meio, sua postura exagerada fazia suas costelas se espalharem em posições estranhas, um ombro levantado em cada direção como se fossem se separar a qualquer momento. Ele virou seu pescoço para Cere e em seguida para mim, ouvi um estalo terrível e ele fixou seus olhos incandescentes nos meus. Apesar de sua aparência monstruosa, havia algum tipo de entendimento entre nós, como se nós fossemos ambos miseráveis da mesma espécie e do mesmo sangue. Uma sensação terrível se apossou do meu corpo, começando na minha barriga e subindo até o meu pescoço, criando o mais imenso nó, meus olhos lacrimejavam e minha garganta tremia com o peso que parecia me puxar para baixo.

Naquele momento eu me senti como havia me sentido tantas vezes antes, inferior, triste, indigno. Me senti incapaz de fazer qualquer esforço ou movimento que pudesse me salvar, como se aqueles olhos terríveis estivessem em um abismo e buscassem me levar de volta, não buscando uma saída, mas apenas buscando me afundar junto com ele pela companhia. Era como se todos os momentos felizes da minha vida estivessem sendo sugados um por um, cada migalha de felicidade que eu forçosamente conquistei foi cuspida da minha garganta, confirmando cada um dos meus pensamentos mais profundos e se voltando para a minha insignificância. Eu não era ninguém, e de alguma forma, o vazio era familiar e acolhedor como uma piscina de água morna. Nos meus pés, a água começava a se juntar em poças gelatinosas e eu observei petrificado conforme o lugar inteiro se enchia daquela mesma substância. Ela enchia os copos e molhava os livros, subindo seu nível cada vez mais em direção ao meu pescoço. 

Tudo parecia perfeitamente congelado, como se aquela água fosse pesada demais para carregar qualquer coisa para sua superfície, apenas me puxando cada vez mais para o fundo. Quando finalmente a água me cobriu, eu percebi que estava sozinho, e afundando rapidamente naquele oceano azul escuro. Todos os movimentos pareciam apenas me afundar mais para baixo e as minhas braçadas não faziam mais do que tentar agarra a escuridão. Meus olhos ardiam e meu pulmão parecia em brasas pela falta do ar, mas o único sentimento que tinha meu total foco, era a sensação de estar completamente abandonado. Uma solidão invadiu o meu peito e era como se um impostor tivesse tomado o local da minha vida, era como se todos que um dia me amaram estivessem me renunciando e me trocando, e nenhum deles seria capaz de notar a minha falta.

Esse sempre foi o meu maior medo. Eu nunca iria suportar morrer sozinho, saber que nenhuma alma pensaria em mim tempo suficiente para tentar entender o oceano sem volta que eu tentava cruzar á nado. Será possível que toda a determinação que eu lutei tanto para conseguir é no final das contas, inútil? A minha existência se resume a tentar e tentar incessantemente para garantir resultados minúsculos? E porque esses resultados nunca me satisfazem? O que afinal eu tanto procuro? Se eu pudesse ser sincero comigo mesmo, eu diria o que está escondido, eu viraria as cartas para cima e mostraria para o mundo. Eu diria que eu tenho medo, e eu me sinto terrivelmente sozinho nesse medo, nessa confirmação quase diária de que eu não mereço o afeto ou a atenção de ninguém, e o repetido abandono que eu sofri durante toda a minha vida parecia apenas confirmar isso. 

Como eu poderia garantir que essas pessoas que entraram na minha vida não iriam embora com a mesma velocidade? E se elas soubessem o que se passa na minha mente, elas ficariam? Eu duvido até mesmo da minha capacidade de amar, afinal, não sou eu o vilão dessa história, buscando desesperadamente o afeto e a proteção dos outros, buscando me sentir seguro, e prender eles sobre as minhas garras para que eles nunca fujam. Nada lá fora vai me fazer feliz. Eu sei disso tanto quanto eu sei a cor do céu, mas isso não me impede de desesperadamente procurar algo fora ao invés de examinar o terrível abismo dentro de mim.  Esse tempo todo eu me sinto uma criança, um ser diminuto e incapaz, chorando e gritando por uma ajuda que nunca veio. E todos os sentimentos me envergonham, e a todo tempo, o meu peito aperta com a certeza de que nada vai ser suficiente para que eu seja livre. Sinto minhas costas encostarem em algo e com as mãos eu sinto a areia, finalmente no fundo do mar, esmagado por centenas e centenas de litros de água. Eu consigo sentir a pressão esmagadora prestes a esmagar meus ossos.

- Mica! - Cere fala agarrando meu braço. - Você parece distraído.

- O que você achou? - O homem sorria. - O interior da mente de uma pessoa é algo terrível.

- Foi terrível. - Eu respondi. - Mas ainda não entendi o que você quer provar.

- Eu quero provar sua habilidade de entender. - Ele respondeu. - Se você não for forte o suficiente, você não irá aguentar o que eu estou prestes a te mostrar. 

- Eu não sei se eu sou forte o suficiente. - Respondi.

- Você é. - Ele se virou de costas. - Obviamente não tão forte quanto eu, mas você não é o herói.

O sino tocou mais uma vez quando passamos todos pela porta da frente do antiquário, o homem seguiu em frente em direção o seu destino, deixando eu e Cere estupefatos com o cenário que se desenrolava no mundo. A rua estava completamente vazia e havia adquirido uma terrível tonalidade escura, como se coberta em sombras, os prédios pareciam de alguma forma mais altos do que o normal e cada uma das janelas de vidro deveria ter o dobro do meu tamanho. Os semáforos e postes se contorciam como terríveis cobras com dentes abertos, e o céu brilhava como se feito de retalhos, diversas tonalidades roxas e azuis se misturavam na noite. A lua, que era maior do que eu jamais havia visto antes, brilhava com um doentio brilho vermelho. 

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