35. a captura do inigualável ninja ruivo
WILL
Sentado no sofá da sala de Damian na agência, Will suspirou pela décima vez seguida. Descascando com a unha o velho braço do sofá de couro negro, ele pensou em mil maneiras de fazer o amigo se calar, mas sabia que seria inútil. Damian andava de um lado para outro da sala envidraçada, esfregando as mãos.
— Hoje será o dia — disse ele. — Hoje será o dia!
Will fechou a cara, enterrando os dedos no braço do sofá.
— Você não entende, não é?
— Sem lamentações, William. Hoje será o dia em que, finalmente, você convidará Maria para almoçar.
Através das lâminas da persiana branca da sala, Will observou Maria trabalhar no balcão de cópias, carregando pilhas de folhas e abrindo a tampa da fotocopiadora. O suor de suas mãos mancharam o couro do sofá por um segundo.
Cerrando os punhos e ajeitando a postura, ele disse:
— Não quero mais. Já passou.
Will fez o melhor que pôde para manter a atitude distante e desinteressada, mas era impossível esconder suas emoções quando o nome de Maria surgia na conversa. A viagem havia terminado há dois meses e algumas semanas, e diferentemente de todas as expectativas, Will fugia do balcão de cópias.
Ele, que gostava tanto de palavras, sabia que as ilusões cobravam um preço alto pelo cultivo, logo, procurava evitá-las. Os momentos que dividiu com Maria na viagem foram ótimos, mas insuficientes para gerar uma relação de qualquer natureza. Fora um sorriso aqui, um cumprimento ali e um aceno ocasional na hora do almoço, Will evitava a companhia de Maria. Ali, na agência, era o chefe dela e nada mais.
Corado pelo olhar profundo de Damian, fechou a cara. Odiava ser encarado.
— As coisas estão bem assim — afirmou ele. — É o que basta.
— Três anos, Will. Há três anos você enfia vales da Casa do Waffle pela porta, compra a revista preferida dela e faz tudo o que pode para fazer Maria feliz. Mesmo assim, você nunca a chamou para...
— Nunca fiz essas coisas esperando algo em troca, Damian.
A frase saiu com um pouco mais de raiva do que necessário, mas Will não conseguiu se controlar. Damian era seu único amigo, e o único que sabia como destruir sua paciência como ninguém.
Sabia que há três anos, desde que vira Maria saindo para levar o lixo, fazia tudo por ela. Os cupons de descontos, a revista preferida, as encomendas "entregues por engano" e até o emprego eram apenas consequência do sentimento que o envolvia. Will queria que Maria fosse feliz, com ou sem ele.
De certa forma, saber que tinha o poder de trazer um sorriso ao rosto dela era muito melhor do que convidá-la para um encontro. Pelo menos assim ele tinha certeza de que não a decepcionaria. Ninguém fica triste com cupons da Casa do Waffle.
Damian, por outro lado, não parecia convencido. Erguendo uma sobrancelha e soterrando Will com aqueles olhos azuis, ele perguntou:
— Você não se sente... solitário?
O tempo todo.
— Não.
— Você vai precisar fazer melhor do que isso, campeão. — Damian riu, dando aquela piscadela sabichona que nunca falhava em deixar Will com uma carranca. Ele pegou as chaves do carro, ajentando alguns papéis sobre a mesa. — Vou almoçar com Amy. Talvez me atrase para a reunião.
Will esboçou o primeiro sorriso sincero desde que entrou na sala.
Naqueles dois meses, a aproximação dos dois era lenta, regada por almoços, jantares, sessões de videogame e pizzas das quais Will nunca falhava em marcar presença. Apesar da falta de jeito e de nunca usarem a terminologia correta, era fácil perceber que os dois eram pai e filha. Damian e Amy eram tão parecidos que chegava a ser cômico.
Às vezes Will se perguntava como os dois ainda não tinham se matado. Mas às vezes, na maioria delas, ele pensava em como era o apartamento de Damian antes de Amy estar lá, em como tudo era antes de ter perninhas magricelas jogadas para fora do sofá ou o sotaque colorido de Edimburgo ressoando nos cômodos. Por mais que se esforçasse, Will não se lembrava.
Abrir a porta e encontrar a garota lá parecia certo. Will gostava de ser recebido pelo sorriso torto e os olhos bem maquiados de Amy, pelas botas de combate jogadas num canto do apartamento, pelos CDs de música clássica que ela comprara numa lojinha barata. Assim como Damian, ele já não imaginava sua vida sem a garota.
Com um sorriso contido, Will perguntou:
— Estão se dando bem, presumo?
Damian deu de ombros e, naquele gesto, foi fácil ler sua felicidade de papai coruja.
— A garota é incrível, apesar de cabeça dura e desbocada como o diabo. Sinceramente? Eu não esperava nada diferente vindo de mim e Diane.
