23. o encontro (pt. I)

AMY 

— Como diabos ele consegue sumir numa cidade com menos de mil habitantes? — Damian colocou as mãos na cintura e trincou os dentes, andando de um lado para outro no quarto. Amy, sentada na cama de Will, observava ele ir da porta do banheiro à cômoda, passando pela cama e refazendo o trajeto. — Quando eu penso que o William não consegue inventar outra coisa, ele some nessa cidadezinha medíocre assim que amanhece.

Amy sorriu, abaixando a cabeça.

Tão logo havia acordado, jogara uma água no rosto, refizera a maquiagem e fora chamar Will e Damian para engolir um café e seguirem viagem. Hoje é o dia, e nada pode dar errado. Entretanto, quando Damian abrira a porta com o semblante fechado e a notícia do sumiço de Will, o coração de Amy se apertou. Se não chegassem à Flórida hoje, todo o esforço teria sido em vão. E isso não pode acontecer.

— Você acha que aconteceu alguma coisa? — perguntou ela. Damian negou com a cabeça, encarando o carpete. — Tipo, que ele poderia ter saído antes de você acordar e...

— É impossível. Tenho certeza absoluta que ele não voltou. — Damian coçou o queixo, pensando. — Você sabe se aconteceu alguma coisa na festa? Tipo, depois que eu saí...

Amy coçou a cabeça. A festa estava boa, a música country depois de uma cerveja ficava menos irritante, os docinhos eram incríveis, alguns casais caíram de bêbados, mas fora o normal, nada acontecera. Exceto por aquela senhora subindo na mesa e levantando as saias, a festa havia sido relativamente normal.

— Se aconteceu, não vi — respondeu ela, dando de ombros. — Eu estava com Giorgia e Alessia, mas as garotas ficaram com sono, eu também fiquei com sono e de saco cheio de ouvir música country e fui embora com elas. Will ficou Maria.

Damian parou de caminhar pelo quarto. Os olhos dele se grudaram aos dela como se Amy tivesse dito os números da loteria.

— Will ficou com Maria? — perguntou ele. — Você tem.. tem certeza disso?

— Sim. Quando saí eles estavam dançando e rindo. E bebendo — respondeu Amy. — Maria estava bem... alta. Will teve que juntá-la do chão algumas vezes.

— E Lara? — perguntou Damian, como se tivesse medo que as palavras escapassem. Amy ficou em silêncio, franzindo o cenho. Sem graça, ele massageou a nuca. — Ela, tipo, voltou para a festa?

Damian, antes fazendo perguntas como se fosse um detetive policial de filme B, agora parecia um adolescente tímido que usava as palavras com cautela. Amy o encarou.

Quando voltou ao quarto com as garotas, havia encontrado Lara sentada na cama com as pernas encolhidas, mordendo a unha do polegar e olhando para a janela como quem precisa resolver um problema sem solução. As garotas, apesar do sono, correram para o abraço da mãe, arrancando-a da contemplação solitária. Naquele breve segundo, Amy percebera um brilho esquisito no olhar de Lara, que ouvia as filhas falarem sobre as danças e doces como se não ouvisse. Como se estivesse se sentindo culpada.

Damian a encarou, pressionando pela resposta. Amy sorriu com o canto dos lábios.

— Lara não voltou para a festa. Quando cheguei com as meninas ela já estava no quarto, e aí apaguei. — Ele assentiu. Amy deu de ombros. — Mas Will estava na festa com Maria. Disso tenho certeza.

— Você acha que eles...

Damian começou, mas se calou logo em seguida, sentando-se na cama em frente a ela. O ventilador de teto grunhiu, o cheiro de camomila dos lençóis bem lavados encheu o quarto e Damian, parecendo um garotinho de bochechas coradas e olhos brilhantes, inclinou-se como se fosse contar um segredo a ela. Amy, involuntariamente, fez o mesmo.

— Que eles... — continuou Damian, sem graça. Amy ergueu as sobrancelhas para se divertir um pouco. Damian semicerrou os olhos. — Você entendeu. Você já é... já é grandinha e sabe de onde vêm os bebês, não sabe? Ou quer que eu... que eu explique?

— Você é meu pai há uma semana e já quer ter esse tipo de papo? — Amy fez uma careta. — Pelo amor de Deus.

