28. fim da linha, caro cognato
MARIA
Bocejando, ela fechou a porta do quarto e desceu as escadas do motel Super 7 com os olhos semicerrados contra o sol da manhã. Por que diabos tudo na Flórida precisava ser tão brilhante o tempo inteiro?
Enquanto se arrastava pelos degraus, Maria viu Damian e Lara discutindo no estacionamento. Ele negava com um gesto de cabeça firme e ela tinha as mãos na cintura, argumentando com um sorriso cansado o que quer que fosse. Não muito longe da minivan, Giorgia, Alessia e Will assistiam a vídeos no celular, alheios aos gestos dos dois.
Maria sorriu ao se lembrar da troca de olhares entre Damian e Lara no teatro e na hora do jantar. Depois da conversa com Will, Maria havia feito o que fazia de melhor: pressionar a irmã mais velha. As meninas roncavam na cama de casal quando Lara confessou, de rosto corado e entre sussurros, que os dois haviam se beijado na minivan na noite da festa.
"Mas não foi nada, Maria", dissera Lara, dando pouca importância a um assunto. "Fomos pegos num momento de fraqueza. E pensei em Gérard o tempo inteiro..."
Certo. Damian não era um Mister Universo, mas entraria sem dificuldades na categoria de un bello ragazzo. Apesar de irritável e reclamão, ele era divertido e estava sempre rindo e comendo doces com as meninas. Fora que o vizinho era possuidor de ombros notáveis e um perfume gostosinho, além de olhos azuis interessantes. Só Deus sabia o quanto Maria gostaria de ver a irmã com um cara cheiroso e bonitão que realmente gostasse dela.
Olhando para eles, ambos absortos na conversa, Maria pensou que poderia dar certo. Se Lara não ficasse com aquela bosta ambulante de marido, poderia dar certo.
— Ainda bem que você acordou — disse Amy, quando ela atingiu a ponta das escadarias.
A garota ainda conservava um resquício da maquiagem que Maria fizera no dia anterior para a apresentação, além de trazer os cabelos tingidos de preto presos num rabo de cavalo bem feito.
Sorrindo com malícia, Maria comentou:
— Ei, buongiorno! Não me lembro de ter visto você voltar ontem à noite...
Durou dois segundos. As maçãs do rosto de Amy coraram, mas ela foi rápida em desviar o assunto.
— Um dos quartos dos meus amigos tinha uma cama sobrando. Acabei ficando por lá. — Ela sorriu sem graça. — Mas o que preciso falar com você é mais importante. Lara quer pegar um ônibus para levar as meninas para verem o pai. — O sorriso encabulado nos lábios de Amy se transformou numa risadinha maliciosa. — Só que Damian não quer deixar.
Maria sorriu de volta. Agora aqueles pequenos cuidados, olhares sorrateiros, e o saco de biscoitos decorados com a bandeira da Itália que Damian comprara para Lara no posto, e que as garotas devoraram em segundos, faziam mais sentido.
As duas se aproximaram. A primeira coisa que Maria ouviu foi a voz de Damian. Ele balançava a cabeça e suas mãos fortes estavam erguidas num gesto defensivo. A expressão dele era séria, como a de um vendedor negando uma oferta insistente.
— Esqueça, Lara. Vocês não vão pegar um ônibus numa cidade estranha, correndo o risco de serem assaltadas por um maluco qualquer.
— Não temos dinheiro — insistiu Lara. Ela usava o mesmo vestido da noite do casamento e o cardigan verde. Além do vestido, Lara usava o velho All Star branco manchado de tinta. Maria riu. Ela parecia uma boneca. — É bem possível que o ladrão nos dê algo ao invés de nos roubar.
— Pior ainda! — retrucou ele, baixando a voz. — Você pode levar uma facada ou o cara pode machucar as meninas. Sem chance. Se alguma desgraça acontecer, não quero ser o responsável.
— Eu não quero incomodar, Damian.
— Você nunca incomodaria, Lara.
A frase foi dita com a mesma certeza de quem afirma que o céu é azul. Os dois ficaram vermelhos. Maria sorriu com o canto dos lábios para Amy, que retribuiu com a mesma malícia.
Damian pigarreou e disse:
— Viemos até aqui juntos, ok? Vamos ficar todos juntos.
— Posso falar com você um instante?
