19. meio peixe, meio cúmplice

WILL

Will era fascinado por sons. Não apenas por música — colecionava discos de vinil desde o final da adolescência —, mas por sons.

Diferentemente das outras pessoas, Will confiava mais na memória auditiva do que na visual, o que não tinha nada a ver com o uso daqueles óculos de lentes absurdamente grossas para enxergar. Cada lugar e pessoa, acreditava ele, possuía um conjunto próprio de sons. Sentado do lado de fora da Bessie, numa cadeira de praia vagabunda, Will fechou os olhos e ouviu.

Havia uma mulher gritando e chorando, recuperando o fôlego com um ronco engasgado de partir o coração. Do outro lado, não muito longe, um homem escarrava numa lata de feijões vazia e abria outra cerveja, não necessariamente nesta ordem. Crianças corriam pelo asfalto quente, risadas asmáticas de uma velha fumante pairavam no ar feito a fumaça de seu cigarro e, acima de tudo isso, alguém ouvia Across The Universe no último volume. Silencioso como um ninja da montanha, Will sorriu, envolvido pela cítara de George Harrison e pela sinfonia de choros, gritos, escarros e risos.

Os sons tornavam tudo único. De olhos fechados, ele pensou nas irmãs. Anna, Daisy e Sarah.

Sempre relacionava os sons de malas fechando-se e aeroportos a Anna, que viajava com os filhos e o marido sempre que podia. À Daisy, irmã do meio, Will associava os sons de abelhas zunindo e de papel celofane que envolvia os arranjos de flores que ela fazia na floricultura em que era proprietária. Já os sons de maquiagens sendo abertas e fechadas e os pings metálicos de cafeteiras sempre o remeteriam à Sarah, jornalista de profissão que sempre estava com uma xícara de café nas mãos, escrevendo artigos para revistas de moda.

Will, o mais novo dos quatro irmãos Greene, ouvia e gostava da ideia de definir sons para as pessoas. Seu pai era as escalas do piano, o som da cadeira sendo arrastada na cozinha. Sua mãe seria o eterno som do forno se abrindo, das risadinhas das escoteiras que se reuniam toda semana na casa deles. Os viajantes da minivan, como um segunda família, também tinham seus próprios sons.

Damian era o tic tic impaciente da caneta, o som dos dedos apertando com força o volante. Lara era o som de sacolas, daquela letra "A" melancólica do italiano. Giorgia, depois daquela noite, era o som dos plásticos das tatuagens das Princesas da Disney, e Alessia, tão diferente da irmã, era as risadinhas bondosas própria da infância. Amy, aos ouvidos dele, era os coturnos desamarrados sobre o piso de concreto dos postos de gasolina, os bottons da mochila surrada batendo no porta-malas da minivan, o som do...

— O que você está fazendo aí?

Ele abriu os olhos, desorientado ao ouvir a voz dela. Todos os sons silenciaram quando Maria chegou, observando-o com o cenho franzido e um sorriso nos lábios.

Existia uma palavra para o fenômeno que sempre ocorria quando ela aparecia, mas Will não conseguia se lembrar da forma, dos sons da bendita palavra. Todas as palavras possuíam a terrível mania de sumir quando ela aparecia.

Sem graça, ele piscou e ajeitou os óculos no rosto, sentindo a cola dos esparadrapos repuxar o nariz e a tinta das tatuagens pinicar a pele de sua bochecha. Maria sentou na cadeira de praia ao seu lado, esticando as pernas e espreguiçando-se. O suspiro dela terminou num gemido rouco, desses que vêm das profundezas da garganta e deixam todo mundo parecido com uma atriz pornô. Will corou com o pensamento, desviando o rosto.

Permaneceu olhando para frente quando percebeu, debaixo da lâmpada incandescente e suja de um dos trailers vizinhos, que Maria tentava enxergar melhor seu rosto. Com um pigarro, ele coçou a nuca, virando a cabeça para o outro lado. Quando uma risada baixa escapou dos lábios de Maria, ele soube que não havia sido rápido o bastante.