— Ei, o que você quer que eu faça? Não sei que tipo de... de educação você teve, se a biruta da sua mãe tocou nesse assunto, se você tem um namorado, se... — Damian se calou novamente. As bochechas de Amy coraram. — Pera aí, você tem um namorado? Ou uma... uma namorada?

— Quando foi que a minha vida virou o tópico da conversa, cara? — reclamou ela, esfregando o nariz com as costas da mão. — Vamos falar com a Lara. Talvez ela saiba sobre Maria e Will, se é que alguma coisa... rolou.

— Podemos tomar café antes? — perguntou ele, sem graça. — Estou morrendo de fome.

— É, eu também estou — respondeu ela, igualmente sem jeito. Era esquisito ficar no mesmo cômodo do que ele sem brigar ou usar sarcasmo. Quando passou por ele na porta, Amy sorriu com o canto dos lábios. — E se Lara não souber de nada, podemos sempre chamar o nosso amigão Oficial Bigode.

— Obrigado por acabar com o meu bom humor, garota — resmungou ele.

Desceram as escadas de madeira bem polida e, chegando à cozinha, encontraram um prato de panquecas e um bilhete da Sra. Wharton, avisando que havia saído para fazer compras. O coração de Amy se encheu de amor pela velha senhora e seu estômago deu pulos de alegria ao ver as panquecas quentinhas, recheando a cozinha com o melhor cheiro do mundo.

Os dois se sentaram nas banquetas da ilha da cozinha, dividindo as panquecas. Damian estava pensativo, encurvado e enfiando as panquecas na boca sem vontade. Amy o examinou com o canto dos olhos. Não é só o sumiço de Will que o preocupa. A garota se serviu de outra xícara de café e não precisou esperar muito para entender o que se passava com Damian.

Conversavam sobre o sumiço de Will e a festa da noite passada quando Lara entrou na cozinha, sozinha. Ela usava a camiseta do Mickey Mouse, os jeans manchados de tinta escolar, o All Star branco e o habitual rabo de cavalo prendendo os cabelos negros. Era a Lara de sempre, com os mesmos olhos verdes e o sorriso bondoso, mas Damian se levantou da banqueta como se estivesse diante da rainha da Inglaterra.

Eles se encararam como se a próxima palavra fosse sagrada, preciosa ou difícil demais para ser dita. Parece que não foi só com Will que rolou... alguma coisa.

Com ambos sem graça, de pé na cozinha, Amy engoliu a panqueca e pediu a Lara para que sentasse com eles. Corada, Lara lançou um último olhar a Damian antes de tomar o lugar ao lado de Amy na ilha.

Aquele silêncio, com Damian concentrado no prato de panquecas e Lara olhando para cada detalhe da cozinha, exceto para o cara que estava em sua frente, era quase acusatório. Amy observou os dois, pegou outra panqueca do prato e perguntou como quem não quer nada:

— Rolou alguma coisa?

— O que você quer dizer com isso? — perguntou Damian, rápido demais. Lara enrijeceu na banqueta, as bochechas coradas. — O que poderia ter... ter rolado?

— Quando saí do quarto, Lara não estava. — Amy sorriu com o canto dos lábios. Peguei você, cara. Sem graça, Damian baixou o rosto para as panquecas. A garota se voltou para Lara. — Tudo certo?

— Ah, sim. Eu estava... obrigada, querida. — Ela sorriu quando Amy serviu-a de café numa caneca do Presidente Clinton. Lara envolveu a xícara com as mãos, dando de ombros. — Estava procurando por Maria, na verdade. Ela não voltou para o quarto e...

— Pera aí. Ela não voltou? — perguntou Damian, franzindo o cenho. — Você tem certeza, Lara? Certeza absoluta de que Maria não voltou?

— Tenho, eu...

— Eles transaram! — Damian riu para Amy, batendo a mão boa no tampo da ilha. Ela tomou um gole de café, rindo dele e da expressão confusa de Lara. — William, seu filho da puta, você é o mestre!

— O quê...?

Lara olhou para os dois, tentando entender o que se passava, mas Damian estava no ápice da euforia. Amy balançou a cabeça, rindo.

— Will tem uma... quedinha por Maria — explicou Amy, despejando mais calda sobre as panquecas. — Você não tinha percebido? Não é como se ele fosse muito sutil.