Ele piscou ao ouvir aquelas palavras de Lara. Com um aceno de cabeça para Maria, o vizinho se afastou com Lara para os lados da máquina de refrigerantes. Observando as costas tensas da irmã, Maria se pegou pensando na conversa que tiveram na noite passada. Teria sido tão bom se tivessem rido e falado apenas de beijos como irmãs normais fariam, mas Lara parecia ter a necessidade irritante de trazer o marido à tona em todas as conversas.
"Preciso falar com você sobre Gérard, Mimi", começara ela na noite anterior, mas Maria voltara ao assunto do beijo para implicar. Queria saber os detalhes, como acontecera, quem havia beijado quem.
"Falamos disso depois. E porca vacca, como assim foi você quem beijou Damian?!"
"Dio, fale baixo! Você vai acordar as meninas!"
"Tá, tá. Ele beija bem?"
"Não pensei nisso na hora."
"Nem imagino o que você estava pensando na hora..."
"Você não vale nada, Maria!", sussurrara a irmã, batendo nela com um travesseiro.
Agora, passada a curiosidade e a euforia inicial, Maria percebia um padrão. Não era a primeira vez que Lara tocava no nome do cunhado durante a viagem. O que você está me escondendo?
Estranhamente ansiosa, pensou em perguntar à Amy, mas logo desistiu. Alessia, que encontrara na garota de maquiagem pesada e cabelo tingido sua mais nova super-heroína, afastou-se de Will e Giorgia para puxar Amy pela mão.
— Você precisa me ensinar a ser uma bailarina, sorellona!
— Mas eu não sou uma bailarina, pirralha! — respondeu Amy, rindo.
— É sim! — retrucou Alessia. — Como você fez aquele salto e...
Ela sorriu para a sobrinha, que havia acabado de chamar Amy de irmã mais velha daquele jeitinho infantil encantador, e pensou em como a cabeça de Lara realmente explodiria se tivesse presenciado a cena. Já não bastava as pequenas chamarem Damian de pai, agora mais aquela.
Rindo, Maria foi até Will e Giorgia. Eles tinham as pernas atiradas para o lado de fora da minivan enquanto assistiam alguns vídeos de cabras berrando entre uma música e outra. Os dois riam dos gritos dos bichos; Giorgia com sua risadinha infantil e banguela, Will com aquela gargalhada fofa e meio assoprada que o fazia fechar os olhos como se nada mais importasse.
Dava para entender porque Anne do Marketing gostava tanto dele.
Maria fez um sinal para ele. Will prontamente passou o celular a Giorgia, que continuou com suas risadinhas banguelas, e ajeitou os óculos. Os dois se afastaram da minivan e, quando Maria tinha certeza de que não eram ouvidos, aproximou-se. Como sempre acontecia quando ela se aproximava demais, Will recuou um pouquinho, sua postura rígida.
— A Lara está estranha, cara.
— Estranha?
Maria olhou para os dois lados, com medo de que Lara ouvisse a conversa deles. Viu a irmã em frente à máquina de refrigerantes, ainda gesticulando e discutindo com Damian. Maria voltou os olhos para Will, que corou.
Era engraçado um homem do tamanho dele, que tinha quase a estatura de um jogador da NBA, estar sempre corado e sem graça. Ele era um gigante que agia feito um menininho tímido que enfrenta seu primeiro dia de aula numa escola nova.
Quando Maria se aproximava, a timidez parecia piorar. Ele enrijecia, demorava para responder e nunca a olhava nos olhos por muito tempo. No início, ela pensou que Will não ia com sua cara, que não gostava de seu jeito expansivo, mas não demorou a entender que era só o jeito dele de demonstrar afeição.
— Não sei, porra — disse ela, descansando as mãos na cintura. — De uns tempos para cá ela vem tentando, sei lá, me contar alguma coisa sobre Gérard, mas sempre desiste. Ontem foi a mesma coisa. Você ouviu algo?
Então ele deu a maior prova de que sabia de algo: engoliu em seco e piscou duas vezes, os cílios avermelhados quase invisíveis atrás das lentes. Maria gelou.
— Caralho, você ouviu. Manda.
Ele ficou sem graça, desviando os olhos castanhos para o asfalto do estacionamento antes de erguer o rosto pontudo. Will abriu a boca duas vezes antes de suspirar e erguer as sobrancelhas.
