24. o encontro (pt. II)
AMY
A casa de Esther Thomas ocupava boa parte da esquina daquele subúrbio recheado de mansões. Em estilo mediterrâneo e com colunas imponentes, o casarão se parecia com uma daquelas propriedades imensas e pomposas que os astros do cinema compram em Los Angeles ou Malibu. Tudo era branco, gigante e perfeito. Não se parecia em nada com uma casa aconchegante e familiar.
Com a mochila esfarrapada no ombro, Amy engoliu em seco. Na Escócia, ela e a mãe viviam num sobrado caindo aos pedaços que, justamente por ser antigo e ter tijolos aparentes, possuía um charme difícil de ser batido. A casa das duas era aconchegante, com móveis que não combinavam, tapetes manchados de tinta e aquela bagunça controlada que dá vida a um lar.
Parada ao lado lustrosa da caixa de correio da mansão, Amy teve certeza, mesmo antes de entrar na casa, de que não encontraria um fio de cabelo fora do lugar ali.
Lara e as garotas estavam sentadas no meio-fio, brincando com as mãos e rindo enquanto Will e Maria conversavam baixinho. O coração de Amy se retorceu no peito quando ao pensar que, teoricamente, seria sua despedida da minivan. Não ouviria mais as risadinhas de Alessia e Giorgia, nem Maria cantando em italiano e nem Will explicando como passar desta ou daquela fase no videogame. Era o fim.
Mas é o que você precisa fazer, pensou ela. Por Tommy, Liz e os outros. Amy tinha a boca seca quando a figura alta de Damian bloqueou o sol.
— Então... — disse ele, esfregando a nuca com uma das mãos.
De novo, Amy não soube o que dizer.
Quando estacionaram na frente da casa da avó, tudo o que ela queria era ver a minivan dobrar a esquina sem alongar aquele sentimento bosta de perda que só crescia, mas eles não quiseram saber. "Esperamos você entrar, querida. Não vamos deixar você sozinha aqui", havia dito Lara. Amy quis responder que não precisava, que estava tudo bem, mas não conseguiu. A verdade é que estava apavorada, e ninguém era capaz de resistir aos olhos verdes e maternais de Lara.
— É. Chegamos ao final — disse Amy, dando um pigarro e ajeitando a mochila no ombro. Ela estendeu a mão, tentando ao máximo não tremer. — Valeu pela carona, cara.
Damian encarou a mão estendida dela como tentasse ler ali uma frase escrita em russo num livro virado de cabeça para baixo. Amy cerrou os dedos num punho. Ficaram em silêncio, ouvindo o silêncio aterrorizante daquele bairro de gente endinheirada.
— Você vai ficar bem? — perguntou ele.
— Eu sei me cuidar. — Ela deu de ombros, tentando soar despreocupada. Damian a encarou. Sem graça, Amy pigarreou. — Tá tudo certo, cara. Eu preciso ir.
— Olha, não posso deixar você ir assim — disse ele, bloqueando o caminho quando ela tentou tocar a campainha. Damian esfregou o nariz com as costas da mão boa, as bochechas corando. — Você é minha... nós...
— Ei, pensei que você quisesse fazer o exame antes de... de definir qualquer coisa — brincou ela, camuflando o nervosismo com uma risadinha sarcástica. Ele não se moveu. Amy ajeitou a mochila no ombro. — Sem problemas, cara. Eu não preciso de um pai e você não quer uma filha. Estamos quites. Valeu pela carona, e sinto muito por... por qualquer coisa aí.
— Se é assim que você quer fazer — disse ele, dando de ombros como uma criança contrariada. Amy sentiu os olhos azuis de Damian se cravarem aos seus e, naquele segundo interminável, uma mudança curiosa ocorreu. Parecendo um desses filhotes de cães em feiras de adoção, ele perguntou: — Posso... posso entrar com você?
Amy ia protestar, dizer que eles já deveriam estar a caminho do marido de Lara, longe dali, longe dela, mas que diferença faria negar? Mesmo sabendo que ele havia odiado cada segundo daquela viagem idiota, Amy devia isso a Damian. Ele me trouxe até aqui, nada mais justo do que ver como termina. Ela sorriu sem graça e deu de ombros.
Quanto menos tempo perdessem naquilo, melhor.