— Cara, por que o seu rosto está cheio de tatuagens das Princesas da Disney?

Com um olhar de esguelha para ela, Will coçou a bochecha, sentindo um traço de tinta barata grudar-se debaixo das unhas. Across The Universe recomeçou a tocar no parque de trailers, misturando-se aos latidos dos cães na noite abafada.

Respirando fundo, ele calculou cada palavra que diria à Maria como se estivesse num jogo de xadrez.

— As meninas quiseram brincar com as tatuagens enquanto vocês lavavam a louça do jantar. Tudo correu bem até Giorgia querer ser a mesma Princesa que eu. — Ele fez uma pausa e coçou a testa. Podia sentir a alergia espalhando-se pelo rosto. — Alessia foi bastante diplomática com a situação, mas Giorgia disse que eu deveria ser a Ariel e não a Mulan, porque... — Will apontou para os próprios cabelos. — Enfim. Giorgia também disse que eu estava sendo preconceituoso, que odiava a Ariel por ela ser meio peixe. Isso não é verdade.

Will empurrou os óculos para cima, lembrando-se do semblante contrariado da gêmea mais velha sentada em seu joelho. Diferentemente da irmã, Giorgia era exatamente o tipo de criança que Will temia, o tipo que sabia argumentar como um adulto tendo à disposição toda a energia da infância.

Ele ouviu o choro da mulher do trailer vizinho e o escarro do homem outra vez. Sem olhar para Maria, continuou:

— Giorgia disse que eu deveria ser todas as Princesas para aprender a não ser preconceituoso. Eu disse que Giorgia estava sendo incoerente, que não era preconceito, mas uma simples preferência. Ela respondeu que não sabia o que "incoerente" significava, mas sabia que estava certa, que era uma menina e que eu deveria obedecê-la. Foi isso.

Maria riu, mas Will não se virou para encará-la. Ele limpou as lentes dos óculos na camisa quadriculada, admirando a linha imaginária que os trailers decrépitos criavam no céu noturno. Com o canto dos olhos, viu a imagem sorridente de Maria dividir o espaço da lente com um pedaço da cabeça da Branca de Neve. Mesmo ali, naquele pedacinho de lente, Maria era linda.

— Pera aí. — Ela se apoiou no braço da cadeira de praia e ergueu as sobrancelhas. — Você discutiu com meninas de sete anos porque queria ser a mesma Princesa que uma delas?

Will ficou em silêncio, digerindo as palavras. A estridulação dos grilos juntou-se à sinfonia de sons do parque de trailers. Como é que Maria sempre sabia a maneira de colocar as palavras?

Will coçou o rosto outra vez, tomando cuidado para não desgrudar o esparadrapo do nariz.

— Dito assim, admito que parece idiota — confessou ele, sentindo as bochechas esquentarem por causa da alergia e da vergonha —, mas é uma questão de princípios. Ariel tem o seu valor pela determinação de abandonar uma existência segura para ser alguém diferente, mas a Mulan salvou a China. Eu queria salvar a China.

— Certo, Mulan. — Ela riu, levantando-se com uma batidinha nos braços de plástico da cadeira. A blusa folgada que ela usava deixou à mostra um pedaço de sua cintura. Will desviou os olhos antes que Maria percebesse que ele olhava. — Levanta daí que eu vou dar um jeito em você.

Ele levou três pares de segundo para obedecer.

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Se para uma pessoa o banheiro da Bessie era apertado, para duas era desafiar a velha e conhecida lei da física que estabelece que dois corpos são incapazes de ocupar o mesmo lugar no espaço. Quando Will sentou-se no vaso sanitário minúsculo e Maria se enfiou entre suas pernas longas demais, ele experimentou um sentimento único. Muito melhor do que desafiar as leis da física.

