Confusão
- Mica? - Segurei-o pelos braços. - Eu não acredito que realmente é você.
- Vocês conseguiram. - Ele me apertou de volta ficando mais calmo. - E na hora certa ainda por cima.
- Fiquei preocupada com você. - Nyx falou aliviada. - E agora acho que estou preocupada com todos nós.
- Vocês pretendem ir até o final? - Um homem estranho falou. - Ou pretendem parar na metade?
- Esse é Marcos. - Mica riu. - Ele fala várias coisas estranhas, aliás, já que vocês estão aqui poderiam me ajudar a encontrar uma pessoa que eu perdi.
- Uma pessoa que você perdeu? - Respondi. - Mica, seja mais claro.
- Eu já te disse que a Cere está com a sua irmã. - Marcos falou cansado.
- Mas você também me disse que a irmã dela é perigosa. - Mica retrucou.
- Ah sim, - Marcos falou. - ela é bastante.
- Fiquem calados todos vocês. - Nyx sussurrou. - Eu ouvi um barulho.
Ela fez sinal para que todos nos abaixássemos e em breve eu entendi sua motivação, do outro lado da pedra algo que parecia ser uma enorme minhoca começou a se mexer na nossa direção, seu corpo gordo parecia divido em fatias e seus dentes eram enfileirados como os de um peixe. No segundo que ficamos em silêncio ela pareceu perder o interesse e começar a se arrastar em outra direção. Respirei fundo e observei o grupo de pessoas na minha frente, todos eles pareciam fracos e insuficientes para lidar com qualquer dificuldade do mundo real, e agora que estávamos em outro mundo, esse abismo parecia somente crescer. Apesar de tudo, eles pareciam pertencer á esse lugar, respirar o mesmo ar e sentir satisfação, pulsar com a mesma energia que cobria esse chão e esse seu. Era como se eles fossem daqui originalmente.
Tão logo a primeira minhoca começou a sumir, outras menores começaram a cavar seu caminho para cima da terra. O asfalto se partia em uma rachadura e elas esmagavam seus corpos até conseguirem sair, se debatendo no contato com o ar e a luz. Tudo indicava que elas eram cegas, mas qualquer decisão precipitada poderia ter conclusões letais, mesmo as menores minhocas ainda eram três ou quatro vezes o nosso tamanho.
- O que vocês sabem sobre esse lugar? - Sussurrei.
- Nada. - Mica respondeu. - Apenas que nós estamos presos.
- Nada também. - Nyx respondeu concentrada. - Mas eu acredito que alguma coisa nos trouxe para cá.
- A garota que Mica teve o desprazer de deixar escapar, - Marcos falou calmamente. - era a nossa única salvação. Ela sabe tudo sobre esse mundo e o próximo.
- Precisamos encontrar Cere. - Mica contraiu o rosto. - Mesmo que ela não soubesse de nada, ela é importante.
- Vamos encontrar sua amiga. - Eu me levantei. - Sabem por onde começar?
- Ali. - Marcos apontou para o norte.
Olhei para onde ele apontava e só consegui discernir o contorno dos prédios escuros, se alternando sucessivamente até o horizonte, alguma luz parecia sair de trás daqueles prédios como se um sol estivesse tentando nascer. O brilho arroxeado das estrelas cortava o céu como furos em um tecido esticado, e eu me senti preso debaixo de um enorme cobertor. O ar parecia se tornar cada vez mais estagnado como se estivéssemos respirando fumaça, e conforme corríamos pelas ruas escuras da cidade, me senti cansado como jamais me senti antes. Meu corpo inteiro parecia protestar contra essa corrida sem sentido, essa busca por algo que eu não conseguia entender. Todos eles tinham um objetivo, uma ligação com esse mundo, algo que eles queriam salvar, proteger ou descobrir. Mas eu não tinha nada. Eu era apenas o vigilante solitário tentando salvar alguém que não queria ser salvo, correndo atrás dela e tentando entender sua vida confusa.
Porque você respira tão fundo? Porque seus olhos em chamas parecem varrer cada uma das superfícies e entender seus enigmas e mistérios, porque você entende tudo? Eu quero saber as razões, as motivações, eu quero saber de tudo. Eu quero deixar de ser apenas um espectador e começar a fazer parte da sua vida, da nossa vida, de tudo. Eu quero que você me conte todos os segredos e suma com essa sua parede, essa sua vontade de se esconder de mim. Nyx, você acha que não vai sobreviver, acha que eu vou deixar você morrer em um lugar assim? Eu pretendo descer até o fim do inferno por você, e nesse momento é o que eu estou fazendo. Não se esconda de mim, porque eu não tenho mais nada para esconder, nenhuma casca, nenhuma armadura.
Na nossa frente a rua se abriu, os prédios deram lugar para casas menores e a rua se alargou em uma enorme praça com árvores retorcidas. Os troncos eram pretos como se feitos de carvão, as folhas pareciam sólidas como se feitas de plástico. No meio da praça um chafariz cuspia água enlameada por seus buracos, como jatos de lama que se moviam tortos e acertavam o chão, os bancos eram tão grandes que nós não podíamos nem sonhar em chegar perto de seus assentos, eram como dentes saindo do chão, jaulas esburacadas e retorcidas. Quanto mais nos aproximávamos de nosso destino, mais ficava evidente que esse mundo era feito para pessoas infinitamente maiores do que nós, ou pelo menos, capazes de alterar seu tamanho. Não havia nenhuma ordem ou sentido em nenhuma das construções, as portas e as janelas mudavam de tamanho em cada rua, e a sensação era a de estar sendo repetidamente encolhido e esticado conforme passávamos correndo.
Ficamos parados por alguns instantes quando ouvimos o barulho, um trovão irrompeu dos céus fazendo o chão tremer, o clarão de luz amarela nos atordoou por um momento. Quando conseguimos enxergar novamente, uma figura havia aparecido no topo do chafariz e estava exibindo seu pescoço para cima em sinal de triunfo. A figura era um gato doméstico com um colar vermelho, seu tamanho alterado o fazia ser maior do que todos nós, seus olhos era o mais puro terror.
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