21. nova tentativa
LARA
Até que a pequena cidade de West Creek não era de todo ruim. As casinhas pintadas em tons sóbrios, em sua maioria com a bandeira dos Estados Unidos hasteada orgulhosamente do lado de fora, os gramados bem aparados, os canteiros de flores perfeitos e as cerquinhas brancas eram uma visão relaxante para Lara. Acostumada ao cheiro de fumaça de Nova York, aos gritos de prostitutas e ao metrô lotado, onde sempre tinha alguém fantasiado de Darth Vader ou Indiana Jones, perceber a existência de West Creek era como estar num mundo paralelo.
Lara caminhou pela calçada imaculada com a sacolinha de papel pardo da farmácia nas mãos, indo com um sorriso no rosto até a praça que, segundo Hershel, era o orgulho da pequena West Creek. Quando se aproximou, ela entendeu o porquê.
Canteiros de flores dividiam o espaço com árvores de tronco grosso e copa acolhedora, além de bancos de madeira colorida, balanços e um gira-gira para as crianças. Passarinhos se banhavam em fontes de pedra e havia até um coreto no centro da praça, vazio àquela hora da tarde.
Se não fosse por eles, tudo estaria vazio.
Will estava sentado na grama com Maria, que falava e gesticulava como se contasse uma história a ele. Amy, jogada num dos balanços, tinha os fones enterrados nos ouvidos e marcava o ritmo da música com a cabeça. Mas cadê...?
O olhar de Lara varreu a praça atrás das filhas. Ela franziu o cenho ao ver Damian sentado entre Giorgia e Alessia num dos bancos da praça, os três virados de costas para onde ela estava.
Lara sempre fizera de tudo para que as garotas não incomodassem o vizinho. Quando saíam para um passeio ou para ir à escola, bastava um olhar seu para que as filhas não fizessem algazarra no corredor do prédio, para que não incomodassem ou brincassem alto demais.
Vê-los sentados lado a lado era curioso porque Damian não fazia o tipo de cara que gostava de crianças. O cara que sorria quando ela e as meninas saíam no corredor, que comentava coisas do tipo: "Meu Deus, elas estão crescidas, hein?"
Entretanto, quando se aproximou, Lara ouviu risadas.
— ...e eu falei que o de maçã verde era o melhor! — disse Damian, rindo e mastigando. As garotas não pareceram convencidas. — Qual é! Vocês precisam aceitar a verdade, meninas.
— O signore está tentando nos enrolar. — Giorgia cruzou os bracinhos magrelos. Lara viu uma canetinha hidrocor em sua mão direita. — O Skittles de uva é o melhor. E o de morango. Ninguém gosta do de maçã verde.
— Como não? Eu gosto.
— Gosta porque sei pazzo, signore! — disse Giorgia, dando um tapinha na perna dele.
Lara congelou. As filhas chamaram o vizinho de louco com um sorriso no rosto, rindo às gargalhadas da expressão atordoada de Damian. Ele, que graças a Deus não entendia porcaria nenhuma de italiano, franziu o cenho. Giorgia e Alessia soltaram mais algumas risadinhas.
— Não faço a menor ideia do que isso significa, mas obrigado — disse ele, rindo também. Damian mastigou mais alguns doces. — E aí, como está ficando o meu unicórnio, Alessia?
— O máximo! — respondeu a pequena, curvando-se no banco. — Agora o signore será rico de verdade. Mamma!
Lara sorriu sem graça quando os três viraram os rostos, quase como se tivesse sido pega fazendo algo que não devia. Ela deu a volta no banco, colocando as mãos na cintura. A luz do sol ofuscava os três quando Lara disse:
— Espero que não estejam incomodando o Sr. Harris...
— No, mamma — respondeu Giorgia. Um sorriso banguela iluminou seu rosto travesso. — Estamos comendo doces.
— E fazendo arte — disse Damian.
Ele ergueu o pulso esquerdo. Lara riu ao ver o gesso branco tomado por desenhos coloridos de unicórnios, flores, corações e bonequinhos. As canetinhas estavam esparramadas pelo banco, criando um arco-íris na madeira azul. Os três cheiravam a doces e tinham nos rostos o sorriso fácil que só o açúcar e o verão podem proporcionar.