— Fico feliz que vocês estejam se acertando. Assim como você e Lara...
— É. Estamos nos... nos conhecendo ainda. — Damian corou, brincando com as chaves do carro entre os dedos. Com um sorriso, adicionou: — Mas Lara é incrível. Acho que é impossível não ficar feliz quando ela está por perto.
Will sorriu. Era exatamente a resposta que procurava. Ele sabia que os dois saíam há poucas semanas, mas a mudança em Damian já era evidente. Além de sorrir com mais frequência, Damian passava as poucas horas livres tentando aprender italiano para impressionar Lara.
(Will ajudava como podia, rindo mais do que deveria, e vendo no olhar apaixonado do amigo um motivo a mais para não desistir daquela empreitada tão sem noção.)
— Certo. Melhor eu ir andando. — Damian abriu a porta da sala, mas voltou por um momento, apontando o dedo para Will. — Não se esqueça de hoje à noite, ok? E boa sorte com... você sabe..
Damian e seu sorrisinho malicioso sumiram pela porta.
Will permaneceu sentado no sofá, ouvindo os sons da agência diminuírem enquanto pequenos grupos saíam para o almoço. Respirou fundo, girou o corpo e afastou duas espátulas da persiana com os dedos, apenas o suficiente para espiar Maria no balcão de cópias.
Ela usava a blusa cinzenta folgada — uma das preferidas dele —, os cabelos presos num coque e o crachá balançando no pescoço. Maria organizava um calhamaço de folhas, possivelmente cópias de documentos e contratos do departamento financeiro, e Will a espiava através da persiana quase como se cometesse um delito. Com a garganta fechada, perguntou-se que tipo de campo magnético a presença dela exercia sobre sua existência.
Will estava sozinho há quatro anos, mas há três escolhera Maria como objeto de sua afeição. Ele não acreditava em amor à primeira vista, contudo naquele dia, quando ela descera para levar o lixo vestindo shorts rasgados, uma regata puída, cabelos presos de qualquer jeito e cantarolando uma música italiana, foi amor. Não tinha jeito. Havia terminado o namoro com Carly há um ano quando viu Maria e descobriu a necessidade quase patológica de fazê-la feliz.
Will não era do tipo que acreditava em amor à primeira vista, mas aparentemente o amor à primeira vista acreditava nele.
Do que você tem tanto medo? A resposta era confusa, mas como toda resposta, originava-se de um conceito simples e até patético: Will tinha medo de decepcionar Maria. Medo de errar, de ser chato, de não ser o tipo de cara com o qual ela se envolve. Era fácil fazê-la feliz de longe, da distância segura de quem observa através das espátulas da persiana. Will apoiou o rosto num dos braços, sem desviar os olhos de Maria, e suspirou.
Suas três irmãs adorariam conhecer Maria. Anna contaria histórias sobre as viagens que fazia, Daisy riria dos clientes bizarros da floricultura em que trabalhava e Sarah, a mais antenada das três, passaria horas conversando com Maria sobre maquiagens e as últimas tendências de moda que lia nas revistas. O pai deles poderia até tocar uma música italiana ao piano, a mãe faria um daqueles assados incríveis que só ela sabia fazer e seria a melhor noite da vida de Will.
Se ele fosse corajoso, coisa que não era, poderia até chamar Maria para morar com ele, caso engatassem algo sério. Se tudo ocorresse como o planejado, Will não revezaria mais as noites entre o sofá de Damian e a casa dos pais. Após quatro anos evitando o próprio apartamento, cujos cômodos ainda estavam tomados por caixas de mudança, muitas ainda lacradas, ele deixaria de ser nômade. Fora um colchão no chão da sala, a vitrola e os discos, tudo era vazio. Will detestava ficar sozinho naquele apartamento silencioso que não tinha cara de casa. Mas se Maria morasse com ele...
Mas para isso preciso dar o primeiro passo. Ele poderia continuar enfiando vales da Casa do Waffle pela porta ou realmente ter um futuro com ela.
A lembrança de Maria dançando na praça de West Creek e adormecendo com as mãos entrelaçadas às suas foi tão real que Will sentiu o cheiro da grama, das balinhas de framboesa e dos cabelos de Maria. As lembranças se misturavam na cabeça dele, passando diante de seus olhos como um filme. Era hora de agir. Aquilo sim era importante, real.
A lembrança do banheiro apertado do trailer, da risada dela e de como Maria empurrava sua perna cada vez que ele fechava os olhos depois do incidente com Rob Filho fizeram Will erguer-se, pegar a primeira folha de cima da mesa de Damian e rumar para o balcão de cópias. Assim, sem pensar.