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Após serem recebidos por um mordomo velho, magro e com a careca manchada, os dois entraram numa sala de estar que as revistas de decoração descreveriam como amplas e Amy descreveria como gigantesca. Os móveis projetados, tapetes felpudos e os sons de vozes alegres vindos da piscina no quintal criavam um clima de cinema difícil de ser batido naquele casarão dos sonhos. A senhora elegante sentada no sofá de couro branco poderia muito bem ser a Barbie Malibu quando atingisse a terceira idade.
Olhando para a avó e ouvindo a respiração pesada de Damian em suas costas, Amy ajeitou a alça da mochila no ombro. A garota buscava na memória a última vez em que havia estado na presença de Esther Thomas. A lembrança, vívida como uma camiseta amarela secando ao sol, não demorou a se desenhar diante dos olhos de Amy.
Ela tinha 10 anos e voltava da escola num dia de verão, correndo pela estradinha de terra porque era o dia da semana em que ela e a mãe almoçavam na cidade, visitavam galerias de arte e tomavam sorvete na praça da prefeitura.
Amy havia escancarado a porta de casa com um sorriso que sumiu ao encontrar uma senhora elegante, enfiada num terninho bem cortado, numa discussão acalorada que cessou quando ela entrou. Esther Thomas olhava para a mobília gasta e para Amy como se tudo fosse gosmento, como se uma maré de lesmas habitasse as paredes de tijolos aparentes do sobrado.
Naquele dia, depois que a avó foi embora, ela e a mãe não saíram para passear. Quando Amy perguntou quem era a mulher, a mãe grunhiu, fez uma omelete e disse "É só a bruxa da sua avó, pirralha. Cale a boca e coma seus ovos."
Em silêncio naquela sala gigantesca, Amy não precisou pensar muito para confirmar que estava na presença da avó. O queixo pontudo, o nariz arrebitado e os lábios finos gritavam a semelhança entre a avó e a mãe, mas algo nos olhos de Esther Thomas a distanciavam de Diane Thomas.
Os olhos da mãe, Amy se lembrava, eram de um castanho vivo, risonho e acolhedor como um abraço quentinho num dia de chuva. Os olhos de Esther Thomas eram verdes, mas não como os de Lara. A avó tinha aquele olhar pálido e sem vida de quem não inspira nenhum sentimento bom.
Mas Amy não estava ali para admirar os lindos olhos verdes da avó. Você só precisa que ela assine o papel. Só assinar o papel e vazar.
— Então? — perguntou Esther, levantando as sobrancelhas. — Em que posso ajudá-los?
— Eu sou sua neta. Lembra de mim? — respondeu Amy, e as palavras percorreram a sala gigantesca como uma dessas maldições que silenciam tudo. A avó não respondeu. — Então, eu, bem, eu preciso que você... que você assine um papel para mim.
— Ah, sim — disse Esther, a voz e a expressão inalteradas. — Creio que me lembro.
— Pois é. — Amy deu uma risadinha. — Temos algumas questões para resolver, mas o papel é... bem importante para mim.
Termine logo com isso, pensou ela, trocando o peso entre os pés debaixo do escrutínio frio que recebia de Esther. A avó não se alterou. Entrelaçou os dedos sobre os joelhos e avaliou Amy tal qual um comprador de cavalos faria.
— E você? — perguntou Esther a Damian. — O que quer?
— Ah, eu sou... sou Damian Harris. — Ele avançou em direção a ela, a mão estendida. — Sou o pai da garota. Tudo certo?
Esther encarou a mão estendida de Damian com o mesmo olhar de desprezo que havia lançado às paredes do sobrado há cinco anos. Sem graça, ele pigarreou e ajeitou os cabelos. Amy tamborilou os dedos na alça da mochila. Vamos lá, vovó. Estou com um pouquinho de pressa aqui.
— Você não deveria estar na Escócia, menina? — perguntou Esther.
— Bem, você é a responsável-legal por mim com a morte da minha mãe, então... — Amy deu outra risadinha nervosa. O rosto de Esther se contorceu. Então, veio a realização. — Pera aí. Você não foi...
— Não fui aonde, menina?
— Ao enterro. Você não foi ao enterro dela.
Fazia um sol de rachar naquele dia horrível. As chuvas haviam passado e os passarinhos cantavam em fontes de pedra, mas Amy só queria morrer, ser enterrada com ela. Joe, o dono do pub O'Heary e último namorado da mãe, chorava como uma criança, esfregando o nariz na manga da camisa, e Marlene, vizinha e melhor amiga da mãe, abraçava Amy e repetia "Você pode ficar comigo, querida" como um disco quebrado.
Todo mundo estava lá. As senhoras da floricultura, os garçons do O'Heary, os velhinhos que jogavam damas na estação de trem e a dona do mercadinho, que sempre dava o troco nas balas preferidas de Amy. Todo mundo estava lá, menos Esther Thomas. Eu deveria ter sacado que o buraco era mais embaixo.
— O que você queria que eu fizesse? — A avó franziu o cenho. — Diane estava morta, menina. Minha presença não a traria de volta. Ainda não possuo o dom de ressuscitar os mortos.
A mãe nunca falara da avó sem uma pitada de desgosto. Amy se lembrava, agora com o estômago revirado, de como a mãe sempre começava com "Aquela velha miserável..." quando queria se referir à Esther. Era engraçadinho, principalmente quando viam Esther num jornal ou outro, mas ao vivo era asssustador.
Depois da morte do avô, ela havia se casado com um velhote ricaço durante uma viagem à América. O cara, dono de inúmeras destilarias de petróleo e empreendimentos, morrera num acidente de barco pouco tempo depois. "Não me surpreenderia em nada se descobrissem que essa velha maldita matou o cara para herdar o dinheiro", a mãe dissera ao ver a foto dos dois num jornal. Na época, Amy havia rido.
Agora, olhando para a mulher sentada naquele sofá elegante, com olhos frios e sem expressão, cogitou seriamente a possibilidade. A mãe que é capaz de ignorar o enterro da própria filha não é pode ser uma boa pessoa.
Parece ser uma delícia viver com você, pensou Amy, ajeitando a alça da mochila no ombro. Mas não era para viver com ela que estava ali. Nunca havia sido, na verdade. Tinha um objetivo desde o início, claro como água, e não envolvia uma relação duradoura entre neta e vovó.
A velha, que ainda conservava algumas mechas loiras entre os cabelos grisalhos bem penteados, sorriu com impaciência.
— E o que você quer dizer com responsável-legal? Creio não ter entendido...
— Ah, ainda sou menor de idade — explicou Amy, confusa pelo sorrisinho na boca da avó. — Preciso de um responsável para assinar uma autorização e...
— Ora, por que não pede ao seu pai? — O olhar de Esther se fixou em Damian, que franziu o cenho. Antes que ele pudesse responder, ela ergueu o dedo indicador. — Ah, espere. Não me diga. Ele não quer você. Meu Deus, parece que a história se repete, não é?
— O que você quer dizer? — perguntou Damian, a voz trêmula.
— O óbvio — resmungou Esther. — Você não quis Diane quando ela estava grávida, e agora não quer a menina. A história se repete, papai fujão.
— Eu não sabia que ela estava grávida.
— Pelo amor de Deus. Que diferença isso faz? — retrucou a velha. — Você e Diane se merecem. Onde você esteve esse tempo todo? É meio tarde para ter uma crise de culpa, não?
— Ei, não fale do que você não sabe — respondeu Damian, passando na frente de Amy. A avó permaneceu sentada, impassível. — Diane nunca me contou. Ela sumiu na manhã...
— Ela largou a faculdade por sua causa. Vocês estragaram a vida da minha filha. Os dois.
Amy engoliu em seco, apertando a alça da mochila. Só pega a autorização e vai embora, pensou ela, mas seu corpo não obedecia. Debaixo daquele olhar frio da avó, Amy só queria o abraço da mãe.
Com as orelhas vermelhas, Damian reclamou:
— Tenha um pouco de respeito. A garota é sua neta e veio de longe para...
— Para ficar comigo, já que você não quis ficar com ela. De novo. — Esther levantou as sobrancelhas para ele. — Estou errada?
Quando nenhum dos dois respondeu, a velha deixou uma risada baixa escapar. Como se flutuasse, ergueu-se do sofá e serviu uma dose de uísque com gelo. Girando a bebida no copo, Esther disse:
— A sua mãe, menina, era uma desgraça. Uma pura e completa desgraça do início ao fim. Se não fosse pelo papai fujão e pela gravidez indesejada, sua mãe nunca teria largado a faculdade. — Ela retorceu os cantos dos lábios. — Era uma boa artista, apesar de tudo. Poderia expor no MoMa e no Guggenheim se quisesse, mas preferiu se entocar naquele casebre miserável em Edimburgo por você, porque a vida é maior do que expor em museus. Pelo amor de Deus. Já não bastasse ter uma artista na família, ainda mais essa. Diane sempre foi uma desgraça.
Amy apertou a alça da mochila. Esther fechou a cara, servindo-se outra dose de uísque.
— Como você consegue falar assim da sua filha? — perguntou Damian, o cenho franzido. — É a sua filha, porra.
— Diane e eu nunca nos entendemos. Desde que o diabo da garota começou a falar, discordou de mim, enfrentou-me. Sempre aquela empáfia, o nariz arrebitado, agindo como se fosse a rainha da casa. Existem mágoas entre uma mãe e uma filha que o tempo não apaga. — Esther sorriu para Damian. — Mas o que você sabe sobre isso? Paternidade e maternidade são conceitos que não existem no seu dicionário.
Damian trincou a mandíbula. Amy pegou a autorização do bolso traseiro do jeans e venceu os poucos passos até a avó. Espalmou o papel sobre o bar diversificado de Esther e engoliu em seco. Não chore. Não na frente dela.
— Assine — ordenou Amy. A avó fechou a cara, girando o uísque no copo, fazendo os cubos de gelos cantarem. — Assine e você nunca mais vai pôr os olhos em mim.
Esther Thomas inclinou a cabeça para ler o papel. O coração de Amy batia furioso no peito, ecoando nas orelhas. Ela cruzara um oceano e uma fronteira para que a velha assinasse aquela porcaria de autorização, para não decepcionar Liz, Tommy, Fred e os outros, principalmente a Srta. Meadows e o Sr. Bell.
Não havia a opção de ir embora sem a porra da assinatura.
— Você é igual a ela, garota — disse Esther, amarga. — Uma artista cheia de ideias vazias na cabeça. Uma pobre alma desgraçada.
— Tenho orgulho de ser como minha mãe — respondeu Amy. Ela indicou a folha, amassada pela viagem, com um gesto de cabeça. — Vamos lá. Assine.
— Acho que não, menina. — Esther sorriu sem vontade, bebendo outro gole de uísque. As unhas da avó, Amy percebeu, eram negras como as suas. A única diferença era que o esmalte estava intacto, sem uma falha sequer. — Acredite em mim. Estou lhe fazendo um favor. Considere isso como um presente de avó para neta.
— Você vai assinar essa porra por bem ou por mal. Não vou sair daqui sem a assinatura.
— E você vai me obrigar?
— Você quer tentar?
— Chega disso. — Esther fechou a cara. — Rogers irá acompanhá-los até a saída.
— Não vou sair.
— Ei, olha só... — começou Damian, aproximando-se.
Amy engoliu em seco. Não queria consolo, muito menos vindo dele. Não. Chore. Esther a encarou, esperando por uma reação que não veio. Com uma fúria fria, que explodia debaixo daquela expressão pétrea, a avó ameaçou:
— Rogers ou a polícia, menina. Você escolhe.
Aquela batalha, ela sabia, estava perdida. A garota fechou a cara. Agora entendia por que a mãe sempre começava dizendo "Aquela velha miserável..." quando queria falar em Esther Thomas.
— Não se incomode — retrucou Amy, enfiando a autorização de volta no bolso. Ajeitou a alça da mochila no ombro e se afastou, tremendo. Os dois já estavam na porta, com o mordomo careca seguindo-os de perto, quando Amy se virou. — E sinceramente? Minha mãe foi uma mulher incrível. Graças a Deus ela não se espelhou em você para me criar. Espero que você se foda, vovó.
Esther ergueu o copo como se brindasse. Quando Rogers fechou a porta atrás deles, Amy correu. Ouviu a voz de Damian gritar seu nome, mas não parou.
Só quando estava longe, correndo como se a própria vida dependesse disso, Amy permitiu que as lágrimas insistentes descessem por seu rosto.
Estava tudo acabado.
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