— Vocês são duas sapecas! — Ela riu e se ajoelhou na grama. Quando as garotas a abraçaram, Lara disse: — Agora a mamma precisa falar um pouquinho com o Sr. Harris, si? Vão brincar com a titia e o Sr. Greene, queridas.
Pela primeira vez na vida, as filhas hesitaram diante de um pedido dela. E olhavam para Damian como se pedissem permissão para sair.
Lara franziu o cenho, confusa por aquele momento que, de certa forma, não deveria estar ali. Nervosa, ela riu para as filhas, que ainda o encaravam como se esperassem pela confirmação.
— O que houve, pupae? — questionou ela, abraçando as meninas com mais força. — Querem dizer algo ao Sr. Harris?
— Vai ter espaço para desenharmos depois? — perguntou Alessia, distanciando-se do abraço de Lara e puxando o gesso de Damian para baixo. Na vozinha doce, ela completou: — Ainda não terminei o seu unicórnio, babbo!
O coração de Lara se partiu em mil pedaços.
Gérard havia se mudado para a Flórida quando as meninas tinham três anos, e desde então Lara precisou ser a Mãe com M maiúsculo em todas as ocasiões. Lara, que não tinha amigos, e muito menos amigos do sexo masculino, tomou para si a tarefa de ser referência em tempo integral. Era ela quem recebia os desenhos de Dia dos Pais, quem ia nas reuniões e apresentações de escola, era ela quem torcia nas arquibancadas nos jogos de futebol de Giorgia e era ela quem assistia às apresentações de dança de Alessia. Era ela. Só ela (e Maria, é claro.)
O babbo era uma fotografia mal batida na internet, uma ligação entrecortada quando o tempo escasso permitia, alguém que as meninas não conseguiam visualizar muito bem apesar dos esforços absurdos de Lara. O babbo era os amiguinhos imaginários de Alessia e Giorgia, mas Damian era real. Era alguém que estava passando um tempo real com elas, rindo e comendo doces e desenhando no gesso. Como um pai de verdade faz.
O coração de Lara se partiu em mil pedaços, mas Damian, que não fazia ideia do que aquilo significava, riu. Ele se inclinou em direção a Alessia e piscou, dando o saquinho de Skittles a ela.
— Relaxem. Vou guardar todos os espacinhos para vocês duas, ok? — disse ele.
Os rostinhos de Alessia e Giorgia se iluminaram. Elas deram um beijinho apressado nas bochechas de Lara e correram ao encontro de Will e Maria, que abriu os braços e um sorriso quando as sobrinhas se atiraram sobre ela na grama.
Sem graça, Lara sentou-se ao lado de Damian, ajeitando o rabo de cavalo. Observaram a cena das garotas brincando com Will e Maria em silêncio. Como um pai de verdade faz...
Lara pigarreou.
— Como está o seu braço? — perguntou ela. Ele deu de ombros. Lara abriu a sacolinha de papel pardo e estendeu uma cartela repleta de comprimidos a Damian. — Comprei alguns analgésicos. A fila na farmácia estava imensa, mas uma senhora me deixou passar na frente porque ouviu que você tinha chances de perder o braço.
Ele a encarou com o cenho franzido. Lara corou e deu de ombros.
— Mas você disse a ela que não foi nada sério, certo?
— A fila estava imensa e a senhora quis ajudar. Foi só uma... só uma mentirinha inocente.
Ah, e também porque ela achou que você era meu marido, pensou Lara, mas não completou. Já não bastava Maria mentir para Papa Rob e enfiar mil ideias na cabeça das garotas sobre Damian ser o babbo delas, agora mais aquela. Por que todo mundo comprava aquela mentira de casamento e filhos?
O rosto quadrado de modelo de cueca e os olhos azuis vibrantes faziam de Damian um homem bonito, mas os dois, ele e ela, não poderiam ser mais diferentes em essência. Lara, apesar de todos os problemas, sabia ver o lado bom das coisas, relaxar. Damian parecia ser o completo oposto.
Na maior parte do tempo ela sentia como se o vizinho estivesse eternamente prendendo a respiração, eternamente de ombros rígidos, esperando alguma desgraça ou problema acontecer. Lara não sabia viver assim. Lara não se via vivendo.