Mesmo que o banheiro fosse uma versão melhorada de uma lata de sardinhas, que a lâmpada amarelada zumbisse de um jeito esquisito e o calor fosse insuportável, mesmo com a porta aberta, Will não queria nunca mais deixar aquele banheiro. Estar num espaço tão apertado com Maria fazia seu coração apaixonado sapatear no peito.

Munida com um esfregão verde que molhava vez ou outra na pia, Maria tentava tirar as Princesas do rosto de Will. Nenhum deles falava. Fora as ocasionais reclamações dela sobre a tinta das tatuagens, tudo estaria em silêncio.

— Cara, isso me dá uma angústia horrível — confessou Maria, puxando o esparadrapo sujo da bochecha dele. — Não sei como as pessoas escolhem fazer isso a vida inteira.

A única luz que inundava o resto do trailer era a do banheiro. Lara e as garotas dormiam na cama de casal, e Maria falava o mais baixo possível para não acordar ninguém, mesmo que Damian e Amy estivessem do outro lado de Bessie, nos beliches do outro quarto e no pequeno sofá em que a garota insistira em dormir.

Maria torceu o pano e esfregou a bochecha dele com cuidado.

— Essa maldita Cinderella não quer sair. — Ela roçou o pano com um pouco mais de força. Will trincou os dentes. — Nós deveríamos voltar lá e quebrar a cara daquele infeliz.

Will sabia que deveria falar alguma coisa, qualquer coisa, mas não conseguiu. A presença de Maria naquele banheiro minúsculo, enfiada entre suas pernas e com a ponta da língua para fora, concentrada em remover as tatuagens, era boa demais para ser verdade. Quando ela mergulhou o pano na pia e riu, Will a encarou como se estivesse diante de um milkshake de chocolate.

— Você não é muito de falar, né? — perguntou ela.

Ele ficou em silêncio, observando aquela mecha de cabelo negro selvagem que não ficava no lugar, a blusa folgada e o sorriso brincalhão com olhos ávidos. No calor sufocante do banheiro, Will sentiu o cheiro dela, erva doce e balinhas de framboesa, e sorriu ao sentir o calor das pernas de Maria entre as suas. No momento, não havia melhor lugar no mundo.

O silêncio deve ter ficado esquisito, porque quando ele voltou a si, Maria tinha o cenho franzido e o pano erguido, como se esperasse uma resposta. Sem graça, Will desviou os olhos para a janelinha minúscula do banheiro.

— Não sou. Me desculpe.

— Sem problemas. — Ela riu, torcendo o pano na pia e virando-se para ele. Maria deu de ombros. — Vai ver é coisa de italiano. Falar pelos cotovelos e nunca parar quieto.

Maria ergueu os olhos, rindo. Sem saber o que dizer, Will observou-a, envolvido por aquele cheiro de balinhas de framboesa e erva doce. Ao longe, se fizesse um esforço, ainda conseguia ouvir a cítara de George Harrison em Across The Universe por cima da algazarra de gritos e escarros do parque de trailers.

— Mas e aí — disse ela, esfregando a ponta do nariz dele com o pano —, onde foi que você aprendeu a falar italiano daquele jeito?

Will sempre fora um apaixonado por idiomas. Fora o inglês, falava espanhol, francês e italiano, além de arranhar no japonês e no português. Sempre o mais curioso e introvertido dos quatro filhos do Greene, Will havia encontrado no estudo dos idiomas o material para sanar a curiosidade que tinha sobre o mundo. Mas o italiano possuía um lugarzinho de destaque em seu coração.

Depois de se apaixonar por Maria naquela manhã quente onde ela descera de short, regata e chinelos para largar o lixo, cantarolando uma música, o italiano se transformara numa das forças motoras da vida de Will. Quando descobriu a nacionalidade de Maria, deu mais atenção ao italiano do que teria feito caso a situação fosse outra.

Na cabeça dele, atingir a excelência na língua italiana seria como se aproximar de Maria, ver o mundo através de seus lindos olhos castanhos com manchinhas verdes. Seria como estarem juntos, mesmo que separados por um oceano figurativo de distância.

Novamente sem graça com o silêncio, ele desviou o rosto.

— Fiz uns cursos.

— Que legal. Você fala super bem — disse ela, e as bochecas dele queimaram. Maria fez uma careta ao puxar o esparadrapo do supercílio de Will. A cola fez o corte queimar, mas ele não reclamou. — Aquele stronzo do Rob Filho foi o culpado dessa merda toda. A gente deveria voltar lá e quebrar o lugar inteirinho. Principalmente aqueles pratos ridículos sobre a tal de Guerra Civil. Aliás, o que foi que rolou?

— Como assim?

— Nessa guerra aí. No banheiro do posto tinha a mesma bandeira lá dos pratos...

— Ah, na metade do século XIX os estados do Sul decidiram pela secessão, pela separação dos estados do Norte por vários motivos — explicou Will, alegre por ter o que dizer. — A questão abolicionista do conflito foi o maior deles, na verdade. O Norte queria libertar os escravos, mas o Sul não, então os estados sulistas se separaram, criaram uma nova bandeira e foram à guerra.

Ela ficou pensativa, esfregando a Ariel da testa dele.

— Então essa guerra foi, tipo, americanos matando americanos porque não conseguiam entrar num acordo sobre libertar ou não os escravos?

— Basicamente.

Maria riu, balançando a cabeça.

Dio santo, esses americanos são muito idiotas.

— Isso não foi muito... patriótico.

— É difícil ser patriota quando existem idiotas como Rob Filho nesse país — respondeu ela, torcendo a boca. Maria riu e puxou outro esparadrapo. — Pelo menos tive o prazer de estourar uma garrafa nas orelhas daquele podre.

Não querendo deixar aquele início de conversar morrer, Will ajeitou-se no vaso sanitário. Com o coração batendo nas orelhas, perguntou:

— Você geralmente extermina os idiotas com uma garrafada?

— Não, mas bem que eu gostaria. Ok, lá vai. — Com uma careta, ela puxou aos pouquinhos um esparadrapo do queixo de Will, passando o pano com delicadeza. — Meu último namorado foi um desses idiotas. Eu deveria ter dado uma garrafada nele, se quer saber.

Will não se recordava do nome do namorado de Maria, mas se lembrava das fotos dele no Facebook, daquela eterna pose de rapper falido, das correntes de ouro, dos óculos escuros e da cabeça raspada. Will sabia, desde a última vez em que dera uma espiada no perfil do cara, que ele havia sido preso por tráfico.

(E sabia, também, que Maria havia mudado o status de relacionamento não muito antes disso acontecer.)

Ela suspirou, revirando os olhos. Will estava morrendo de curiosidade para ouvir a história, mas temia parecer enxerido. Fora bom-dias e boa-noites esquisitos no corredor do prédio de Damian e na agência, eles nunca pararam para conversar. A primeira vez em que se aproximaram de uma conversa foi antes de se hospedarem na pousada da Sra. Barnes, com Will grogue pelos analgésicos e pela pancadaria com Rob Filho no banco de trás da minivan. Aquela vez não contava.

Por mais que soubesse tudo sobre Maria, eles não se conheciam. Doía entender isso. Doía muito.

Maria, ignorante dos sentimentos que o abraçavam, torceu o pano na pia, batendo os joelhos contra os dele. Como se falasse para si, ela disse:

— Acho que eu sempre soube que o Tim era um imbecil. Não sei o que eu esperava de um traficante de meia-tigela que se achava o centro do mundo.

— O que aconteceu? — perguntou ele, antes que pudesse se conter.

Maria deu de ombros, esfregando a bochecha esquerda de Will. O pano estava gelado contra o rosto corado dele, mas era impossível reclamar do que quer que fosse.

— Ah, aconteceu o de sempre. — Maria deu de ombros, passando o pano pela testa dele. — Tim tentou esconder drogas na minha bolsa antes de entrarmos numa festa, e fiquei puta quando descobri. Gritamos um com o outro na frente da boate, voltei ao apartamento que ele ocupava nos guetos e coloquei fogo no Xbox e nas roupas dele. Aí terminamos, e mês passado descobri que ele está preso por tráfico.

Will ficou em silêncio, digerindo as informações. Não era bem aquilo que tinha em mente quando ela dissera: Ah, aconteceu o de sempre. Maria tentou esfregar o rosto dele após torcer o pano outra vez, mas Will recuou um pouquinho. Ela franziu o cenho.

— Você queimou o Xbox do cara?

— O que você queria que eu fizesse? — retrucou ela, voltando a passar o pano no rosto dele. — Eu seria deportada na hora se a polizia me pegasse. Além do mais, Lara acabaria comigo. Tenho certeza que ela pegaria outro navio para a Itália só para me dar uns tabefes.

Will sorriu, e Maria grunhiu algo sobre as tatuagens. Ficaram em silêncio, ela grunhindo e esfregando, ele sorrindo e ouvindo a maneira como ela suspirava, reclamava e vibrava quando conseguia limpar a cabeça ou a barra do vestido de uma das Princesas.

— Vocês vieram de navio? — perguntou ele.

— Sim. Lara tinha um namoradinho que trabalhava no porto na época. Foi terrível, se quer saber. Um chinês cuidava da cozinha, e o cara sabia fazer rolinho primavera. — Maria fez uma careta. Ela segurou o queixo dele e se inclinou para a frente, esfregando outro traço de tatuagem. — Aliás, ser imigrante é uma merda. A gente nunca deveria ter saído da Itália.

Ele ficou em silêncio e apertou Maria entre as pernas apenas o suficiente para sentir que ela estava ali, e não a um oceano de distância. Mesmo com o rosto vermelho pela alergia e pelos socos de Rob Filho, Will sorriu.

— Fico feliz que vocês tenham saído. — Ele fez uma pequena pausa quando ela o encarou, desviando os olhos para o teto. Não queria criar um clima romântico naquele banheiro apertado e deixar Maria sem graça. — Eu não teria ninguém para me ajudar com as tatuagens se você não estivesse aqui.

Ela riu e fez o que Will nunca, nunca, nunca poderia ter imaginado. Maria ajeitou os cabelos e, como se fosse corriqueiro, sentou-se sobre suas pernas compridas, enroscando os braços ao redor de seu pescoço num abraço apertado.

O cheiro de balinhas de framboesa o envolveu, e ele fechou os olhos. Sem graça e com as orelhas pulsando, Will abraçou-a de volta com cuidado e carinho, como se Maria fosse um desses bibelôs delicados que são deixados na estante para lembrar uma viagem boa.

O abraço durou quatro segundos, mas para ele foi como uma eternidade. Naquele intervalo ridículo, inúmeras palavras e sons passaram pela cabeça de Will, mas nenhum deles possuía a força apropriada para expressar como ele se sentia, para medir as batidas alteradas de seu coração.

— Valeu, cara — disse ela, afastando-se para olhá-lo nos olhos. Will franziu o cenho e, ainda em seu colo, Maria sorriu. — Valeu pela pancadaria com o idiota, pelos M&M's no posto e por ter me conseguido o emprego na agência. Acho que nunca agradeci por isso.

Will era um cara da paz. Ele passara a adolescência inteira e boa parte da vida adulta sem levar um soco sequer. Era, em essência, um homem de palavras. Will abominava qualquer ato de violência, mas ver Maria espremida contra aquela parede fora o bastante para fazer seu corpo inteiro entrar em ebulição.

Ele não pensou quando empurrou Rob Filho no chão, quando voou para cima dele por ter ofendido Maria. Ele só pensou nela. Will, que era um cara da paz, percebeu que acabaria com qualquer um que se metesse entre Maria e qualquer caminho de felicidade.

Ele pensava nisso quando notou que ela o encarava, franzindo as sobrancelhas e rindo. