29. revelações e meias coloridas

DAMIAN

O sol escaldante deu lugar a um céu carregado e de clima abafado que prometia chuva, mas Damian permaneceu do lado de fora do carro. Encostado na minivan, ele esperava, olhando para os belos portões da mansão e pensando se Amy e as garotas demorariam muito para comprar a maldita Coca-Cola. Lara em breve voltaria com o marido, e o cara por certo estranharia a ausência das meninas. Que merda. Eu deveria ter esperado eles voltarem para ter deixado as garotas irem.

Ele suspirou quando crianças rodearam a rua em bicicletas novinhas, sumindo entre as mansões com risadinhas infantis. Uma música clássica e alegre veio de alguma janela aberta, e Damian sorriu ao pensar na apresentação de Amy no teatro.

Era incrível o quão parecida com a mãe aquela garota conseguia ser.

Na faculdade, Damian se lembrava dos quadros incríveis que Diane pintava entre uma aula e outra, como as cores se misturavam na tela e diziam tantas coisas que ele não compreendia, mas que sentia com uma força extraordinária. Ele se recordava dos dedos de Diane, sempre manchados de tinta, dos macacões folgados dela, dos cabelos loiros sempre presos com algum lenço colorido e daquele sorriso largo e despreocupado sempre cravado em seu rosto brincalhão.

Diane tinha alma de artista, e com a filha deles não poderia ser diferente.

Quando Amy dançou, girando na ponta do pé e fazendo aqueles saltos com os amigos, misturando música clássica e contemporânea, Damian sentiu como se estivesse diante de um dos quadros de Diane. Ele não entendia, mas sentia. Quando a a filha deles dançou, sorrindo e fazendo todos aqueles passos complicados como se fosse fácil, ele sentiu. Esse era o poder da arte: fazer sentir.

A filha deles. Era a primeira vez que Damian pensava em Amy como o produto do amor dele por Diane. Sem saber ao certo os motivos, olhou para o céu nublado e sorriu. Eu não acredito que tive uma filha com você, sua maluca. Se Diane estivesse ali, teria socado seu peito com força e teria dito, semicerrando os olhos: "Você teve uma filha com uma maluca que você ama, seu idiota."

Damian riu sozinho, cruzando os braços. O sorriso sumiu aos poucos por dois motivos. O primeiro foi porque ele que, depois de tantos anos, não conhecia mais Diane. Não sabia se ela ainda comia M&M's feito uma viciada, se ainda acordava ao som de Bob Marley ou se ainda insistia em tomar chá com mel, o que Damian sempre achou muito esquisito.

Ele não conhecia mais Diane, não sabia o que ela diria ou faria. E com a morte dela, aquelas questões nunca teriam um resposta definitiva. Mas você sempre pode perguntar à garota, uma vozinha subversiva sussurrou em sua cabeça. De certa forma, aquele pensamento o confortou.

Até que a garota não era tão ruim assim. Ela era debochada e arrogante, mas sabia ser educada e gentil. Quando queria. Exatamente como a mãe.

O segundo motivo que fez o sorriso tranquilo de Damian sumir foi a visão de um tornado furioso vindo em sua em direção.

Lara vinha na frente do grupo num passo apressado e com o rosto transtornado. Um homem esquisito vinha atrás, tropeçando em sapatos não amarrados. Maria, sendo retardada por Will, esbravejava em italiano e tentava alcançar a camiseta amarrotada do cara. O grupo se afastou dos portões numa velocidade impressionante. Por estar longe, ele não tinha certeza se o que via no rosto do porteiro de cara quadrada era um sorriso enviesado ou uma expressão furiosa.

Damian se desencostou da minivan quando Lara parou em sua frente.

A vizinha tinha os olhos vermelhos, como se estivesse recolhendo todos os esforços do mundo para não chorar. Seu rabo de cavalo estava torto na cabeça, e ela repuxava o cardigan verde com força. Ver Lara daquele jeito, como se fosse ruir a qualquer momento, partiu o coração de Damian em mil pedaços.

— O que hou...

— Vamos embora, Damian. Por favor — pediu ela, o sotaque envolvendo suas palavras. — Vamos. Por favor.

— Claro, eu...

Foi quando o homem se aproximou deles, ofegante.

O sujeito tinha altura mediana, uma barriguinha de cerveja e um rabinho de cavalo prendendo os cabelos castanhos salpicados por fios brancos nas têmporas. A pele do rosto era marcada, delimitada por uma barba por fazer e sobrancelhas grossas que emolduravam olhos cansados e assustados. Para a confusão de Damian, o cara usava uma camiseta amassada, calças de abrigo e sapatos sociais desamarrados.

Além do mais, ele cheirava a sabonete e xampu barato.

Pera aí, esse é o marido de...?

— Lara, me escuta... — começou o sujeito.

Maria se desvencilhou de Will, apontando o dedo para o cara.

— Escutar?! — gritou ela, empurrando o braço de Will para longe. — Eu sempre soube que você era um bosta que não valia nada!

— Não se mete, porra!

— Seu stronzo miserável! Figlio di puttana! — Maria se debateu quando Will a puxou para trás com um grunhido. — Traditore! Seu... seu porco!

Gérard ignorou e, lançando um olhar confuso para Damian, mirou as costas de Lara com uma determinação temerosa. Ele ergueu uma das mãos, mas desistiu de tocá-la. O olhar esverdeado de Lara estava fixo em Damian, que não sabia o que fazer debaixo daquele vendaval que se desenrolava.

Bella...

Como se acordada por um som estridente, Lara se virou e encarou o marido. Damian franziu o cenho para Will e Maria, que ao ver o rosto da irmã, desistiu de avançar em Gérard e se acalmou nos braços de Will. Um silêncio pesado dominou o grupo.

— Não me chame disso — disse Lara, a voz trêmula. — Eu não quero... não quero ver você. Não quero... ouvir sua voz.

Lara abaixou a cabeça e Damian engoliu em seco, o sangue pulsando nas orelhas. Ele não entendia o que diabos tinha acontecido naquela mansão, mas desconfiava estar diante de uma merda forte.

Gérard sorriu de um jeito nervoso, os cantos de sua boca repuxando-se.

— Eu liguei tantas vezes, meu amor. Se eu soubesse que vocês viriam, eu teria...

— Você teria fodido todas as puttane, seu testa di cazzo! — gritou Maria, debatendo-se enquanto Will a puxava para trás. — Você estava transando com aquela mulher no chuveiro! Traditore miserável! Como você pôde?!

Damian arregalou os olhos para Will, que ainda segurava Maria com força. Porra, não pode ser. Gérard não respondeu, apenas mirou a esposa com mais afinco e tentou tocá-la. Ela recolheu as mãos, enojada. O cardigan torto deixava à mostra as alcinhas do vestido e os ombros tensos de Lara, que parecia prestes a chorar.

Gérard sorria desesperado, como uma dona de casa vendo seu lar pegar fogo.

— Por favor, bella. Pense nas nossas meninas, ok? Onde estão Giorgia e Alessia? Sinto tanto a falta delas, e a sua falta. Juro que eu...

— Ah, você jura! — Maria se desvencilhou de Will, metendo-se entre Lara e Gérard. Os dois ficaram a centímetros de distância. Maria empurrou os ombros do cunhado, seu rosto vermelho. — É isso o que Lara ganha por se meter com um stronzo como você. Foi isso o que você fez com o dinheiro que não nos mandou? Fodeu todas as putas que conseguiu encontrar?!

Maria o empurrou de novo.

— Hein, porra?! O que você fez com o dinheiro? Suas filhas estavam passando fome, seu merda!

— Eu já falei para você não se meter! — gritou Gérard, levantando os braços para se defender da fúria dela. — Pare de me bater, sua piranha!

Gérard tentou empurrar a cunhada para longe, mas Will se meteu entre eles. O semblante do amigo estava carregado e ele tinha os punhos cerrados ao lado do corpo, louco para socar a cara de Gérard se ele ousasse tocar em Maria.

Essa porra está saindo do controle rápido demais. De uma hora para outra as pessoas que não viam a hora de chegar naquela mansão estavam chorando, gritando e querendo se socar. Que ótimo. Realmente, era tudo o que Damian precisava naquele momento.

— Will! — gritou ele ao amigo, que tinha as orelhas vermelhas. — Vamos ficar calm...

Damian desviou os olhos para algumas casas adiante e sentiu a garganta se fechar.

Amy ria com as garotas, cada uma com uma Coca-Cola nas mãos.

Porra, precisava ser agora? Gérard, percebendo o olhar fixo de Damian, virou-se e abriu um sorriso ao ver as filhas.

— Meninas! — Ele abraçou Giorgia e Alessia, enfiando a cabeça entre as duas e ignorando Maria, que, apoiada por Will, olhava com uma carranca para ele. — Como vocês estão grandes!

Giorgia e Alessia olharam para Damian e a mãe com rostinhos confusos, cada uma apertando sua latinha de Coca-Cola. No carro, Maria havia dito que elas não viam o pai desde que tinham três anos. Fora uma foto ou outra no Facebook, as garotas mal se lembravam dele.

Possivelmente na visão infantil delas, aquele cara maltrapilho que cheirava a sabonete barato e sorria de nervoso era como um estranho que as abraçava com mais amor do que o necessário.

Lara pareceu acordar de um transe.

— Não toque nas minhas filhas — retrucou ela. Amy franziu o cenho, questionando Damian com um olhar insistente. — Não toque nelas.

Gérard ignorou o aviso, sorrindo para as garotas.

— Como vocês estão, minhas lindas?

— Por que a mamma está chorando? — perguntou Giorgia, antes que Gérard a abraçasse outra vez.

Lara não abriu a boca. Gérard ficou sem graça.

— O papai deixou a mamãe triste, mas tudo vai ficar bem. — Ele sorriu para as garotas. — Ei, vocês não sentiram a falta do seu velho?

— Ver as baleias a deixaria feliz, mamma? — perguntou Alessia, abraçando o Sr. Bolotas contra o peito. Com o rostinho preocupado, disse: — As baleias deixam todo mundo feliz...

— Ou tomar um sorvete, mamma! — Giorgia sorriu, tentando alegrar a mãe.

— Claro! — Gérard sorriu, acariciando o topo da cabeça das meninas. — Que tal passarmos o dia juntos hoje? O papai leva vocês ao aquário para ver as baleias e à praia para tomar um sorvete gigante. O que me dizem?

Giorgia e Alessia hesitaram antes de concordar, sorrindo para o pai. Lara trincou o maxilar e estendeu a mão para puxar as garotas para perto. Damian bloqueou seu caminho ergueundo as mãos. Os olhos verdes de Lara estavam vermelhos, mas ela não chorava.

— Lara...

Ela mirou o fundo da alma de Damian, que estremeceu. Lara negou com um gesto de cabeça, sem desviar os olhos dos dele.

— Não me peça isso — ajuntou ela numa voz rouca.

— Olha, faz quatro anos que elas não veem o pai — argumentou ele. — São só... só algumas horas, ok? Só o suficiente para você... esfriar a cabeça.

Ela negou, cruzando os braços. Damian tocou os braços da vizinha.

— Escuta, se elas quiserem voltar, eu venho aqui e bus...

— Não vou deixar minhas filhas com ele — sibilou ela, apontando para Gérard.

Gérard se levantou do chão, não sem antes lançar uma olhada feia para Damian.

— Olha, Lara, me dá essa chance. Eu sei que... bem, você está nervosa, mas... eu estou feliz que vocês estejam aqui. De verdade. Deixa eu ficar com as pestinhas até amanhã de manhã e...

— Se qualquer coisa acontecer às meninas — ela se aproximou do marido e sussurrou com uma raiva que Damian nunca ouvira em sua voz doce —, eu juro por Deus que explodo a sua cabeça com um cano. Estamos entendidos?

Gérard assentiu e esfregou a própria nuca.

— Não existe a menor chance de... — começou ele num sussurro culpado.

— Não — respondeu ela. Os olhos verdes de Lara miraram o rosto de Damian com uma seriedade sombria. — Vamos embora, por favor.

---

Era a sétima vez que Maria batia na porta do banheiro e recebia como resposta apenas o choro abafado de Lara. Will e Amy, sentados na cama com a cabeça baixa, esperavam. Damian suspirou, passando a mão pelo rosto.

Lara entregara o celular de Maria às garotas e se despedira com um abraço apertado em cada uma — se vocês quiserem voltar, a mamma volta na mesma hora, vocês ouviram? — e, para o terror absoluto de todos, não pronunciara uma palavra entre a mansão e o banheiro apertado do quarto delas no motel Super 7. Lara descera do carro com o rosto duro, sem deixar uma lágrima sequer cair, apenas para desabar no banheiro.

Quando Maria explicara o ocorrido, Damian se sentiu pior do que antes. De todas as pessoas do mundo, Lara seria a última delas a merecer aquilo. Traição. A palavra rodava em sua mente, indo e voltando como uma praga irritante.

Agora estavam ali, sentindo o cheiro amadeirado dos móveis velhos e ouvindo as súplicas insistentes de Maria para que a irmã saísse do banheiro. O choro sufocado do outro lado da porta era o pior de tudo, ele pensou, mirando Amy e Will em seu silêncio entristecido.

Maria chutou violentamente a porta, irritada pela falta de respostas.

— Ela não vai sair. Lara é como uma maldita ostra quando quer! Va bene! — reclamou ela, mas Damian percebeu a tristeza tomar seu rosto quando Maria desabou na cama de casal. — Cara, que merda. Lara não... não merecia isso.

Ninguém discordou. O clima era pesado no quarto, e as cortinas fechadas e o céu nublado do lado de fora não contribuíam para a alegria do ambiente. Tudo era cinza, silencioso e triste.

— Pelo menos acabou — disse Maria. — Acabou de vez.

Quando Lara se trancou no banheiro, Maria contou o que havia acontecido na casa. O breve relato apenas serviu para que Damian fosse sugado por aquele vazio idiota que crescia no próprio peito. Os três estavam em silêncio, cada qual perdido nos próprios pensamentos e vazios, quando o celular de Amy emitiu um bip. A garota franziu o cenho para a tela.

— Ei, você não ia sair com os seus amigos para comemorar? — perguntou Maria.

— Meus amigos estão aqui embaixo, na verdade — respondeu Amy, suspirando. — Mas acho que vou cancelar. Não quero deixar Lara assim...

— Relaxe — disse Maria. — Lara não vai sair daí tão cedo. É melhor você ir, cara. Você veio de longe pra ver sua galera.

Damian recebeu um olhar de Amy. Ele assentiu, mesmo sabendo que ela não precisava de sua aprovação para fazer o que quer que fosse. A garota deu dois tapinhas no ombro de Will e sussurrou:

— Me mande mensagens, certo?

Will assentiu com um murmúrio e Amy se foi, fechando a porta com um click silencioso que mais pareceu um grito naquele quarto que ecoava o choro abafado de Lara. Damian respirou fundo. Aquilo estava acabando com ele.

— Olha, deixa eu tentar falar com ela...

— Boa sorte, cara. — Maria riu sem vontade, sua voz mais rouca do que o normal. — Lara só vai sair daí quando quiser. Acredite em mim. Sou a irmã dela e...

— E você vivia dizendo que o cara era um merda — interrompeu ele. Os dois se encararam. Damian pigarreou e esfregou a ponta do nariz com a mão boa. — O que ele com toda certeza é, mas Lara ainda precisa entender essa porra toda. Ela acreditava que o cara era o máximo, e eu... eu sei como ela se sente.

Damian ignorou o olhar confuso de Maria.

— Vão tomar um café no diner do outro lado da rua — pediu ele. Will, que até então encarava os próprios tênis, levantou a cabeça. — Eu verei o que posso fazer.

Will se levantou da cama com uma expressão pensativa, mas Maria encarou Damian. O pedido "Cuide dela, cara" faiscando em seus olhos castanhos com manchinhas verdes. Os dois saíram sem fazer barulho. O quarto, agora habitado apenas por Damian e por aquele choro incessante e abafado, era claustrofóbico.

Os tênis dele não fizeram som algum sobre o carpete escuro e manchado do quarto. Em poucos passos, Damian estava diante da porta do banheiro. Com um suspiro, apoiou a mão boa na madeira branca, ouvindo durante longos segundos o choro da vizinha.

— Não fique triste — disse ele. Com a boca seca, Damian continuou: — Eu sei como você se sente. Eu... eu também já estive aí, sabe? Tudo pode parecer uma merda agora, mas vai melhorar, Lara. Eu...

A porta foi aberta com um solavanco e Damian quase perdeu o equilíbrio.

Lara estava uma bagunça. O cardigan estava torto em seus ombros tensos, fios de cabelo escapavam do rabo de cavalo e o rosto de Lara estava inchado por causa do choro ininterrupto. Os olhos verdes e bondosos que nunca falhavam em trazer paz a Damian emitiam uma mistura de sentimentos assustadores. O vestido escuro estava salpicado de lágrimas e uma veia pulsava no pescoço bronzeado dela.

Ele se arrependeu quase imediatamente por ter pedido a ela para que não ficasse triste.

Lara não estava triste, mas sim perigosamente furiosa.

— Melhorar? — retrucou ela, como se não conhecesse a palavra. Damian permaneceu num silêncio constrangido. — Estou há doze anos nessa... nessa merda de país tentando fazer as coisas melhorarem. Doze anos!

O sotaque italiano dela era forte, carregando cada palavra com um acento especial que a voz chorosa modificava. Damian piscou. Era a primeira vez que ouvia Lara dizer um palavrão. Ela ficou em silêncio, controlando-se para vociferar as palavras em inglês.

— Doze anos suportando... suportando empregos miseráveis para as bambine não passarem fome, aguentando todo tipo de... de cantada barata e humilhação, porque as coisas vão melhorar. Não se preocupe, Lara! Seja otimista, Lara! As coisas vão melhorar, Lara!

Ela ergueu os olhos avermelhados, e Damian desviou os seus para o chão, constrangido. O ódio e a força do olhar de Lara o impediam de mirá-la.

— E o que você sabe, Damian? Você viveu a sua vida inteira nos subúrbios, nunca passou fome. Ninguém nunca humilhou você do jeito que me humilharam. Você não faz a menor ideia de como é trabalhar como uma condenada e nunca ter nada. Como é negar o pedido de suas filhas porque precisa pagar o aluguel e comprar comida. Você não sabe como é conseguir tudo nos bazares do Exército da Salvação porque o dinheiro vai faltar.

Lara sentou nos pés da cama e chorou baixinho, escondendo o rosto nas mãos. Vendo os ombros dela subirem e descerem naquele silêncio assustador, Damian se lembrou de Amy chorando após o encontro com a avó. Um buraco negro cresceu no peito dele.

Mi dispiace — sussurrou ela, fungando após intermináveis segundos. A voz de Lara não estava tão dura quanto antes. — E eu não estou triste, Damian. Estou... Dio, estou tão cansada. Estou cansada de tentar e não conseguir, de acreditar que as coisas vão melhorar. Estou cansada de... de mentir.

Damian franziu o cenho. Lara secou as lágrimas com as costas da mão, fungando mais alto.

— Eu perdi o emprego de garçonete no pub do Sr. Lee. Um cara passou a mão em mim, e não sei o que me deu. Só sei que quebrei uma garrafa de cerveja na cabeça dele, e o Sr. Lee gritou, dizendo que me queria fora de lá — confessou ela, como se Damian não estivesse ali. As lágrimas voltaram com força. Lara soluçou. — Maria não sabe, e eu não tenho coragem de contar. Todas as noites eu saio e dou voltas no quarteirão para ela não desconfiar, eu...

Ela engoliu em seco e olhou para as próprias mãos, unidas sobre o colo.

— Eu sou tão covarde.

— Ei, claro que não — assegurou ele. As cortinas balançaram com o vento característico da chuva que chegava, e o quarto escureceu. — Não pense assim.

— O que ganho no mercado não vai dar para ajudar a pagar o aluguel, mesmo com o salário de Maria. — Lara fungou, ignorando as palavras de Damian. Ela negou com a cabeça. — Não quero voltar a morar nos blocos. A filha da nossa vizinha foi estuprada e esfaqueada e a menina tinha seis anos. Três a mais do que as garotas na época. Não posso voltar.

Damian sabia, através da televisão e dos jornais, que a vida nos guetos não era fácil. Assassinatos, estupros e tráfico de drogas eram manchetes corriqueiras nos noticiários. Entretanto, diferentemente de Lara, ele nunca vivera num lugar como aquele. Ele nascera e fora criado nos subúrbios, seus pais ainda viviam na casa de quintal amplo e quartos arejados e administravam a floricultura da família sem tropeços ou surpresas. A vida dele, olhando por aquele ângulo, era fácil demais.

Só o pensamento de Lara, Maria e as meninas viverem num lugar perigoso, longe dele, era assustador. Sem mais os post-its lacônicos de Lara na porta, sem mais as risadinhas e os gritos de Alessia e Giorgia através do corredor — que há uma semana ele costumava achar um saco — e sem Maria chegando tarde em casa após outra festa badalada no centro. Quando foi que elas se tornaram tão importantes?

Damian seria privado de uma parte sua se elas fossem embora, uma parte nova que ele estava conhecendo e da qual não queria se desfazer tão cedo.

— Foi por isso que eu quis vir encontrar... — Ela se calou e fez uma careta de dor, não querendo dizer o nome de Gérard. — Achei que ele poderia ajudar, que ficaríamos juntos por um tempo até as coisas se acertarem.

Lara secou as lágrimas. Uma garoa começou a cair, batendo na pequena janela de vidro. Ela contorceu os lábios num sorriso amargo e levantou as sobrancelhas, olhando para as mãos com desdém.

— Além de covarde, sou burra e cega.

— Ei. — Damian se abaixou em frente a ela, segurando seus dedos trêmulos com força. O cheiro de Lara, aquela mistura incrível de biscoitos e massinha de modelar o invadiu, e ele viu os desenhos coloridos de Giorgia e Alessia em seu gesso com um aperto esquisito no peito. — Você não é nada disso, ok? Você é incrível, Lara.

Ela fungou e chorou baixinho, a cabeça baixa. Damian apertou os dedos dela com mais força. Não chore, por favor. Não chore. Não chore.

— Lembra quando eu estava surtando por causa da garota e você disse que estaria lá para me ajudar? Agora é minha vez. Eu, Maria, Will e Amy estamos aqui. Nós... nós amamos você, certo? — Ele sorriu ao dizer aquelas palavras, ainda acocorado em frente a ela. O carpete manchado cheirava a refrigerante de uva, mas Damian não se importou. — E não se preocupe com o aluguel. Posso falar com Grace e tenho certeza que ela vai entender. Você não precisam pagar um centavo até a situação toda se resolver, ok? Eu e Grace só alugamos o apartamento por alugar. Não se preocupe com isso.

Lara chorou, negando com a cabeça.

— Não posso aceitar. Vocês já fizeram um preço baixo para...

— Esqueça isso. Você precisa aceitar, Lara. Eu posso e quero ajudar, ok? — Damian observou como os dedos dos dois se entrelaçavam e comprimiu os lábios, sem saber como continuar. — E sobre o seu marido...

Ela levantou os olhos verdes com manchinhas castanhas. Naquele momento, mesmo com o nariz vermelho, o rosto inchado e os cabelos presos num rabo de cavalo torto, Damian achou Lara a mulher mais deslumbrante e encantadora do mundo. Como você pôde trair uma mulher dessas, cara?

— Por que as pessoas fazem isso? — perguntou ela.

— Sinceramente? Nem ideia. — Sem soltar as mãos dela ou desviar o olhar, Damian sorriu. — Mas alguém muito sábio uma vez me disse que é loucura querer mudar o passado. Você precisa... trabalhar com o que tem, sabe?

Lara sorriu um pouquinho, baixando os olhos com uma fungada profunda. Damian acariciou as mãos dela.

— Ei, isso aí foi uma pontinha de sorriso? — brincou ele, tentando arrancar uma risada de Lara, que sorriu outra vez. Quando o olhar dela se ergueu, Damian ficou sem jeito e encarou os rabiscos de Giorgia e Alessia no gesso que deixava seus dedos à mostra. — Olha, eu não sei o que você vai fazer agora, mas eu... todos nós estaremos ao seu lado.

A garoa se transformou numa chuva grossa que batia incessantemente na janela quando Damian sustentou o olhar de agradecimento de Lara. Ela fungou e secou as lágrimas com as costas da mão. Ele se ergueu do chão e alcançou uma garrafa d'água a ela, que bebeu em silêncio.

— Na Itália, meu sonho era abrir uma confeitaria. — Ela apertou a garrafa e olhou para o teto. Damian sentou ao lado de Lara nos pés da cama, ouvindo com atenção. — Achei que tudo seria fácil quando chegasse aqui. Que eu abriria a confeitaria, ganharia dinheiro e as pessoas me... me reconheceriam pelos doces. Como Mitch Fischer.

Damian franziu o cenho, virando o rosto para Lara.

— Mitch Fischer? O cara que faz bolos na televisão?

— Isso. — Ela sorriu sem vontade. Lara bebeu outro gole e mirou o chão. — Mas então vieram os empregos horríveis, a humilhação, a falta de dinheiro, Gérard... — Ela torceu os lábios, a expressão chorosa tomando seu rosto. — Como pude amar um homem como ele? Maria estava certa o tempo todo, e eu...

Ela baixou o rosto, tentando conter as lágrimas.

— Ei, não pense nisso agora. — Damian colocou a mão boa nas costas de Lara, que assentiu, esfregando os olhos e respirando fundo. Ele se aproximou e sussurrou: — Minha mãe sempre diz que não existe melhor remédio para os problemas do que uma boa soneca. Por que você não descansa um pouco para organizar as ideias? Se você precisar de alguma coisa, Lara, qualquer coisa é só...

— Damian?

— Sim?

— Você pode... ficar comigo?

Ele já estava com a mão na maçaneta para ir embora, mas o pedido, feito naquela voz doce e chorosa, paralisou-o de imediato. Damian se virou. Lara o encarou, e ele se viu soterrado no que Will chamava de Efeito Lara, aquela força esquisita que movia tudo para o melhor, que impedia qualquer um de negar qualquer coisa à Lara.

— Só até eu adormecer... — pediu ela, sem graça.

— Claro, eu... — disse ele, dando um pigarro. — Como... como você quiser, Lara.

Damian sorriu sem graça e soltou a maçaneta da porta, o suor de sua mão escurecendo o metal dourado. Lara desamarrava os tênis quando ele se sentou na cama.

Como um chicote, os pensamentos dele voltaram à noite do casamento. O quarto inteiro cheirava a refrigerante de uva, a chuva aumentava lá fora e ele não parava de pensar naquele beijo, em como Lara o encarou como se ele fosse a criatura mais importante do mundo, em como ele havia pedido para que fossem para a cama.

Damian corou ao se lembrar de como tinha sussurrado contra os lábios dela que a queria. Enquanto desamarrava os próprios cadarços, seus pensamentos eram como os pássaros tatuados no baixo-ventre de Lara, alçando voo, indo e voltando à noite em que se beijaram.

Pare de pensar nessa tatuagem, pelo amor de Deus.

Ele se deitou na cama. Enquanto pensava no que fazer ou para onde olhar, ela o abraçou, descansando a cabeça em seu peito. Damian ficou rígido por um momento antes de abraçá-la de volta, os lábios tocando de leve o topo da cabeça de Lara.

Novamente, o cheiro de biscoito e massinha de modelar dela se fez presente. No silêncio embalado pela chuva, Damian pensou no beijo e em como, com Lara em seu colo e o beijando daquele jeito, nada mais importara.

(Aos poucos, ele descobria que o Efeito Lara podia, também, transformar todos os instantes em pequenos pedaços de infinito.)

Lara ainda usava a aliança de bronze na mão esquerda, e enquanto acariciava seus dedos, Damian tentou imaginar como Gérard ficara quatro anos longe da esposa. Eles haviam se beijado há dois dias e Damian não conseguia parar de pensar nela. Quatro anos, daquele jeito, seriam uma verdadeira prova de resistência.

Ficaram em silêncio, ouvindo a chuva. Lara disse:

— Sobre as garotas...

— Não se preocupe. Assim que amanhecer estaremos lá.

Grazie.

Outra vez, o som da chuva contra as janelas tomou o quarto.

— Você disse que já esteve nesta situação...

— Já — respondeu ele, ainda acariciando a mão dela. — Stacy Chapman, minha primeira namorada.

— Sinto muito.

— Não sinta. Eu tinha dezessete anos e achava que Stacy era a mulher da minha vida. — Damian riu. — Mas o tempo passa e você vai esquecendo que Stacy Chapman transava com Noah Richards no chuveiro do vestiário masculino toda sexta-feira, às quatro horas, depois da aula de Química.

Ela sorriu um pouquinho. Ele deixou um suspiro relaxado escapar. Quando olhou para baixo, Damian não conseguiu conter uma pequena risada.

— O que foi? — perguntou ela.

— Suas meias.

Com as pernas encolhidas contra as dele, Lara usava meias listradas com as cores do arco-íris. Ela se ajeitou nos braços dele antes de responder:

— São de Maria. As minhas acabaram.

— Pode pegar as minhas, se quiser. Sempre trago pares a mais.

Grazie. E eu sinto muito.

— Por quê?

— Por não cumprir minha promessa de fazer o almoço.

Ele riu.

— Cara, às vezes parece que você não existe. E não pense nisso agora, ok? Apenas descanse.

Eles ficaram em silêncio, ouvindo a chuva lá fora. Tão logo um trovão rasgou o céu, Lara se ajeitou contra ele. Damian apertou os braços ao redor dela.

Grazie, Damian.

— Não por isso, Lara.

Sentindo o cheiro de biscoitos e massinha de modelar dos cabelos dela, ele fechou os olhos e adormeceu.

---

Damian fechou a porta do quarto com cuidado, como se o click manso da fechadura fosse um tiro de revólver. Uma rajada de vento frio trouxe algumas gotas de chuva em sua direção, e ele estremeceu, amaldiçoando a ideia idiota de abandonar o calor da cama e o cheiro de Lara por aquele tempo ruim.

Quando Damian acordou, abobalhado pela soneca fora de hora, Lara ressonava baixinho. Abraçado a ela e ouvindo a chuva castigar o lado de fora, Damian demorou vinte minutos para se levantar e deixar o quarto, tomando cuidado para não fazer barulho.

Uma olhada no relógio de pulso indicou que ele dormira duas horas inteiras abraçado à vizinha italiana. Damian sorriu para a plaquinha de metal que indicava o número do quarto, feliz por estar com o braço esquerdo dormente e com o perfume de Lara em sua camiseta.