Sem graça por estar pensando longe, olhou-o de relance. Damian ria ao ver Giorgia e Alessia puxando Will pela mão até o gira-gira, com Maria batendo palmas e incentivando as sobrinhas. Até Amy tirou os fones de ouvido e saltou do balanço para se aproximar do resto do grupo. Lara respirou fundo.
Precisava atacar o assunto mais cedo ou mais tarde.
— Aliás, há quanto tempo Alessia o chama de... de... babbo? — perguntou com cuidado.
— Ah, não sei. Faz pouco eu acho — respondeu ele, franzindo o cenho e dando de ombros. Por fim, Damian riu. — Giorgia também me chama assim. Espero que não seja algo ruim. Elas podem me chamar até de idiota em italiano que eu vou achar o máximo!
Lara deu uma risadinha sem graça. Babbo realmente significava "idiota" em algumas partes da Itália, mas ela tinha certeza de que não era com esse significado que as filhas usavam o termo.
Ele a encarou com as sobrancelhas unidas.
— Pera aí, babbo é algo... ruim?
— Não, não — respondeu ela, enfiando uma mecha de cabelo para trás da orelha. — É um... um termo carinhoso. Significa que... que elas gostam de você.
— Bacana. Gosto delas, também. — Ele sorriu. Os dois ficaram em silêncio, observando as garotas darem gritinhos no gira-gira. — Mas e aí, como foi na farmácia? Muito cheio?
— É, mais ou menos — disse ela, alegre pela mudança de assunto. Com o olhar e a atenção perdidos na felicidade de Giorgia e Alessia, Lara completou: — Encontrei Hershel por lá e...
Damian grunhiu, empurrando um punhado de grama com a ponta do tênis. Lara franziu as sobrancelhas, encarando-o. Ele resmungou baixinho "É claro que você o encontrou por lá", e fez uma careta para o chão. Lara, que não era idiota, entendeu na hora.
Desde que a minivan fora guinchada, Damian não parou de falar mal de Hershel. "E aquele chapéu ridículo? O cara acha que está no Brokeback Mountain? Era só o que me faltava!"
Lara não dera importância. Sabia que ele andava irritado por causa da minivan estragada, dos atrasos na viagem, do pulso machucado, de Amy e dos telefonemas que recebia da namorada. Lara só não entendia por que, de todas as pessoas, Damian decidira focar sua ira em Hershel, que não fizera nada além de ajudar.
— Ok — disse ela, rindo. — Você tem problemas com ele.
— Eu? De maneira nenhuma. Ei, não me culpe — retrucou Damian, coçando o nariz com as costas da mão boa quando Lara ergueu as sobrancelhas. — Odeio esses policiais de cidades pequenas que agem como os machões defensores da moral e dos bons costumes. Gentinha mais atrasada. Nessa parte esquecida do mundo você não é um homem de verdade se não entende de carros e se sente dor.
Ela ficou em silêncio e tentou não rir ao se lembrar dos olhos marejados de Damian no consultório do Dr. Burke. Todos aguardavam na salinha de espera apertada, lendo velhas revistas de tratores, quando a enfermeira abriu a porta e chamou por Lara. Confusa, ela entrou. "Você pode ficar aqui comigo e segurar a minha mão enquanto o doutor engessa meu pulso?", perguntara Damian, os olhos azuis inchados de tanto chorar. "Se Will me vir assim, ele vai me zoar e nunca vai me deixar esquecer isso."
Lara ficou e, agora, sentada ao lado dele, tentou não rir.
Foi impossível.
— Você está se comparando a ele, Damian?
— Muito engraçado, mas não — desdenhou ele, coçando o nariz outra vez. — Eu tenho prêmios, Lara. Prêmios. Não preciso me comparar a esse caipira grosseirão porque sou um cara sensível e premiado. E porque gosto de me barbear. Aliás, você sabia que homens que usam bigodes têm muito mais probabilidade de se tornar serial killers? Pode procurar. É pura ciência e análise de dados.
— Serial killer ou não, ele me parece uma boa pessoa. — Lara riu. Vasculhou o bolso traseiro do jeans manchado de tinta e pegou o cartãozinho do policial. — Hershel inclusive me passou o número pessoal dele para...
— Claro. Foi exatamente por isso que ele te deu o telefone pessoal dele. — Damian soltou uma risada sarcástica. — Esse cara é inacreditável.
— Eu tenho certeza de que não é nada disso — disse Lara, sentindo as bochechas esquentarem. — Ele só está sendo gentil com pessoas de fora de cidade.
— Sei bem como ele quer ser "gentil" com você — retrucou ele, fazendo aspas com os dedos. Lara franziu o cenho. — Já fiz muito dessas gentilezas desinteressadas para mulheres. Realmente, encontramos a nova Madre Teresa de Calcutá, só que musculosa e bigoduda. Alguém notifique o Vaticano.
— Mas eu sou...
— Você é casada! Exato! — exclamou Damian, batendo com a mão boa no joelho. Lara ergueu as sobrancelhas quando ele semicerrou os olhos. — Esses caras que não respeitam o casamento das mulheres me dão asco. Porra, será que ele não percebeu que você é casada? Da última vez em que consultei o dicionário, "casada" significava "não disponível", do latim "ela não quer você", do grego "não vai rolar, camarada". Mas o que estou esperando? Esse caipira imbecil nem deve saber o que é um dicionário.
Ele soltou outra risada amarga, esfregando o nariz com as costas da mão.
(Lara quis dizer que Damian também não havia respeitado o casamento dela ao implicar que os dois transaram na noite em que Amy apareceu, mas preferiu se calar.)
Ele chutou mais uns pedaços de grama, o rosto retorcido numa careta. Sem graça pela explosão de Damian, ela disse:
— Na verdade, Hershel me chamou na farmácia para falar sobre o carro.
— E o que ele falou?
— A peça só chegará amanhã, então precisaremos, você sabe... ficar para o casamento.
— Que novidade. Nunca que o caipirão ia perder a chance de se exibir nessa festa idiota — resmungou ele, revirando os olhos. — Mas quer saber? Chega de falar desse imbecil. Deixa eu mostrar um negócio a você...
Ele ergueu o pulso engessado na altura dos olhos, e Lara sentou mais perto de Damian para enxergar melhor os rabiscos de Alessia e Giorgia no gesso. Entre versinhos, flores, unicórnios e caveiras sorridentes, sete bonequinhos coloridos se apertavam na extensão do gesso branco.
— Elas nos desenharam! Olha só... esse aqui sou eu, atendendo ao telefone. — Animado, Damian apontou para o próprio bonequinho. — Essa aqui ao meu lado, com um sanduíche na mão, é você. Alessia se desenhou com um tutu roxo...
— Bem, isso faz sentido — disse ela, sem pensar. Damian a encarou, devolvendo uma pergunta silenciosa. Sem graça, Lara completou: — Alessia quer ser bailarina.
— Ah, agora faz sentido. — Ele riu. Voltando a apontar para os bonequinhos, continuou: — Alessia está segurando sua mão e a de Giorgia, que se desenhou sem um dente. Essa aqui é Maria, fazendo o sinal de positivo. Aqui é a... é Amy, com os fones de ouvido, e esse último é Will, com medo de uma... sereia? É, essa parte também não entendi direito, mas olhe isso, Lara! Giorgia sabe escrever versinhos. Will vai adorar saber disso.
Ele olhou para o gesso como se fosse uma obra de arte. Lara mirou o vizinho de relance, sorrindo para aquela alegria quase infantil que ele demonstrava para os rabiscos das filhas. Sem graça, ela disse:
— Fico feliz que elas não estejam... incomodando.
— Longe disso! Elas são incríveis. — Os gritinhos de Giorgia e Alessia no gira-gira chamaram a atenção dos dois. Lara sorriu para a cena, baixando a cabeça logo em seguida. — O que foi?
— Não é fácil, sabe? — admitiu ela. — Filhos. Nada fácil.
Lara observou as meninas rirem com Will, Maria e Amy no gira-gira e foi incapaz de não pensar em todos os sacrifícios que já havia feito por elas. Lara tinha dois empregos — agora, apenas um — para que não faltasse nada às filhas, mas parecia que o mais importante estava sempre ausente. Você faz uma falta danada aqui, Gérard.
— Ei, relaxe — disse ele, empurrando-a de leve com o ombro. — Você está fazendo um ótimo trabalho. Na verdade, preciso pegar algumas dicas. — Damian indicou Amy com um gesto de cabeça e sussurrou: — Se para você está sendo difícil, não queira saber como está sendo para mim.
Ela riu e os dois trocaram um daqueles olhares.
Quando Damian não estava irritado com os telefonemas da namorada, com Amy ou qualquer problema que aparecia em sua frente, ele era um cara legal. Quando Damian se lembrava de respirar e de relaxar, Lara gostava daqueles momentos silenciosos que dividia com ele, dos olhares que trocavam. A cumplicidade que nascia entre ela e o vizinho era aconchegante, e de uma maneira esquisita, Lara sabia que podia contar com Damian caso precisasse.
Era quase como ter um amigo.
— Espero não estar interrompendo...
A voz grave de Hershel caiu sobre os dois como um banho de água fria. Damian fechou a cara tão logo a silhueta musculosa do policial bloqueou o sol. Sorrindo para ela, Hershel tirou o chapéu.
— Na verdade... — começou Damian.
— Claro que não, Hershel — atalhou Lara, apertando o joelho de Damian e arregalando os olhos. O vizinho resmungou, cruzando os braços. Ela sorriu para o policial. — Alguma novidade sobre o carro?
— Não, não. Só vim dizer que consegui os quartos na pousada da Sra. Wharton e...
— Olha só, ele foi rápido em conseguir os quartos — disse Damian. Hershel franziu o cenho para ele. Apesar de sorrir, ela repreendeu o vizinho com um olhar. — Que sorte a nossa.
— Obrigada pela ajuda, Hershel — disse Lara, pegando as chaves do quarto que o policial lhe estendeu com um sorriso escondido pelo bigode bem aparado. — Você poderia nos dizer onde fica a...
— Ora, será um prazer levar vocês até lá!
Com o pulso engessado descansando no encosto do banco atrás dela, Damian sorriu com falsa gentileza. Lara percebeu pequenas rugas se formarem ao redor de seus olhos azuis.
— Ouviu, Lara? Será um prazer. Estaríamos perdidos sem o nosso... amigão, não é mesmo?
Lara repreendeu o vizinho com outro olhar, mas Hershel sorriu, alegre por ser útil. Chamaram o resto do grupo e debaixo de protestos — per favore, só mais uma vez no gira-gira, mamma! — e promessas de tomar um sorvete mais tarde, rumaram para a pousada da Sra. Wharton.
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A modesta pousada da Sra. Wharton era um prédio de três andares com uma fachada antiga pintada de amarelo-esmaecido e janelas rústicas de caixilho branco. Lá dentro, tudo cheirava a biscoito, madeira encerada e ao perfume de rosas da proprietária, a amável e extremamente magra Sra. Wharton.
Assim que Lara se deitou numa das camas, fechou os olhos. O cheiro dos lençóis limpos e a brisa que invadiam o quarto arrancaram um suspiro satisfeito dela. Com as filhas comendo torta na cozinha da pousada com Amy, Will e Damian, o silêncio dominava o quarto bem organizado, sendo quebrado apenas pelos passos e pela voz doce de Maria cantarolando uma canção em italiano.
Lara estava quase pegando no sono quando a irmã mais nova parou de cantar, soltando uma risada.
— Damian realmente detesta Hershel, não?
Lara riu, mas não abriu os olhos.
Hershel insistira para que ela, Maria e as garotas pegassem uma carona na picape dele para conhecer a pousada. Will, Amy e Damian — os dois últimos com a cara amarrada e uma fúria silenciosa — ficaram na praça, esperando pela segunda carona do policial, que animado por mostrar West Creek a elas, demorou um bom tempo para retornar à pousada com o resto do grupo.
— Por que você diz isso, Mimi?
— Porque Damian vira uma criança quando está perto dele. — Maria riu, dobrando uma camiseta. Lara apoiou os cotovelos no colchão, erguendo o torso para encarar a irmã mais nova. — Mas não se pode negar que Hershel é um bello ragazzo. E que está dando um mole desgraçado para você.
— Hershel só está sendo gentil — afirmou ela. — Você e Damian são terríveis.
— O que Damian tem a ver com o Oficial Bigode estar secando você? — questionou Maria, atirando algumas calcinhas para dentro da mala. Lara franziu o cenho para o apelido, mas a irmã a encarou com um sorriso safado no rosto. — Vai ver ele ficou com ciúme, sorella. Você fica dando atenção ao caipirão e...
— Não sei de onde você tira essas coisas. Essas brincadeiras não têm graça — repreendeu Lara com as bochechas coradas, levantando-se da cama. — Bem, vou descer e ver como as bambine estão. Eu já vol...
— Ah, não, sorella! — Maria largou as roupas que dobrava e separava na mala, empurrando Lara de volta à cama. Com um sorriso e com aquela eterna mecha de cabelo que sempre caía em frente aos olhos, Maria se sentou em frente a ela, cruzando as pernas. — Scusi, scusi, scusi, ok? Chega de falar disso. Vamos fofocar um pouquinho. Parece que faz anos que não conversamos!
Lara sorriu. No fundo, era incapaz de guardar rancor de Maria. Aquela personalidade faceira dela conseguia varrer qualquer irritação que surgisse em Lara, que vez ou outra via na irmã mais nova uma extensão de Alessia e Giorgia.
Sorrindo, Maria apertou suas mãos.
— Primeiro de tudo, acho que foi uma sorte danada você conseguir férias nos dois empregos justo agora, não? Fazia um tempo que você não...
Maria seguiu falando, mas Lara não ouviu.
Na verdade, havia sido demitida do bico de garçonete e o emprego de caixa no mercado do Sr. Mills, Lara sabia, estava por um fio. "Vamos fechar o mercado para um balanço, mas não se preocupe, Lara. Seu emprego e o de todo mundo aqui estará garantido quando vocês voltarem", ele havia dito com um sorriso no rosto gorducho.
Mas até quando?, pensou ela. Quando voltou a si, Maria a encarava com as sobrancelhas franzidas.
— Ah, não. Você está com aquela cara, sorella...
— Mimi, eu preciso... nós precisamos conversar...
Lara se calou. Não sabia se começava dizendo que perdera o emprego de garçonete no pub do Sr. Lee — e as maravilhosas gorjetas do final da noite — ou que pretendia morar com o marido e as filhas na Flórida.
(Ou se começava dizendo que toda aquela conversa de férias fora uma invenção e que, na verdade, ela tinha certeza de que o Sr. Mills também a demitiria por causa da crise e que todas elas precisariam morar na rua muito em breve.)
Lara respirou fundo.
— Precisamos conversar sobre... Gérard e... e o meu emprego.
— Na boa, Lara. — Maria coçou a cabeça com um trejeito irritado e levantou uma das mãos, pedindo silêncio. — Não quero perder meu tempo falando desse idiota e de coisas... sérias, ok? Quero conversar com você, fofocar um pouco e não pensar nessas merdas. E falando nisso... — Maria sorriu com o canto dos lábios, inclinando o corpo para frente — Você viu como Damian ficou nervoso lá no posto de gasolina quando Amy e Giorgia quase foram atropeladas? E no acostamento, com ela cuidando do braço dele?
Damian havia segurado os ombros de Amy com tanta força que apenas um cego não veria a preocupação estampada no rosto dele enquanto sacudia a garota feito um chocalho. No acostamento, quando ele fraturou o pulso, Amy fora rápida em imobilizar o punho do vizinho com as Barbies e tranquilizá-lo como podia.
Lara sorriu cansada.
— No fundo eles são muito parecidos. Só precisam de tempo para... para aceitar a situação toda — concluiu ela. Nervosa, Lara ajeitou o rabo de cavalo. — Mas sobre Gérard, Mimi, andei pensando e...
— Gérard tentou falar com você?
— Não. Por quê? — perguntou ela, o cenho franzido para o tom agressivo de Maria. A irmã não respondeu. Lara deu de ombros, rindo. — Bem, acho que esqueci meu celular em Nova York, então não sei se ele tentou ou não. Também perdi meus brincos quando o carro foi guinchado. Ultimamente ando perdendo tudo!
Inclusive o emprego, pensou ela, mas não completou. Pelo amor de Deus.
Maria segurou suas mãos e sorriu.
— Olha, vamos esquecer isso. É a segunda viagem que fazemos juntas. É pedir demais ter a minha irmãzinha só para mim, sem falar do marido idiota dela? — A irmã mais nova sorriu com malícia e beijou a bochecha de Lara. — Mas o que você queria falar sobre o seu emprego?