— Não, eu... — Lara abriu a boca, tentando encontrar as palavras, mas Damian atropelou a conversa, agarrando-se à borda da bancada. Os desenhos de Giorgia e Alessia reluziram em seu gesso encardido.

— Uma quedinha? — Ele deixou escapar uma risada sarcástica. — Você está sendo legal, garota. Will é apaixonado por ela há uns três anos.

— Maria nunca me falou nada. — Lara franziu o cenho, porém sorria.

— Bem, ela não falou porque não sabe. Ou não sabia. Cara, acho bom o William me contar todos os detalhes. — Amy apertou os olhos para o comentário, assim como Lara. Sem graça, ele explicou: — Quer dizer, não todos os detalhes, mas alguns. Vocês entenderam. Pelo amor de Deus.

— Eu nunca pensei que Will, quer dizer, ele nunca... — Lara riu, possivelmente pensando nos dois como um casal. Amy mastigou e completou a xícara dela com café enquanto Damian servia panquecas à Lara. — Mas ele nunca... obrigada, queridos. Dio, isso é tão... tão esquisito!

Damian largou as próprias panquecas e, parecendo uma garotinha pré-adolescente ansiosa para contar uma fofoca bombástica, inclinou o corpo para a frente, soltando risadinhas. Amy riu também, começando a entender os motivos de sua mãe para escolher aquele cara para ser seu pai. De um jeito engraçado, eles até que são meio parecidos. Os dois completamente sem noção.

— Ok, estou me segurando para não contar, mas dane-se! Se o Will descobrir que falei isso para vocês, ele nunca mais olha pra mim. — Ele ficou sério de repente, mirando cada uma com atenção. — Juro. Uma vez dei uma receita dele para a mãe de Irina, e Will ficou três dias inteiros sem falar comigo.

Então Damian apoiou os cotovelos no tampo da ilha, erguendo os dedos mindinhos. Lara sorriu, baixando o rosto antes de interligar o próprio dedo ao dele. Amy franziu o cenho, sentindo o olhar de Damian e os desenhos infantis de Alessia e Giorgia no gesso dele como uma pressão quase física.

— Promessa de dedinho? — perguntou ela. — Sério, cara?

Ele ergueu as sobrancelhas, incentivando-a. Amy balançou a cabeça, mas acabou por ceder. Tão logo os três ficaram com os mindinhos unidos, Damian respirou fundo. Unindo as mãos em frente aos lábios como se fosse rezar, ele disse:

— Três anos atrás estávamos comendo um cachorro-quente na esquina, quando Maria desceu para levar o lixo. E, sério, o Will ficou louco por ela. Foi, tipo, amor à primeira vista. Ele me fez todo tipo de pergunta, e eu contei o que sabia. Talvez vocês achem o cara um pouco... esquisito, mas aí vai.

Damian suspirou, olhando para cada uma e saboreando a curiosidade. Amy percebeu que estava na ponta da cadeira, esperando pela próxima palavra. Lara, da mesma maneira, tinha o rosto apoiado nas mãos, ouvindo com atenção.

— Will tem uma maneira meio bizarra de demonstrar afeição. Ele tenta descobrir indiretamente tudo o que você gosta e se esforça pra fazer essas coisas acontecerem.

— Tipo um... stalker? — perguntou Amy, limpando as mãos num guardanapo.

— É, mais ou menos — respondeu Damian. — Ele descobriu tudo o que Maria gostava através da internet e fez algumas coisas por ela. Tipo enfiar cupons de desconto na Casa do Waffle por debaixo da porta e entregar todo mês, por engano, a revista que ela gosta no apartamento de vocês.

— Foi ele?! Dio! Maria estava preocupada. Me disse que viu um homem esquisito, de boné, fazendo entregas e rondando o prédio. Era Will?! — Lara ergueu as sobrancelhas. — Isso é... Dio. Por que ele nunca falou para ela?

Damian deu de ombros, remexendo as panquecas com o garfo. Ela sabia que Damian estava adorando aquilo, a atenção toda. Amy encheu a própria caneca, vendo Damian colocar outra panqueca no prato de Lara, que agradeceu com um sorriso sem graça.