Trocar a possibilidade de viver aquilo com ela por medo seria o pior dos desfechos. Até um "não" dito em alto e bom som é melhor do que imaginar, eternamente, o que poderia ter sido.
Will apertou a folha entre os dedos e, ignorando o comichão que retorcia seu estômago, caminhou decidido ao balcão de cópias para...
— Hola, muchacha!
Ele estaqueou quando Maria ergueu o rosto. De onde estava, Will viu a figura esguia de Calvin Carter, o diretor de arte com cara de raposa e libido exarcebada que nunca perdia uma oportunidade de cantar Maria, escorar-se no balcão com um sorriso seboso.
Ela não o viu. Com as mãos suadas, Will esperou. Maria grampeou algumas folhas e apertou os olhos para o diretor de arte.
— Quantas vezes vou precisar dizer que sou italiana, e não mexicana, cara?
Apoiado no balcão, Carter deu de ombros e riu, suas sobrancelhas escuras erguendo-se.
— Bem, mamma mia!
— Original pra caralho, Carter. O que você quer?
Ele riu outra vez, umedecendo os lábios. Um pouco mais afastado, Will apertou a folha entre os dedos, incapaz de avançar ou recuar, preso no limbo da própria desgraça por causa do grande idiota que era Calvin Carter.
— Vim aqui dizer quais são seus planos para hoje à noite, princesa.
— Vai nessa, amigão. — Maria riu sem vontade, abaixando-se para pegar mais grampos. Enquanto abria o grampeador, disse: — Mal posso esperar para ouvir.
— Hoje será a melhor noite da sua vida, meu bem. Vamos sair para jantar e depois você vai ao meu apartamento para conhecer minha coleção de discos.
Sem demonstrar reação, Maria grampeou algumas folhas. Will percebeu que duas mechas de cabelo caíam por seu rosto, deixando-a mais radiante do que nunca. Que merda. Por que ele não conseguia ser despachado como Carter?
— E o que mais? — perguntou ela.
Carter sorriu com o canto dos lábios, inclinando-se no balcão como se quisesse fazer uma confidência. Num tom baixo, mas suficientemente alto para Will ouvir, Carter arrematou:
— Não tenho uma coleção de discos, gata. Mas minha cama é grande o suficiente para nós dois e eu adoro o tempero italiano, se é que você me entende.
Carter piscou e Maria riu, ajeitando os cabelos e espalmando as mãos no balcão. O coração de Will se partiu um pouquinho mais. Como um detetive interrogando um suspeito, ela perguntou:
— Que merda. Você consegue transar com alguma mulher usando essa conversa mole?
— Às vezes. — Ele riu. — Mas o que você me diz, meu amor? Eu, você, sexo a noite inteira... parece bom, não?
Will, que gostava tanto de palavras, foi tomado por um vazio absoluto ao perceber que nenhuma palavra, grande ou pequena, seria suficiente para definir aquela situação. Seria sempre assim. Caras como Carter, caras com atitude, mesmo que atitudes babacas e cantadas medonhas, tomariam a dianteira, não teriam medo de uma recusa, de fazer propostas indecentes a qualquer hora do dia.
E Will, que levara três anos para cogitar a possibilidade de chamar Maria para sair, ficaria para trás. Com isso, decidiu recuar antes de ser visto enquanto ela dava a resposta:
— Grande proposta, Carter, mas eu já tenho... Will?
De costas, ele fechou os olhos. Merda. Se não fosse por aquela estatura de jogador de basquete, ele sairia como um ninja do campo de visão dela. Rígido, Will se virou com a folha ainda presa entre os dedos. Carter lançou-lhe um olhar entendiado, mas não deixou o balcão. Nervoso com a atenção que recebia de Maria, Will empurrou os óculos para cima.
— Você precisa de alguma coisa? — perguntou ela.
— Sim. — Ele ergueu a folha. Só então percebeu que tremia. — Cópias.
Will se aproximou do balcão de cópias como se fosse um verdadeiro patíbulo. Maria tomou a folha, deu uma olhada nela e perguntou:
— Quantas?
— Pode ser umas 30 — disse ele. Quando ela franziu o cenho, Will corou. — Ou 35.
Ela sorriu, as manchinhas verdes de seus olhos castanhos aquecendo o coração despedaçado dele. Tão logo Maria se virou para a máquina de cópias, Carter acotovelou Will, dando uma piscadela sabichona.
— Ela está muito na minha, cara. Saca só — sussurrou Carter. Virando-se para Maria, ele disse: — Ah, meu bem, que loucuras eu não faria por esse seu traseiro...
Maria revirou os olhos e Carter riu, mas Will permaneceu rígido como uma pedra. Suas mãos se fecharam punhos, e ele calculou que poderia acertar um soco no nariz de Carter e arrancar aquele sorrisinho convencido da cara de raposa dele. Se acertasse em cheio poderia até levar alguns dentes na batida.