Lara engoliu em seco. O rosto de Maria estava tão relaxado que Lara foi incapaz de transmitir duas notícias ruins assim, em noite de festa.
— Ah, nada de mais. O Sr. Mills está fazendo um balanço de tudo e vai me ligar quando o mercado voltar à ativa. — Lara sorriu. Pelo menos essa parte era verdade. — Mas chega de falar disso. Animada para a festa de hoje?
Maria abriu um sorriso imenso e falou o que esperava da música, da comida, da bebida e da festa. Lara sabia o quanto a irmã amava uma festa, e sentiu-se horrível por se aproveitar disso para desviar o assunto do emprego e de Gérard.
Uma hora vou precisar contar, e ela nunca vai me perdoar. Por que tudo precisava ser tão difícil?
— Na verdade, sorella, estou muito mais animada para voltar a Nova York. — Ela ergueu os olhos castanhos risonhos. Uma mecha de cabelo negro caiu em seu rosto, e Lara sorriu quando sentiu as mãos de Maria apertarem as suas. — Encontrei uma loja incrível para abrirmos sua confeitaria!
O sonho da vida de Lara era abrir uma confeitaria. No navio, indo para os Estados Unidos, ela se enxergava dando continuidade ao trabalho da mãe, a melhor doceira de Roma, como diziam os vizinhos da rua em que moravam, na América. Lara seria como Mitch Fischer, seu ídolo supremo, o confeiteiro que fazia os bolos mais incríveis do mundo na televisão.
Na Itália, o sonho de ter um negócio próprio e ser uma espécie de Mitch Fischer parecia simples, mas ao descer do navio a realidade fora um despertar dolorido para o fato de que nunca conseguiriam o dinheiro necessário para fazer o que quer que fosse.
— Não temos dinheiro, Mimi. E foi um sonho besta.
— Não temos dinheiro agora — retrucou ela. — E você faz o melhor tiramisù do mundo, ok? Tenho certeza de que quando abrirmos a confeitaria esses americanos idiotas vão cair de quatro pelos seus doces. Você cozinha, eu fico no caixa, e nós vamos ser tão famosas quanto aquele cara que faz bolos na televisão.
Lara realmente gostaria de acreditar naquilo, mas depois de doze anos os sonhos perdiam um pouco o brilho.
— Nunca vamos ter dinheiro, Mimi. Acho que é hora de, como diz Gérard, aceitarmos a derrota.
Maria revirou os olhos e apertou as mãos dela com tanta força que Lara a encarou. Ficaram em silêncio, ouvindo o ronco baixinho do ar-condicionado inundar o quarto.
— Nunca mais diga isso — pediu Maria, numa voz séria. — Não falei com o cara, mas assim que voltarmos a Nova York, vou ligar e fazer uma proposta. Aquela porcaria está há tanto tempo para alugar que ele deve estar desesperado. Podemos economizar um pouquinho todo mês, guardar os trocos numa caixinha até que possamos pagar pelo menos o primeiro aluguel da loja. Confia em mim.
Lara sorriu, de repente sentindo toda a coragem que tinha reunido para contar à irmã sobre os problemas ir embora, zarpar como um navio no porto lotado.
Não consegui mais uma vez. Foi só outra tentativa frustrada. Quantas tentativas ela precisaria para deixar tudo às claras com a irmã? Lara não sabia, e tinha medo da resposta.
Maria, ignorante do que se passava, mirou-a com a expressão brincalhona de sempre.
— Não vou deixar você desistir dos seus sonhos, si? — Maria deu um beijo estralado no rosto de Lara e se ergueu da cama. — Mas chega de conversa. Hoje à noite teremos comida e bebida de graça! Vou tomar um banho e tirar esse fedor de cidade pequena de mim antes que as pestinhas voltem.
As duas riram. Maria estava quase fechando a porta do banheiro quando se voltou, encarando Lara com um sorriso diabólico nos lábios. Com aquela mecha de cabelo selvagem caindo pelo rosto, ela perguntou:
— Ei, tem certeza de que não existe a menor chance de você ficar bêbada o bastante nessa festa para dar uns amassos no Oficial Bigode, ou...?
Lara atirou um travesseiro em Maria, que gargalhou e fechou a porta.
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