— Ela não sabe que ouvi.
— Saquei. Manda.
— Hoje pela manhã, enquanto você dormia, ouvi Lara saindo do quarto e conversando com as garotas na escada. — Ele fez uma pausa. Maria o incentivou com um olhar. Sem graça, ele continuou num sussurro: — Ela disse "Não se preocupem, picolle! Passaremos um tempo com o babbo aqui na cidade e tudo dará certo. Animadas?"
Maria sentiu o chão faltar. Agora tudo fazia sentido.
Todas as vezes nas quais Lara tentara iniciar uma conversa sobre Gérard era porque, desde Nova York, pensava em se mudar para ficar com o marido. Lara não trocava o assunto em consideração à Maria, que abominava o cunhado e detestava ouvir o nome dele, mas porque pretendia morar com o stronzo e não sabia como dizer isso a ela.
— Isso não pode ser verdade — disse Maria, a voz falhando. — Não pode ser.
— Achei que... que você soubesse, eu... — começou ele, unindo as sobrancelhas numa expressão desolada. — Pela maneira com a qual Lara falou, achei que você... soubesse.
Maria pensou em tudo o que teria de arranjar se ficasse sozinha em Nova York — porque nunca mais voltaria a morar com aquele encostado que Lara insistia em chamar de marido —, e teve vontade de chorar. Se com três empregos elas mal conseguiam se sustentar, Maria, sozinha com seu emprego na agência, não duraria um mês.
E não era apenas a questão do dinheiro que embrulhava seu estômago. Ela não se imaginava vivendo sozinha num apartamento minúsculo, sem as sobrinhas escalando sua cama para as três assistirem aos desenhos que passavam pela manhã na TV, sem sentir o cheirinho de baunilha de Alessia e sem jogar bola no parque com Giorgia. Ela não se imaginava sem as panquecas de Lara, sem a risada doce e os abraços quentinhos da irmã mais velha. Como você pôde fazer isso comigo, Lara?
Maria se lembrava de Lara grávida naquele apartamento miserável em que moravam, do cheiro de urina dos corredores, dos gritos estridentes das prostitutas e da risada espaçosa de Gérard, que passava os dias sentado no sofá arrotando cerveja e gritando com a televisão ao invés de trabalhar e enfiar dinheiro em casa. Voltar a morar com o cunhado seria o fim. Se acontecesse, Maria tinha certeza de que seria presa por homicídio na primeira respostinha malcriada que ele lhe dirigisse.
Seria muita maldade de Lara deixá-la sozinha em Nova York depois de tudo o que passaram juntas naquele país nojento. Não. Lara não seria capaz. Aquilo não aconteceria nem em um bilhão de anos.
Ela trincou a mandíbula. Will a encarava com o rosto corado e o semblante tenso de quem espera uma ordem. Ela bufou.
— Foda-se. O plano segue o mesmo — assegurou Maria. — Vamos encontrar os podres do cara e...
Ela se calou quando Damian e Lara se aproximaram. Os dois sorriam de maneira contida e, naquele intervalo simplório, Maria procurou por algum indício de que a irmã a deixaria, exatamente como a esposa desconfiada caça manchas de batom no colarinho da camisa do marido infiel.
Mas fora a felicidade escancarada de quem está prestes a reencontrar Gérard, Lara não deixava nada transparecer. E isso partiu ainda mais o coração de Maria.
— Convenci a moça a aceitar a carona, mas sob a condição de que ela cuide do nosso almoço — disse Damian, sorrindo. Ele tentou descansar uma das mãos sobre o ombro de Lara, mas desistiu quando Giorgia e Alessia se grudaram às pernas da mãe. Damian pigarreou, coçando a cabeça. — Bem, se vocês não tiverem nenhuma objeção, é hora de irmos.
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A Flórida era diferente de Nova York, mas Maria não conseguiria estar menos interessada nas praias, no sol e na alegria que rondava a minivan. Lara ouvia as meninas falarem sobre baleias, o mar e os sorvetes que tomariam, tentando inserir a lembrança do pai entre um programa e outro. Damian dirigia, lançando olhares furtivos ao retrovisor na expectativa de encontrar o de Amy, que olhava pela janela e, vez ou outra, sorria sem graça para o motorista.
Maria via tudo isso a sua volta, mas não era contagiada pela alegria. Sua cabeça, inquieta, não conseguia parar de mirar Lara, que estava virada para trás com um sorriso gigantesco no rosto, e de se perguntar por quê. De todas as traições que a irmã poderia cometer, aquela seria a mais dolorosa.
Ela sentiu o celular vibrar no bolso traseiro e grunhiu. É o maldito. Só pode ser. Por conta da tela trincada, Maria demorou alguns segundos para ler a mensagem:
Não se preocupe. Provavelmente foi uma conversa boba. W. Greene.
Maria franziu o cenho, rindo. Seus polegares tatearam a tela trincada com agilidade.
Maria: Como você conseguiu meu número?
Will: Banco de dados dos funcionários da agência. Acesso remoto.
Maria: Não era mais fácil ter me pedido?
Will: Não?
Ela olhou para trás e foi recebida por um sorriso. O rosto de Will estava quase livre dos hematomas, e ela percebeu uma covinha solitária em sua bochecha esquerda. Ele ajeitou os óculos e baixou o rosto para digitar.
Will: Gosto de descobrir as coisas sozinho. Me sinto como um ninja ruivo coletando informações confidenciais para o governo.
Maria: Tô vendo.
Will: Enfim, não pude dizer antes, mas acredito ser improvável que Lara fique na Flórida com o marido. Ela é muito ligada a você e sabe o quanto as meninas sofreriam com a sua ausência.
Maria: Espero que você esteja certo...
Ela enviou a mensagem, mas desta vez a resposta não veio imediatamente como antes. Will digitava com a cabeça baixa, absorto na tarefa. As meninas voltaram tagarelar sobre as baleias e a praia, sem deixar espaço para a mãe falar sobre o pai, quando a resposta de Will brilhou na tela trincada do celular de Maria.
Will: Estou certo, sim. Ninguém seria maluco de escolher ficar longe de você, Maria :)
Maria sorriu para a tela e virou a cabeça para encarar o cúmplice. Will tinha o rosto corado, os cabelos ruivos arrepiados de um lado e os óculos remendados escorregando pelo nariz fino.
Com aquele sorriso encabulado e a covinha solitária, Will se parecia com os protagonistas das comédias românticas que ela e Lara assistiam à noite, enroscadas no sofá depois que as meninas caíam no sono. O papel do cara doce e tímido que não sabe como dizer à mocinha imbecil e distraída que a ama cairia como uma luva para Will. Dá para entender por que a Anne do Marketing tem uma quedinha por ele.
Caras doces e tímidos sempre foram uma raridade na vida de Maria. No fundo, ela não sabia a razão de atrair tantos idiotas, tantos imbecis que pensavam ser o centro do universo, mas os números não a deixavam mentir; caras legais eram as moscas brancas de sua vida amorosa.
Homens gostosinhos, educados, bacanas e com corpos que eram uma nota oito e meio naquela cueca maneira d'Os Jetsons, homens como Will, não se atraíam por Maria. Tipos como Anne do Marketing, com aqueles peitões e uma personalidade encantadora de princesa moderna da Disney, levavam vantagem com os caras que valiam a pena. O mundo nem sempre era justo.
Se acontecesse tal milagre, se um cara legal como Will realmente estivesse atraído por ela, Maria não agiria como as mocinhas idiotas dos filmes. Se o encontrasse, ela não faria rodeios: agarria o cara com unhas, dentes, braços e pernas. E beijos. Muitos beijos.
Mas quem disse que os caras legais queriam alguma coisa com ela?
Um toque polifônico silenciou a conversa animada entre Lara e as garotas. Damian franziu o cenho para o painel multimídia, onde o ícone de um celular vibrava.
— Chamada da agência no domingo — disse ele, confuso. Damian apertou um botão no volante. — Bom dia, Jenna?
— Oh, bom dia, Sr. Harris — disse a voz nervosinha da secretária. — Estou ligando para avisar que a apresentação do primeiro esboço para o trabalho do Sr. Bonker foi um sucesso. O projeto foi aprovado com louvor!
— Fico feliz. — Damian sorriu. — Dê meus parabéns à Meg e tirem uma folga amanhã. Ninguém merece trabalhar num domingo. Sinto muito por isso.
— Ah, obrigada, Sr. Harris. — Maria imaginou Jenna corada, agarrando o telefone com força. — Mas o cliente só poderia domingo. O senhor sabe como essas equipes de famosos são temper... a senhorita poderia aguardar um momento, por favor?
Jenna se afastou um instante do telefone. Ao fundo, Maria ouviu um murmúrio feminino. A secretária voltou à linha com seu pigarro característico. Apesar de vê-la muito pouco, Maria gostava da pobre Jenna, que era agitada como um rato viciado em cafeína e competente feito um robô.
— Sinto muito incomodá-lo, mas há mais um problema. — Jenna fez uma pausa. — Consta nos registros que a Srta. Spezzaro, responsável pelas cópias, não aparece desde segunda-feira na agência...
— Ah, sim. Ela está comigo e Will.
— Se ela está com os senhores, então não há... — A voz de Jenna sumiu da ligação, como se alguém puxasse o telefone para longe de suas mãozinhas nervosas. — Srta. Berliv, por favor!
Uma voz irritada e autoritária encheu a minivan com um "Me dê isso aqui, Jenna!" que fez Damian quase perder o controle do carro. O motorista de um sedã buzinou e enfiou o dedo do meio para fora quando a minivan invadiu a outra pista.
Maria olhou para Will, que tinha os olhos castanhos arregalados no banco de trás.
— Você está com ela, Damian?! Parece que a irmã da sua vizinha pobretona não transa somente com traficantes, não é mesmo?
— Como é que é?! — rebateu Maria, franzindo o cenho.
Uma risada fria chegou de Manhattan para inundar a minivan mum silêncio digno de filme de terror. Nem as garotas, tão falantes sobre as baleias, praias e sobre o sorvete abriram a boca.
— Ela realmente está aí. Meu Deus, que tipo de homem é você?!
— Não posso falar agora, Irina. Vamos conversar com calma quando eu...
Damian apertou discretamente o botão para encerrar a chamada no volante, mas nada aconteceu. A risada debochada ressoou outra vez pelo carro.
— Conversar? Você viaja para a outra ponta do país com uma mulher, deixa a sua aliança de noivado na mesinha de centro e quer conversar?! — Damian fechou os olhos com força, a característica expressão de Fodeu-Com-F-Maiúsculo estampada em seu rosto quadrado. — Como você acha que estou me sentindo?! Como você se sentiria se eu largasse tudo para viajar com outro homem?!
— Eu não estou viajando com outra mulher. Pelo amor de Deus. Will está aqui comigo.
Ele apertou diversas vezes o botão para encerrar a chamada, mas a ligação, como um sinal divino, recusava-se a ser encerrada. Damian era a própria face do desespero.
Ouvindo aquela merda toda, Maria teve vontade de bater com a cabeça da noiva do vizinho nas calçadas ensolaradas da Flórida. E a vontade só aumentou quando a voz dela perguntou:
— William está com você?! Então é isso o que vocês fazem quando viajam? Festinhas com vagabundas italianas?
— REPETE ISSO AÍ SE VOCÊ TEM CORAGEM! — Maria tentou se enfiar entre os bancos para socar o painel, mas Giorgia segurou sua blusa. — REPETE!
— Maria, per favore!
Tão logo as palavras saíram da boca de Lara, outro silêncio inquietante, cortado apenas pela respiração pesada de Maria, tomou a minivan. Damian suava no volante. O momento ficou suspenso até a noiva dele rir novamente.
— Vocês não estão com uma irmã, mas com as duas! Eu não fazia ideia desse seu fetiche por mães solteiras e mulheres pobres. Deve ser bom para o seu ego, não é? — provocou ela. Uma risada curta e amarga ecoou pelo alto-falante. — Aproveite que está na praia, pegue essas italianas pobretonas e faça um belo de um filme por...
Damian deu um soco no volante, desligando a chamada antes que ela finalizasse a frase. As mãos dele tremiam. O silêncio no interior do carro só era quebrado pelo anúncio de rádio da nova batata frita com chocolate do Barley's.
— Eu sinto tanto... Maria, eu... Lara. Meu Deus. Eu sinto muito...
Antes que Damian continuasse com os pedidos de perdão, o toque polifônico inundou o carro outra vez. Maria apertou os olhos ao ler o nome de Irina no painel multimídia.
— Atenda — disse ela numa voz rouca, tentando conter a fúria. — Vou dizer umas verdades para ela.
— Chega — decretou Lara, estendendo a mão a Damian. Ele entregou o celular a ela. O toque soou novamente, mas Lara, com as bochechas coradas como um tomate, desligou o aparelho e o enfiou no porta-luvas. — Chega de ligações.
— Chega de ligações — repetiu Damian, assentindo sem tirar os olhos da rua. — Você está certa. Chega de ligações.
Maria respirou fundo algumas vezes, entretanto a vontade de reajustar a cara daquela mulherzinha não abandonava sua cabeça. Quando estava quase se acalmando, Giorgia coçou a cabeça e soltou outra bomba no colo deles:
— O que é "fetiche", mamma?
Lara trocou um olhar desesperado com Maria, que se voltou para Will. Ele arregalou os olhos e abriu a boca. No banco da frente, Damian fez uma careta de dor, como se fosse o causador da pergunta difícil.
Amy, entretanto, foi a única que riu. Ela bagunçou os cabelos de Giorgia e sorriu para as garotas, apoiando os braços nos bancos do meio. Alessia apertou o Sr. Bolotas contra o peito, esperando.
— É só um substantivo, meninas.
As garotinhas deram de ombros e voltaram a brincar com as Barbies. Foi como se a minivan inteira respirasse outra vez. Lara relaxou os ombros e sorriu para Amy. Damian, sem saber o que fazer, aumentou um pouquinho o volume do rádio. O celular trincado de Maria vibrou. Era outra mensagem de Will.
Will: Se ainda quiser dizer algumas verdades a Irina, será um prazer passar o número dela a você... >:)
Maria se virou e encontrou um sorriso malicioso no rosto pontudo de Will.
Rindo, ela entendeu direitinho por que Anne do Marketing era louca pelo cara.
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Damian estacionou na frente de um portão de ferro negro ricamente trabalhado e se virou para eles. As bochechas do motorista ainda estavam coradas por conta da discussão com a noiva, mas ele sorriu.
— Chegamos.
A casa — mansão, na verdade — que se estendia para lá do gramado era uma réplica quase perfeita daqueles casarões ingleses que Maria via nos seriados de época na televisão. Tudo era branco e com colunas, pilares e janelas gigantescas. Os jardins pareciam retocados pelas mãos de um anjo; nenhuma árvore, arbusto decorativo ou canteiro de flores tinha falhas. Era como se o próprio Sr. Darcy fosse surgir de trás de alguma daquelas fontes para alimentar os passsarinhos.
Pelo menos naquilo o crápula do cunhado não havia mentido. A dona do lugar não era rica, mas podre de rica. Do tipo que, realmente, alimenta os cães com salmão e cream cheese.
Do lado de fora do carro e dos portões, Maria se esticou, trocando um olhar com Will, que ajeitou os óculos e assentiu como se estivesse num filme de ação. Lara pediu a Damian e Amy que ficassem de olho nas garotas enquanto elas buscavam Gérard para fazer uma surpresa e tanto! Maria revirou os olhos.
Os três — ela, Lara e Will — foram até a portaria, onde um homem engravatado e com cara de policial estava de guarda. Foi então que Lara parou, rindo para Will. Ele estacou e Maria enrijeceu os ombros. Ela sabia, só de olhar para a cara dele, que Will seria um mentiroso de merda e colocaria tudo a perder se Lara fizesse a pergunta certa.
— Você quer ir junto, querido?
— Eu...
— Sim — interveio Maria, engatando o braço no dele. Ela sentiu os músculos de Will se retraírem debaixo do tecido fino da camisa quadriculada. — Ficamos juntos na noite do casamento e Will me contou que é maluco por jardins, não é?
Ela apertou o braço dele, que assentiu como um robô.
— Oh, eu não sabia disso, querido. — Lara franziu o cenho, sorrindo. — Que... diferente.
— Will é cheio de surpresas, sorella! — Ela sorriu. — Vamos falar com o cara?
Quando chegaram à portaria, um cúbiculo envidraçado ao lado dos portões, Lara explicou a situação. O porteiro, que estava de braços cruzados do lado de fora, tinha a cara quadrada, sobrancelhas negras profundas e um cabelo brilhante penteado com gel. Ele usava camisa social branca e gravata preta, além de calças e sapatos da mesma cor. Parecia desconfiado, olhando para Will com receio, mal ouvindo as palavras doces de Lara.
Mas ao captar o nome de Gérard, os olhos profundos do homem voaram para Lara. Maria percebeu, Will também. Quando a irmã terminou de explicar que era esposa de Gérard e estava ali para visitar o marido e fazer-lhe uma surpresa — trouxemos as meninas para darem um abraço no pai! —, o porteiro sorriu.
Algo naquele sorriso, que tinha uma pontinha de escárnio e pena, fez o coração de Maria falsear uma batida. Ela apertou o braço de Will. O maldito pressentimento de que alguma merda estava pronta para sair do forno roncou no estômago dela.
— A esposa de Gérard? — perguntou o porteiro, como se tivesse ouvido mal. — Esposa do motorista?
— Isso! — Lara sorriu, radiante. Aquele vestido a deixava com um ar tão puro que era impossível negar-lhe qualquer coisa. O porteiro, contagiado pelo o que Will chamava de Efeito Lara, sorriu também. Mas, novamente, era um sorriso de pena. — Ele vai adorar a surpresa! Viemos de Manhattan para as meninas darem um abraço no pai.
— Que pai não adoraria uma surpresa dessas, não é mesmo? — perguntou ele. — Só vou interfonar para a minha patroa e liberar a entrada de vocês, ok? — O porteiro puxou o interfone e sussurrou algumas palavras, assentindo. Com um sorriso debochado, disse: — O alojamento dos funcionários fica nos fundos. É só seguir o caminho de pedra e dar a volta na casa.
— Ah, grazie! — disse Lara.
— É o quarto A20 — continuou o porteiro. Com uma raiva mal disfarçada, ele sorriu e disse: — Eu não deveria dizer isso, mas gostei da senhora e adoro finais felizes. A chave do quarto fica escondida embaixo do vaso ao lado da porta. Aposto que eles vão adorar a surpresa.
Lara, cega e surda com a felicidade de reencontrar o marido, assentiu. Eles vão adorar a surpresa. Maria apertou o braço de Will. Alguma coisa estava errada ali. Eles vão adorar a surpresa.
Will pigarreou.
— Eu vou ficar aqui, se você não se importar, Lara.
— Ficar? — perguntou ela, franzindo o cenho.
— Sim — respondeu ele, corando. — Quero comentar o jogo... de basquete... com nosso... amigo.
— Antes de ver os jardins?
Will corou. Maria pigarreou.
— Claro. Se tem uma coisa que Will gosta mais do que jardins, essa coisa é basquete, não é, Will? — disse Maria. Ele assentiu devagar. — Bem, vamos deixar os rapazes se divertirem, sorella.
Lara deu de ombros e seguiu pelo caminho de pedras. Maria olhou para o homem engravatado com um sorriso e assentiu para Will, deixando-os para trás. Pelo amor de Deus, descubra um podre que seja impossível de ignorar, pensou ela, seguindo pelo caminho com o coração aos pulos.
Quando alcançou a irmã, que não parava de sorrir para os canteiros de flores e para tudo naquele jardim de cinema, Maria quis vomitar ao pensar que, em breve, veria a cara feia de Gérard. Ela suspirou enquanto caminhavam para os fundos da mansão. Lara falava rápido, gesticulando e sorrindo para os passarinhos como se fosse uma Princesa da Disney.
— Quando Gérard ver que as garotas estão aqui, ele vai ficar tão alegre! — dizia ela, rindo sozinha.
Maria trincou a mandíbula, chutando uma pedrinha. Eles vão adorar a surpresa. O que aquilo significava? O sorrisinho furioso do porteiro não saía dos pensamentos de Maria.
Avançando pelo caminho de seixos até a construção retangular que abrigava os empregados, ela pensou em como gostaria de pegar o dinheiro que aquele imbecil lhe devia, dar um murro naquela cara sebosa e voltar a Manhattan o quanto antes. O vestido leve de Lara esvoaçava por conta de uma brisa quente, e Maria foi atingida por um vazio terrível.
Você vai ficar com ele e me deixar sozinha. Ela parou, sentindo os seixos pontiagudos pinicarem seus pés, o ar queimar nos pulmões e a traição de Lara tensionar todos os seus músculos. Depois de terem feito o diabo para entrar nos Estados Unidos, Lara a abandonaria para viver com aquele crápula.
Quando chegaram em frente à porta marcada com o A20, Maria fez uma careta. Rindo como uma adolescente apaixonada, Lara se abaixou, pegou a chave escondida debaixo do vaso e girou a maçaneta do quarto de Gérard.
Não era um grande aposento, mas também não era um lugar digno de pena. Havia uma cama de solteiro desfeita e encostada à parede da direita, um criado-mudo bagunçado ao lado da cama, uma boa televisão de tela plana, uma cômoda azul novinha, uma cozinha conjugada repleta de louças na pia e, por fim, outra porta fechada, que dava ao banheiro. Gérard não estava no quarto, mas a luz do banheiro estava acesa e o som do chuveiro ligado enchia o aposento.
As duas entraram. Além da colônia barata e insuportável do cunhado, Maria sentiu outro cheiro. Perfume de mulher, identificou ela quando um aroma floral fez seu nariz coçar. Apoiando-se na bancada da pequena cozinha onde descansava um maldito computador portátil de última geração, Maria fez outra careta.
Ele não tinha dinheiro para mandar às filhas, mas o salário parecia sobrar para aquele maldito computador e para a porcaria do videogame que repousava num banco de madeira. Lara apoiou as mãos na cadeira onde Gérard deixava as roupas e sorriu para Maria, que cruzou os braços.
O chuveiro ainda rosnava quando ela decidiu agir.
— O que você está fazendo? — sussurrou Lara, franzindo as sobrancelhas quando Maria abriu violentamente os armários da cozinha, afastando os pratos e copos para enxergar melhor o interior. — Mimi!
— Procurando pela minha grana — retrucou ela num tom azedo, afastando-se da cozinha e passando pela televisão presa à parede do banheiro. O cheiro de sabonete infestou o ar. Maria rosnou, afastando as cobertas da cama desarrumada de Gérard. — Duvido que ele me pague, então quero me prevenir.
— Ele vai pagar — protestou Lara baixinho, revirando os olhos. Maria grunhiu. — Pare de abrir as gavetas, Maria, isso é...!
Ainda com os dedos no puxador, o queixo de Maria caiu.
A gaveta do criado-mudo de Gérard estava repleta de camisinhas fechadas. Todas as cores de embalagem saltavam dali como letreiros luminosos nas noites de Nova York. O que um cara casado, que mora longe da esposa, faz com tantas camisinhas no criado-mudo? O coração de Maria palpitou quando apenas uma resposta surgiu em sua cabeça.
Mas isso não era o pior.
Maria ficou rígida quando encontrou, em meio ao mar de preservativos, um maço de dinheiro escondido, preso com uma velha borracha amarelada. Trêmula, puxou as notas para fora. Aquilo era dinheiro de verdade, pelo menos mil paus descansando na gaveta dele enquanto ela e Lara equilibravam as contas da casa e o aluguel como podiam. Maria trincou a mandíbula, apertando o maço. Eu sabia.
O tempo parou dentro do quarto.
Lara franziu o cenho para a gaveta, então para o dinheiro.
— O que é...? — começou ela, apertando uma camisinha entre os dedos.
O chuveiro foi desligado e uma risada estridente veio do banheiro.
Uma risada feminina.
Você não fez isso. Foi tudo o que Maria conseguiu pensar quando a porta do banheiro foi escancarada e uma jovem loira, enrolada numa toalha felpuda e usando um coque bagunçado meio molhado, materializou-se na frente delas.
— Você está fugindo de mim, bella?
Os olhos da moça se arregalaram, e antes que ela pudesse dizer alguma coisa, Gérard abraçou-a por trás, escondendo o rosto no vão de seu pescoço pálido e rindo. A moça estava rígida, olhando de Lara para Maria como uma criança que é pega fazendo bagunça.
Confuso com aquele silêncio, Gérard ergueu os olhos.
— Lara?! — perguntou ele, soltando a moça.
O rosto da irmã estava perdido, olhando para uma cena que não parecia real. Lara atirou a camisinha fechada no chão e saiu do quarto como um tornado.
Maria soube, então, que era o fim da linha para Gérard.
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[NA] → Queridos, uma observação importante: o Wattpad não anda notificando vocês sobre a postagem dos capítulos, maaaaas é só aparecer por aqui segundas, quartas & sextas, no finzinho da tarde (18h ~19h) que a atualização vai estar aqui, viu? Um beijão no coração de todos, e até a próxima! :)
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