Ela se virou e, enfiando o crachá no bolso traseiro do jeans, disse:
— Faço as cópias depois do almoço, pode ser? — Maria pegou a bolsa debaixo do balcão e sorriu para Will. — Aliás, tudo certo para hoje à noite?
Pego de surpresa pela pergunta, Will não foi capaz de reagir. Carter, mortificado, encarou-o com olhos arregalados. Vermelho como um pimentão, porém sorrindo de volta, Will empurrou os óculos para cima.
— Tudo certo. Muito certo.
— Pera aí, vocês dois... — começou Carter. — Vocês dois estão...
Will nada disse. Maria riu. Ela saiu de trás do balcão e fitou Carter com o olhar que Will mais adorava ver em seu rosto: o que destilava o mais puro e divertido dos deboches.
— Chegou tarde, camarada — disse ela. — Vamos lá, Will?
— Lá...? — perguntou ele, confuso.
— Almoçar. Você me chamou ontem, lembra?
Os olhos dela se arregalaram, e Will entendeu naquele gesto o apelo silencioso que gritava "pelo amor de Deus, me tire daqui". Com o coração aos pulos, ele assentiu e estendeu o braço a Maria. Deixaram um Carter assombrado para trás e, enquanto ela falava sobre o trabalho, Lara e as meninas, Will sorriu.
A maré, finalmente, começava a virar.
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O sol incidiu sobre os cabelos dela, e a risada descontraída de Maria preencheu os ouvidos dele como música. O dia estava perfeito para um almoço ao ar livre, e era exatamente onde se encontravam. Sentados em frente ao prédio da agência, aos pés de uma fonte de pedra negra e silenciosa, observavam o movimento e conversavam sobre tudo. Ele, como sempre, mais ouvia do que falava.
Maria riu e limpou as mãos no guardanapo.
— E o cara não desiste! Esses idiotas como Carter sempre vão existir. — Ela tomou um gole de refrigerante, os pés balançando no ar. — Ah, e valeu por ter vindo almoçar comigo. Achei que nunca conseguiria me livrar dele. As primeiras mil vezes que você ouve mamma mia! são fofas, mas depois admito que fica meio repetitivo.
Will deu uma boa olhada em Maria, que entretida pelos arredores, olhava para tudo com a atenção frágil de uma criança hiperativa. Os cabelos dela, presos no coque, balançaram com a brisa. Observando o perfil de Maria, com o nariz altivo e os olhos castanhos fixos em nada e coisa alguma, Will foi assaltado por um pensamento esquisito.
— Carter não é um... um incômodo?
— Como assim?
Ela o encarou, balançando o copo de refrigerante e fazendo os cubos de gelo cantarem. Maria ajeitou o canudo e esperou pela explicação com o cenho franzido. Will sentiu o sangue pulsar nas orelhas.
— O que ele faz pode ser considerado assédio. Se você fizer uma queixa formal ao RH, o caso pode ser levado adiante e investi...
Ele foi interrompido quando ela sugou o canudo com força, fazendo um barulho esquisito — e alto — que servia como resposta. Confuso, Will esperou. Maria ergueu as sobrancelhas e mordeu o canudo.
— Não quero problemas para o meu lado, cara — disse ela.
— Mas você é a vítima. Como... como isso poderia ser um problema?
Maria mordeu o canudo novamente, dando de ombros.
— Sou imigrante. Ilegal, ainda por cima. É a minha palavra contra a dele. Sei que fico em desvantagem nessa — disse ela. Will abriu a boca para protestar, mas se calou quando Maria riu. — Relaxa. E sinceramente, não me incomoda. Carter é só outro idiota que insiste em cantadas péssimas. Tem gente pior por aí.
Em silêncio, Will pensou em tudo o que Maria e Lara tiveram de aturar pelo simples fato de virem de outro país atrás de novas oportunidades. Caras idiotas, empregos miseráveis, cantadas baratas, preconceito e discriminação. Aquilo não era justo. Aquilo não era nada justo.
De repente, enfiar vales da Casa do Waffle e a revista preferida dela por baixo da porta parecia algo idiota de se fazer. Will queria fazer mais, então disse:
— Mas se Carter incomodar...
Ele sabia que era pouco, mas era o que podia fazer: apoiá-la no que fosse.
Maria riu.
— Não se preocupe. Chamo você para darmos uns socos na cara de fuinha dele.
— Parece bom para mim — disse ele. Maria riu outra vez, balançando os pés e tomando o refrigerante com mais barulho do que o necessário. Ela se esticou, apoiando os cotovelos na pedra negra e dando uma boa olhada ao redor. Will ajeitou os óculos. — E o emprego novo?
Maria conseguira um bico de lava-pratos num diner caindo aos pedaços atrás da prefeitura. A única coisa que Will sabia sobre o novo emprego de Maria era que o chefe dela pagava uma miséria e a deixava com uma pilha imensa de pratos para lavar, sem horário para terminar.
Com uma careta, ela mordiscou o canudo.
— Uma bosta. Chego em casa tarde e fedendo a gordura. Não posso nem dizer que a grana é boa. — Maria deu um sorriso triste, observando o prédio envidraçado da agência com um suspiro. — Bem, agora que Lara conseguiu esse emprego com Mitch Fischer, quem sabe eu também não arranjo algo melhor?
Will sorriu para os próprios tênis. Damian havia quase enlouquecido Grace de tanto que ligava para Milão pedindo para que ela encontrasse Mitch e não o deixasse escapar. "Se Damian me ligar mais uma vez", dissera Grace pelo telefone, "eu juro por Deus que vou pegar um avião só para dar uns tapas na cara dele, Will."
(Damian, que havia escutado a ameaça através do celular colado à orelha de Will, não tivera piedade da irmã: "Se você trouxer o Mitch junto, pode me dar quantos tapas na cara quiser, mana!". Lá de Milão, Grace bufou e bateu o telefone.)
Quando ele se virou para Maria, percebeu que ela sorria. Agora, de verdade.
— Estou feliz por eles. Lara me disse que ela e Damian estão... se conhecendo, mas acho que vai dar certo. Pelo menos ele parece se importar com as meninas.
— Ah, ele se importa. — Will sorriu e ajeitou os óculos. — Você quer ouvir um segredo?
Maria se inclinou na direção dele, e Will sentiu o ar faltar quando o cheiro dela, uma mistura de erva doce e balas de framboesa, envolveu-o. Ele demorou um pouco mais do que o necessário para falar, apenas para que seu cérebro guardasse a lembrança daquele cheiro.
Quando as sobrancelhas dela se ergueram, Will disse:
— Damian me ligou quando o jantar com Mitch e Lara terminou. No início, não entendi direito o que ele dizia. Damian pode ser bem confuso quando está nervoso ou alegre demais. Depois de alguns minutos, entendi a mensagem. "Ela disse sim, cara! Lara disse sim!" — Will imitou a voz do amigo. Maria riu. — E ele repetiu isso umas oito vezes até que eu conseguisse falar.
— E o que você disse?
Ele foi pego de surpresa pela pergunta. Com o cenho franzido, respondeu:
— Bem, o de sempre. Para que faça Lara feliz, afinal ela merece.
E ele disse o mesmo para mim, mas com você. Mesmo não completando a frase, Will corou como se Maria fosse capaz de ler seus pensamentos. Por que ele precisava ficar tão sem graça quando ela estava por perto? Ser criado com três irmãs deveria ter lhe dado alguma espécie de vantagem com as mulheres, mas infelizmente acontecia o contrário. Por que Will não conseguia ser despachado e saliente como Carter?
Antes que pudesse ser soterrado pelo próprios pensamentos, as portas do prédio da agência se abriram e Anne do Marketing saiu do prédio como uma modelo desfilando por uma passarela invisível. Usando nada além de saltos, uma saia negra e uma camisa social branca, Anne estava perfeita. Os cabelos soltos, a bolsa de couro colorido nos braços e a maneira como ela checava o celular faziam de Anne do Marketing a rainha da agência.
Em silêncio, os dois acompanharam com o olhar enquanto ela se dirigia ao ponto de táxi.
— Você deveria ir atrás dela — disse Maria. Um sorrisinho sabichão tomou seu rosto quando Anne sumiu dentro do carro amarelo-ovo. — Já disse que ela é caída por você. No balcão de cópias a gente ouve uma porrada de coisas, sabe?
— Não me interesso por Anne.
Maria inclinou a cabeça e o presenteou com aquele olhar de "Fala sério, cara" que combinava tão bem com seus olhos castanhos com manchinhas verdes.
— Na boa, Will, até eu me interesso por Anne. Ela é bonita pra caralho.
Ele observou outro táxi deixar o ponto e deu de ombros.
— Concordo, mas ela se parece muito com minha última namorada.
Tão logo a frase deixou sua boca, Will se arrependeu. Ele se forçou a pensar em mares, oceanos e geleiras para evitar que seu rosto se inflamasse e sua cabeça se tornasse um palito de fósforo aceso. Maria fez a careta de quem toma conhecimento de algo espinhoso, erguendo as sobrancelhas e abrindo a boca. Will encarou o táxi de Anne sumir no quarteirão, incapaz de virar o rosto.
— Ah, saquei — disse Maria. — Você ainda tem sentimentos por ela. Isso é uma droga, cara.
Aquilo era tão absurdo que ele riu.
— Não, Maria. Já faz quatro anos que eu e Carly termi...
Will se calou, ajeitando os óculos. Quando queria conversar com Maria, nada de bom saía de sua boca, mas tão logo o assunto podia deixá-lo sem graça, seu cérebro despejava informações desnecessárias como uma metralhadora no front de guerra.
Maria estava com os olhos muito arregalados. Isso é um pesadelo. Só pode ser.
— Nossa — disse ela. — Quatro anos é bastante tempo.
— Isso depende. Todo tempo é... relativo.
— Tudo para você é relativo!
Ela riu. Envolvido por aquele riso tão leve, Will foi incapaz de conter a felicidade que se expandia em seu peito.
Estranhamente calmo, ele disse:
— Carly me deixou porque sou... sou meio chato. Difícil de lidar. E porque ela conseguiu uma oportunidade incrível na China. Não posso culpá-la.
Maria ficou em silêncio. Pela primeira vez, Will não teve vergonha de dividir algo tão íntimo com ela. De uma maneira esquisita, soava certo dizer aquilo à Maria.
— Você não parece chato. — Ela mordeu o canudo, sorrindo. — Pelo menos não quando está usando aquela cueca maneira d'Os Jetsons...
Ele sorriu e baixou o rosto, esperando que ela não percebesse sua vermelhidão. Ela o empurrou com o ombro novamente. Os dois riram.
— Ei, mas saia com Anne — disse Maria, como se contasse uma fofoca a ele. — Você pode até não gostar dela agora, mas vai saber? A vida é cheia dessas coisas.
— Anne não faz meu tipo.
— Isso é o de menos. Podemos encontrar outra para você. — Maria soltou o copo de refrigerante, limpando as mãos num guardanapo usado. — A agência é gigante. Tem todo tipo de mulher lá. Vamos ver...
Maria começou a enumerar todas as mulheres que conhecia, pensando que o olhar fixo de Will era um incentivo para mais características das candidatas. Na verdade, ele a encarava porque não entendia como o nome dela não estava naquela lista. Anne, Paula, Brittany, e a lista continuava e continuava, com Maria rindo e tentando prever como Will se sairia com cada uma delas.
(Ei, fora aquele problema de Meryl, aquela mania de assoar o nariz o tempo todo, ela é bonita. Meio nojento, mas tudo bem. Não sei como ela consegue estar sempre ranhenta, cara. Vamos ver...)
Ele deixou o olhar se perder na risada faceira dela, nas mãos que não paravam de enumerar as mulheres e suas características, no colo que a blusa folgada deixava à mostra, naqueles olhos castanhos sarapintados por manchinhas verdes que eram a perdição dele, e se perguntou como um homem, qualquer um, poderia resistir a ela.
Maria era daquelas raras presenças que iluminavam tudo ao seu redor. Will, que a amava há três anos, não queria deixar de ser iluminado por ela, por aqueles sorrisos e piadas que nunca falhavam em lhe arrancar uma gargalhada. Maria era viva, e Will não podia — e nem queria — ficar sem ela. Era simples e complicado assim.
Ela ainda falava, mas ele havia deixado de ouvir há muito tempo. Cada nome de mulher que saía da boca de Maria fazia crescer no peito dele o mais assustador dos vazios. Por que diabos ela não percebia? Por que os seres humanos possuíam esse defeito terrível de não olhar para quem estava, literalmente, ao lado? Porque essa é a graça de viver. Que merda.
Ainda com os olhos presos nela, Will decidiu que não queria passar mais três, seis, dez anos se perguntando o que poderia ter sido com Maria. Ele queria olhar para trás e ver o que foi, olhar para frente e ver o que seria.
Ah, os tempos verbais. Como a linguagem era certeira em determinar o destino dos homens.
Então, antes que qualquer outro tempo verbal que não o futuro se intrometesse em suas ações, Will segurou as mãos de Maria. Ela se calou, ainda rindo. Duas mechas de cabelo caíram por seu rosto alegre. Devagar, com o coração palpitando nas orelhas e morrendo de medo de errar, Will tocou os lábios de Maria com os seus num selinho delicado que tomou as proporções do beijo que ele sempre imaginou que trocariam.
Não queria parecer desesperado, roubar beijos e fazer algo que Maria não quisesse, mas precisava fazer alguma coisa. Precisava dela até que o ar faltasse em seus pulmões, até que nada mais importasse além daquele beijo, das mãos dela em seu pescoço, em seus cabelos. Ele precisava de Maria. Só dela.
Will estava tão, tão, tão nervoso que não sentiu o gosto de nada. Só de futuro. Beijar Maria, como ele sempre imaginou, tinha o delicioso gosto de futuro.
Will engoliu em seco, e evitando se afastar muito dela, sussurrou:
— Você faz o meu tipo, Maria. Sempre fez e sempre vai fazer.
Ele corou ao perceber que segurava o rosto dela. Com o coração aos pulos e o rosto corado feito um camarão frito, Will abriu a boca. Maria estava de olhos arregalados, piscando como se tentasse entender o que se passava. Os segundos se tornaram anos quando o silêncio cresceu. Ah, merda.
— Eu... eu... me desculpe.
Era exatamente como o pesadelo que Will tinha quando era adolescente; todos na escola apontavam para ele, que vestia apenas uma bandana verde na cabeça. Teria como ficar pior? Will se sentia nu, tão vulnerável quanto um enxadrista que só possui dois peões para defender seu rei.
— Você está... falando sério? — perguntou ela, apertando os olhos.
— É claro que sim — respondeu ele, rápido demais. As palavras se enrolavam em sua língua. — Eu nunca... nunca brincaria com algo assim.
— Há quanto tempo?
— Você quer rosquinhas?
Will apontou para a loja do outro lado da rua, mas Maria o encarou com uma expressão entediada. Ele ajeitou os óculos.
— Há quanto tempo, cara?
— Uns... três anos.
— Dio santo, isso é muito tempo!
— Na verdade, isso é rela...
— Por que você nunca me disse? — perguntou ela. — Sempre vi você no corredor, entrando no elevador ou saindo do apartamento de Damian. Sempre carregando aquelas revistas de moda e... pera aí.
O coração de Will bateu nas orelhas quando ele percebeu, com o canto dos olhos, que Maria o encarava com o cenho franzido. Era quase possível ver as conexões formando-se entre os neurônios dela. Lá se vai meu disfarce.
Maria socou o ombro de Will, que massageou o local com uma careta. A mão dela, como ele desconfiava, era mais pesada do que parecia.
— Era você! O tarado de boné que... que enfiava as coisas debaixo da porta e deixava a revista por engano no nosso capacho! — disse ela, como se solucionasse o mistério do século. — É claro. Dio, como eu pude ser tão idiota? Naquela vez os vales da Casa do Waffle caíram do seu bolso quando você saiu do apartamento de Damian e eu me abaixei para pegar e devolver.
Will corou. Aquela fora a única vez em que Maria quase descobrira seu plano.
Ele saía afobado do apartamento de Damian e, enquanto esperava pelo elevador, Maria cutucou seu ombro, devolvendo alguns vales da Casa do Waffle, vales que ele enfiaria pela porta delas à noite, que caíram de seu bolso. Ele ficara tão nervoso naquele dia, sua primeira interação real com Maria, que permanecera estaqueado durante bons minutos no corredor, segurando os vales com força.
A sorte é que estava sem o boné no dia.
— Por que você fez todas essas coisas? — perguntou ela.
— Não era para você saber...
— Mas eu descobri. Por que você fez isso?
Ele suspirou, incapaz de encará-la. Sem graça, deu de ombros. De que adiantava esconder as coisas agora? Se era para ser ridículo, que fosse o pacote completo.
— Eu queria que você ficasse feliz, mas não queria que me achasse um tarado esquisitão.
Ela ficou em silêncio durante alguns instantes, digerindo a resposta.
— E por que você nunca... me contou? Nos víamos sempre no corredor, no elevador. Por que você nunca... me chamou pra sair?
— Porque você sai com caras... descolados como Carter. Caras que sabem como falar com as pessoas e que transam em banheiros de boate. — Como se finalmente tirasse o peso do mundo dos próprios ombros, Will suspirou. Ele encarou os próprios tênis e ajeitou os óculos. — Eu não sou assim.
Contrariando todas as expectativas, Maria riu. Ela deu de ombros e mordiscou o canudo com seu melhor sorriso de duende.
— Que bom. Banheiros de boate são nojentos pra caralho.
Os dois ficaram em silêncio. Will, mais uma vez, sentiu-se idiota.
— Esqueça o que eu disse, sim? Falei sem pensar.
— Você deveria fazer mais isso. — Maria chupou o canudo com força, sacudindo o gelo do copo. Quando ele franziu as sobrancelhas, ela riu de maneira travessa. — Falar sem pensar. Coisas interessantes saem da sua boca quando isso acontece.
Antes que Will pudesse responder, Maria bateu com as mãos nas pernas e, rindo como sempre fazia, perguntou:
— Mas e aí, onde vai ser nosso primeiro encontro? — Ela ajeitou as mechas de cabelo selvagem. Will abriu a boca, mas foi incapaz de responder. — Eu queria te arranjar alguém, e já que você disse que sou seu tipo...
— Você não precisa fazer isso, Maria.
— E se eu quiser?