— Ele não fala nada porque tem medo de parecer tarado, meio obsessivo — confessou ele, rindo. — E porque Will acredita que se fizer as pessoas felizes, as pessoas farão outras pessoas felizes, criando uma corrente mundial de felicidade infinita. Mas enfim, quando Will descobriu que Maria precisava de um emprego, ele fez o diabo para ela ser contratada na agência. Eu tive de fazer um teatro desgraçado, imprimir um jornal de bairro com a vaga e deixar na porta de vocês porque, veja bem, ele não queria indicar a vaga a ela. Ele queria que ela conquistasse o trabalho, que ficasse feliz por isso.

— E ela era a única candidata — adivinhou Amy, sorrindo. Aquilo era a cara de Will. — Acertei?

— Não sei como ela não desconfiou na entrevista com o RH. Ela era a única candidata esperando, cara — disse Damian, rindo. Lara largou a calda em cima das panquecas, lambendo o dedo indicador ao fechar a tampa. — Mas sabe o que é pior? Pensei que depois disso Will pelo menos falaria com Maria, mas ele nunca disse mais do que um bom-dia a ela.

Ele revirou os olhos, fincando o garfo nas panquecas. Damian tinha o rosto quadrado apoiado na mão e uma expressão amuada. A cada garfada que ele dava, os desenhos de Giorgia e Alessia brilhavam em seu gesso.

— Qual é a dificuldade em chegar no balcão de cópias e dizer "Ei, você quer tomar um café comigo?" e acabar logo com isso? Mas acho que esse jeito tímido funciona com as moças. Sei que vocês podem não acreditar, mas Will teve muito mais namoradas que eu na faculdade. — Ele sorriu. — Sei que é um fato chocante, mas tentem não desmaiar em cima do café da manhã, meninas.

As duas riram e ele deu de ombros. Damian serviu mais café à Lara, que agradeceu e entregou a calda à Amy, que naquela confusão de risadas e panquecas se sentiu acolhida. Lara sorria e Damian falava sobre Will. A cozinha da Sra. Wharton, repleta de panos de prato bordados com galinhas sorridentes, era aconchegante, o cheiro delicioso das panquecas quentinhas pairava no ar, e Amy se perguntou se era assim que a maioria das famílias passavam as manhãs.

Quando a mãe era viva, a cena de felicidade era quase a mesma. As duas acordavam num mau humor que sumia após a primeira xícara de café e outro desastre culinário da mãe logo cedo. Amy achava engraçado como a mãe conseguia ser uma péssima cozinheira. Além de macarrão instantâneo, café e omelete, Diane Thomas era a rainha das torradas — quando conseguia se lembrar de tirá-las da torradeira estragada.

Viver com ela era como morar com uma colega de quarto meio artista que se esquece de pagar as contas e que cozinha mal, mas que tem os melhores abraços, os melhores conselhos e a melhor risada do mundo.

Amy sorriu para as panquecas, sentindo a falta da mãe como um tapa no ouvido, desses que deixam a cabeça zumbindo. Damian contava a elas uma história sobre o medo que Will tinha dos próprios sobrinhos, mas Amy não ouvia. Ainda envolvida pela falta da mãe, ela não conseguiu odiar o cara que ria, gesticulando com a mão engessada e se divertindo com a história.

Ele não sabia. A culpa não é dele, pensou Amy. Depois de um tempo, até que Damian não era tão ruim. Ele era irritante e imbecil, mas podia ser pior. Podia ser um grosseirão como o...

— Bom dia, bom dia, amigos!

O vozeirão do Oficial Hershel Lakin preencheu cada cantinho da cozinha. Ele usava uma camisa quadriculada justa no corpo, jeans e trazia o chapéu ridículo de cowboy nas mãos. Damian trincou a mandíbula quando o policial puxou uma banqueta e sentou ao lado de Lara. Como ninguém respondeu à saudação, ele sorriu.

— Tudo certo? O que acharam da festa?

— Foi ótima, Hershel. Nos divertimos muito. — Lara foi a única a responder, sorrindo sem graça. — Helen foi uma noiva perfeita.

— Helen estava deslumbrante. Aliás, foi uma pena você não ter voltado para a pista! — exclamou ele, sorrindo na direção de Lara com aquele bigode bem aparado. Com uma piscadela sugestiva, Hershel completou: — Somos ótimos dançarinos. Eu e você formamos um belo par.

Damian apertou os olhos, mastigando as panquecas como se comesse terra. Lara sorriu sem graça, apertando a xícara entre os dedos. Amy franziu o cenho, parando o garfo a meio caminho da boca quando percebeu o olhar de Hershel cravado em sua direção.

— Qual foi? — perguntou ela.

— Você se divertiu, garota? — questionou ele, ficando sério de repente. Sem esperar resposta, Hershel levantou as sobrancelhas. — Parecia... estar com sede ontem.

Amy apertou os olhos para o policial, vendo a expressão confusa de Damian e Lara a encarar de volta.

Ontem, quando o sistema dela quase entrou em colapso após ouvir tanta música country, Amy bebera uma cerveja tão aguada que não fizera nem cócegas em seu estômago repleto de docinhos. Aquele mijo que os americanos insistiam em chamar de cerveja poderia ser servido na merenda de crianças escocesas no lugar do suco de maçã. Ninguém notaria a diferença.

— O que você quer dizer com isso? — perguntou ela, enfiando as panquecas na boca.

— Não quero dizer nada. — Hershel se serviu de café. Com os olhos presos aos dela, disse: — Só acho que você é um pouco jovem para beber. Quantos anos você tem?

— Foi só uma cerveja.

— Não foi isso o que perguntei, garota. Só acho que...

— Guarde o que você acha para si mesmo, amigão — rebateu Damian. Os olhos de Hershel faiscaram em direção a ele. — A garota é adolescente e só bebeu uma cerveja. Do jeito que você fala, parece que ela encheu a cara e desmaiou em cima da mesa.

Ela agradeceu com um olhar, que Damian respondeu com um gesto imperceptível de cabeça. Lara enfiou o rosto na xícara, e Amy tinha certeza de que ela escondia um sorriso. Hershel, pego de surpresa pelo apoio de Damian, fechou a cara.

— Bem, é assim que começa. uma cerveja, um cigarro e de "só" em "só" a garota começa a usar...

— Drogas? — perguntou Damian. Com o riso de deboche preso aos lábios, ele apontou o garfo na direção dela. — Aliás, preciso te contar umas histórias da sua tia, garota. Ela foi a maior maconheira que já conheci na minha vida.

Hershel ficou mortificado, corando debaixo do bigode. Amy, rígida na banqueta, não conseguiu expressar reação. Lara foi a única que riu, franzindo o cenho.

Dio, você está falando sério? Grace não me parecia o tipo...

— Ah, Lara, elas nunca parecem. — Damian riu, apoiando os cotovelos no balcão. — Sério, a sua tia era muito chegada numa erva quando era nova, garota. Acho que o fato de a família ter uma floricultura fez crescer em Grace o amor pelas plantinhas, se é que você me entende.

Lara riu, balançando a cabeça e tomando mais um gole de café. Amy sorriu sem jeito. O cara que a acusava de ser uma maconheira satanista há poucos dias, agora a defendia do interrogatório do policial.

Hershel enrijeceu na banqueta.

— Este é um assunto muito sério — disse ele. — Adolescentes não devem...

— Pelo amor de Deus, Hershel — resmungou Damian. — Pare de bancar a Madre Teresa de Calcutá. A garota só bebeu uma cerveja num casamento onde a grande maioria estava podre de bêbada. Não é o fim do mundo.

— Vocês da cidade têm ideias muito liberais, amigão.

— Vocês do interior que são muito atrasados, meu chapa.

Os dois se encararam. Hershel abriu a boca para responder, mas por sorte Will e Maria entraram na cozinha da pensão da Sra. Wharton. Todos silenciaram, virando-se para encarar os recém-chegados.

Maria se esticou e bocejou, soltando um gemido de atriz pornô. Ela tinha os cabelos negros presos num rabo de cavalo quase desfeito que escorria pelos ombros, e caminhava com o andar despreocupado, como se todos a esperassem na cozinha. Will, logo atrás, sorria olhando para baixo, o que fazia seus óculos remendados escorregarem pelo nariz aquilino. Ele tinha os cabelos ruivos espevitados de um dos lados, e ambos usavam as mesmas roupas da noite anterior.