Ele se virou para descer as escadas, mas encontrou a garota ali.

Com os cabelos negros presos num rabo de cavalo malfeito e ligeiramente molhado pela chuva, ela segurava um bolo decorado com uma carinha sorridente numa das mãos e um pequeno vaso com margaridas na outra. Como quem é pego fazendo algo que não deve, Damian piscou.

— Hm... oi. Achei que você estava com...

— Eu estava — disse Amy, desviando os olhos azuis do chão para a porta do quarto e de volta para Damian. — Mas eu não conseguia me divertir. Como ela está?

— Dormindo um pouco. — Ele sorriu cansado. — E qual é a do... do bolo e das flores?

— Ah, eu quis comprar algo para Lara, então pedi para meu... — Amy fez uma pequena pausa, e Damian pôde jurar que suas bochechas coraram enquanto procurava a palavra correta — meu... amigo parar numa confeitaria. E as flores são... bem, uma vez ela me disse que adorava margaridas. Will e Maria?

— Ainda no diner. Você quer...?

Ela assentiu. Ele tomou o bolo sorridente das mãos da garota. Caminham em silêncio, descendo as escadas do motel e vencendo o estacionamento debaixo da chuva que encharcava os carros parados. As botas de Amy espirraram água enquanto corriam para o diner, e ambos se protegiam como podiam da incessante chuva fria.

Damian viu, numa mesa próxima às janelas no interior do diner vazio, Will e Maria tomando um café sem vontade. Ela descansava o rosto nas mãos, brincando com o saleiro enquanto Will suspirava para a própria xícara. Debaixo da marquise do diner, Damian ajeitou os cabelos. Quando fez menção de abrir a porta, Amy parou em sua frente.

Com exceção dos olhos e dos cabelos negros tingidos, Amy era o retrato de Diane. O nariz arrebitado, o queixo pontudo e insolente, o pescoço longo e até as orelhas da garota se pareciam com as de Diane. Enquanto a olhava, Damian imaginou a cor verdadeira de seus cabelos. Seriam castanhos como os seus, ou loiros feito os de Diane?

Sem graça, Amy alternou o peso do corpo entre os pés, olhando para todos os lados menos para Damian.

— Antes de a gente entrar, preciso... preciso falar com você. Sei que começamos mal e que era para você me deixar na minha avó, mas... bem, a velha não me quis, e para ser sincera, nunca quis morar com ela. Minha maior preocupação era o concurso, mas agora que isso já se resolveu...

Amy ficou em silêncio outra vez. Damian sentiu o coração se contrair no peito.

Ela quer morar comigo. Estranhamente, o pensamento não o assustou tanto quanto no início, e depois daquela cena tenebrosa com a avó, ele não poderia deixar a garota sem um teto para morar. Por mais que ela o odiasse, e Damian tinha certeza de que ela o odiava, não restavam outras opções.

Apesar de os dois não se entenderem, ele era o pai dela. Amy poderia fazer o que quisesse quando atingisse a maioridade, mas Damian não permitiria que ela vagasse pela cidade como uma mendiga procurando por um teto e comida ou sendo detida pela Imigração. Ela era a filha dele, e apesar de Diane nunca ter mencionado a existência da garota, aquele vínculo entre os três nunca poderia ser desfeito. Eu posso usar o quarto de hóspedes como o quarto de Amy, se ela...

— Queria saber se você pode me dar uma carona de volta a Nova York — disse ela, arrancando Damian dos próprios pensamentos. — Já falei com uma amiga e ela pode me abrigar por uns tempos.

Damian levou dois segundos para se refazer.

— Sem problemas, garota. — Sem graça, ele abriu a porta do diner. — Viemos juntos, voltamos juntos.  

Não havia nada mais a ser dito.


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[NA] → Queridos, eu de novo. Vai ser a última notinha, eu juro! Hahaha! Enfim, depois de tantas emoções do capítulo, tenho uma perguntinha: vocês gostariam de ter algum grupo no WhatsApp ou no Facebook (ou em algum outro lugar?) para se encontrar com os outros Bolinhos leitores (que horror de nome, meu Pai amado) ou interagir de algum jeito? Enfim, me avisem se existir o interesse, porque não sei fazer nada disso (tenho 800 anos), mas dou uma procurada aqui hahaha!

Ah, e para os curiosos de plantão: o próximo capítulo vem na sexta e é da Amy! Até a próxima, gente! :)

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