O olhar de desafio que Maria lançou em sua direção foi o suficiente para que Will se apaixonasse por ela como se a visse pela primeira vez. Ele conseguia ouvir a música italiana que ela cantarolava ao levar o lixo, os cabelos selvagens presos de qualquer jeito e os shorts rasgados que deixavam as pernas bronzeadas à mostra.
Sem graça e sem acreditar nos próprios ouvidos, ele deixou um riso fraco escapar.
— Você é fascinante.
Porque não havia outra palavra para defini-la do que aquela. Maria era, em sua completa essência, fascinante. Agora era a hora, a grande chance de acertar com ela. Animado pelo pensamento fixo no futuro, Will disse:
— Que tal... depois de amanhã? Posso cozinhar para você no meu apartamento. Ainda preciso desembalar algumas coisas, mas tenho tudo o que preciso lá. Precisamos definir o cardápio. Depois você me diz o que gosta, aí posso fazer! Ah, e você pode conhecer a minha coleção de discos, e nós... — A animação tomou conta das palavras de Will como o tsunami que toma a orla da praia, mas ele se calou ao ver o semblante desconfiado de Maria. Corado, explicou: — Discos de verdade. Vinil. Eu coleciono... discos, Maria.
— Ah, claro. Scusi. Carter conseguiu deixar uma frase inocente completamente... podre — disse ela. Após uma pequena pausa, Maria sorriu. — Trabalhei numa loja de discos uma vez.
— Sério?
— Sério, mas fui demitida porque passava mais tempo ouvindo os discos do que tentando vendê-los.
Eles riram, mas o pressentimento ruim não demorou a tomar conta de Will. Ajeitando os óculos, ele disse:
— Você não precisa fazer isso, Maria. De verdade.
— Eu sei, mas gostei quando estávamos juntos na viagem, batendo em Rob Filho, bebendo na pracinha de West Creek e tirando as tatuagens das Princesas da Disney da sua cara. — Ela chupou o canudinho antes de se aproximar. O cheiro de framboesa e erva doce inundou a percepção de Will, e o sorriso de Maria foi o suficiente para acelerar seu batimento cardíaco. — E fora que você é um gato. Só não cheguei junto porque não sabia se você ia querer ou não. Aliás, estou curiosa para ver as suas outras cuecas.
Os olhos de Will ficaram presos aos lábios de Maria. Corado, ele ajeitou os óculos.
— Fico... feliz em ouvir isso.
— E aqui entre nós — sussurrou ela —, você sabe que me pediu 35 cópias de uma folha cheia de frases rabiscadas num italiano medonho que só pode ser de Damian, não sabe?
— Eu estava nervoso.
— Por quê?
— Queria convidar você para almoçar comigo, mas precisava de... de um pretexto para ir até o balcão das cópias.
Maria ficou em silêncio. E riu.
— Cara, você vai ir para o topo da lista de caras mais fofos que já saí.
Um encontro com Maria. Um encontro de verdade. Ele ia sair com Maria. Aquele dia não tinha como ficar melhor ou mais bonito. Era, a partir daquele momento, o dia mais incrível do mundo inteiro. Mesmo que o encontro fosse uma porcaria, mesmo que tudo desse errado do início ao fim, ele ia sair com Maria. Era um daqueles raros momentos em que a realidade batia — e de longe, muito longe — a ficção.
— Ainda não acredito que está acontecendo — disse ele, desviando o rosto para a loja de rosquinhas do outro lado da rua. Maria franziu o cenho. — Eu e... você. Sou muito idiota. Deveria ter dado ouvidos a Damian e chamado você para sair muito antes.
Maria se inclinou e beijou a bochecha de Will. Apesar de o rosto queimar como um meteoro incandescente, ele se sentia bem. Melhor do que nunca. Teria um encontro com Maria. Nada poderia dar errado.
— Antes tarde do que nunca, certo? — Ela riu. — Vamos lá. A hora do almoço acabou, garanhão.
Ela se ergueu, pegou a bolsa e, enfiando o copo e as embalagens na lixeira, tomou o braço de Will. Caminharam de volta ao prédio da agência com Maria perguntando de onde diabos ele sabia cozinhar, onde ficava o apartamento e que tipo de música ele escutava. Will respondia como podia, sorrindo muito mais do que deveria.
Naqueles breves passos que os separavam do interior do prédio comercial, de braços dados, Will descobriu que o futuro começava hoje.
E com Maria apertando seu braço, rindo e fazendo perguntas, ele decidiu que a partir dali, mesmo que tudo desse errado, futuro seria sua palavra preferida.
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[NA] → Queridos, definitivamente chegamos ao final de Sete Lugares! Sexta será postado o capítulo final (Amy) e os agradecimentos de praxe. QUEM AÍ TÁ CURIOSO PRA ESSE FINAL? Hahaha! Enfim, queridos, até sexta!!! :) ♥
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