Amy sorriu com o canto dos lábios para Damian. Aquilo só poderia significar uma coisa.

Buongiorno — desejou Maria numa voz rouca. Os outros murmuraram bom-dias curiosos enquanto eles sentavam. Will puxou um banco para ela, que agradeceu e desabou, servindo-se de panquecas. — Tudo certo?

— Tudo — respondeu Lara, abraçando a xícara e sorrindo de maneira cúmplice para Amy. — E você? A noite foi... boa?

Ela riu em resposta, a boca cheia de panquecas. Will apoiou a cabeça nos braços, olhando para Maria com um sorriso no rosto. Hershel tentou falar com Lara, mas Damian pigarreou, tomando outro gole de café.

— E você, Will? Passou bem a noite?

— Melhor seria impossível — respondeu ele, sem desviar os olhos de Maria.

— Nunca me diverti tanto. — Maria riu, limpando a boca num guardanapo. Hershel tentou outra aproximação com Lara, mas a atenção dela estava presa em Maria. — Cara, que noite. E as meninas?

— Puxaram à tia — respondeu Lara, sorrindo. — Ainda estão roncando no quarto

— Imagino. Elas dançaram à beça ontem. — Maria riu para a irmã mais velha. Mastigando como um homem das cavernas, o olhar brincalhão dela parou em Hershel. — Alguma novidade sobre o carro?

Alegre por ser prestativo e receber a atenção de Lara, o policial se empertigou no banco, estufando o peito forte. Amy fez uma careta. Damian semicerrou os olhos, franzindo os lábios.

— É justamente sobre isso que quero falar com vocês! — A voz potente de Hershel preencheu todos os vazios da cozinha. — Os meninos acordaram mais cedo, receberam a peça e já estão trabalhando na minivan. Assim que vocês quiserem, posso levá-los até lá.

E fixando os olhos amendoados em Lara, Hershel sorriu esperançoso.

— Assim poderemos ficar mais um tempo juntos.

Lara corou, sorrindo sem graça para as próprias panquecas. Damian semicerrou os olhos, cruzando os braços. Amy tomou um gole de café e, por cima da xícara estampada com a bandeira dos Estados Unidos, invejou Will e Maria, que entretidos com uma conversa à parte, não perceberam os avanços ridículos do policial.

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Depois de Hershel flertar com Lara durante todo o trajeto até a oficina e beijar a mão dela antes partirem — e de aguentar o mau humor de Damian durante boa parte da estrada por causa disso —, Amy viu o que Will disse ser o rio St. Mary, a entrada do estado da Flórida. Finalmente, porra, pensou ela.

Nervosa, apertou o celular nas mãos, ignorando as notificações e as mensagens insistentes de Liz, Tommy e de todo o resto do grupo. Amy tinha certeza de que até a Srta. Meadows e o Sr. Bell estariam mandando mensagens e ligando se tivessem o número dela. "ONDE VOCÊ ESTÁ???" e "Já chegou, pequena?" foram mensagens que acompanharam Amy durante as cinco horas em que levaram até avistar a placa que os recebia no Estado Ensolarado da Flórida.

Nada vai dar errado, pensou ela, respirando fundo e balançando as pernas. No fundo, Amy não poderia se importar menos com a avó. Nem por um segundo pensou na velha, em morar ali. Os pensamentos de Amy, desde que entrara aquele avião para o Canadá e cruzara a fronteira dos Estados Unidos, estavam fixos nos amigos, no que eles precisavam fazer.

Nisso e nessa porra de papel que a velha precisa assinar para mim, pensou, retribuindo o sorriso banguela de Giorgia para camuflar o nervosismo.

— Quem está animada para ver o papai? — Lara riu, virando-se para encarar as meninas no banco de trás.

— Antes podemos ver o mar, mamma? — Os olhinhos de Alessia brilharam, e a irmã mais velha assentiu. — Eu vi na TV que aqui eles têm baleias de verdade! A gente precisa ver o mar, mamma!

— E comer algodão doce! — complementou Giorgia, enfiando-se entre os bancos. — Aqueles gigantes e cor-de-rosa como a Barbie!

Amy percebeu o semblante de Lara se anuviar. Confusa com o fato de a animação das meninas ter pouco ou nada a ver com a perspectiva de reencontrar o pai, Lara encarou as filhas, que faziam mil planos para a viagem.

— Não se pode culpar as picolle por não quererem ver alguém que passou tanto tempo ausente, não é mesmo? — Maria ergueu as sobrancelhas para o próprio celular quebrado, seus polegares voando no teclado. — Até porque elas nem devem se lembrar da cara do pai...

— Maria — repreendeu Lara num tom maternal.

— E nós vamos conhecer a sua nonna, Amy! — Alessia apertou o urso de pelúcia, o Sr. Bolotas, contra o peito. Amy sorriu para a garotinha de rosto redondo. — A sua mamma vai estar lá com ela? É por isso que o Sr. Harris está indo também?

O silêncio que invadiu a minivan foi ensurdecedor. Amy abriu a boca, mas não soube o que dizer. A lembrança da mãe a atingiu como um caminhão em alta velocidade. Recebeu um olhar constrangido de Damian pelo retrovisor, e percebeu que Maria parou de digitar no celular para espiá-la. Will empurrou os óculos para cima, observando a cena em silêncio. Sem graça, Lara se ajeitou no banco.

Pupa, não faça tantas per...

— Ela não vai estar lá, Alessia — respondeu Damian, antes que Lara pudesse repreender a filha mais nova. Amy sustentou o olhar com ele através do retrovisor, incapaz de desviar o rosto. — Ela, bem, ela... ela está morta.

Outro silêncio encheu o carro, que deixava a estrada para trás, passando por casinhas e prédios. Alessia e Giorgia abriram a boca, trocando um olhar triste. Maria já não olhava mais o celular. Will mirava Lara, que esfregava a medalhinha entre os dedos.

— Nós sentimos muito, Sr. Harris — disse Alessia, apertando o Sr. Bolotas contra o peito. — O signore a amava?

Amy percebeu, pelo retrovisor, o rosto de Damian se enrijecer. Ele desviou os olhos azuis para a rua, que ficava mais cheia conforme avançavam pela cidade. Um sorriso triste, resignado, surgiu em seu rosto quadrado e bem barbeado. Lara estava prestes a pedir perdão quando Damian continuou:

— Ainda a amo, Alessia. Quando você ama alguém e essa pessoa morre, o amor não desaparece, ele apenas... apenas se modifica. Nunca vou deixar de amar a mãe de Amy.

A garota pensou na falta que a mãe fazia na casa delas em Edimburgo, nas gargalhadas espalhafatosas que não existiam mais, no rádio do porão tocando Bob Marley enquanto ela pintava outro quadro. Amy baixou o rosto e fechou os olhos com força, concentrando-se apenas em não chorar. Não chore, não chore, não chore.

Amy abriu os olhos quando sentiu uma pressão sobre os dedos. Alessia sorria, apertando sua mão. Ajoelhada no banco ao lado da irmã mais nova, Giorgia deixava à mostra seu sorriso banguela.

— Não se preocupe, Amy — disse Alessia. — Se você sentir muito a falta da sua mamma, podemos dividir a nossa, não é, Gio?

Giorgia assentiu, solene. Maria e Will trocaram um sorriso e Lara, olhando para as filhas e depois para Amy, também assentiu, secando as lágrimas discretamente. Pelo espelho retrovisor, Amy viu Damian sorrir. Com o coração aquecido, a garota apertou de volta a mão de Alessia.

— Valeu, pirralhas. Vou cobrar, hein?

Ela não soube dizer quanto tempo levaram para chegar à casa da avó.

Alessia ainda segurava a mão de Amy, que assim como o restante do grupo, ria da história que Will contava sobre como Damian chorou ao assistir Toy Story 3 no cinema. Quando o carro parou e o silêncio cresceu, ninguém mais ria. Nem Damian, que proferia ameaças divertidas ao amigo — eu não estava chorando, William. A sala de cinema só estava muito seca! —, abriu a boca.

Ficaram em silêncio, ouvindo os passarinhos cantarem e o ronco do motor se esvair. O coração de Amy palpitou no peito quando Damian desafivelou o cinto de segurança. Ele se virou para trás, e Amy soube que a viagem estava no fim.

Com uma expressão indecifrável, ele disse:

— Chegamos.

Ela respirou fundo. Era hora de se encontrar com a vovó.

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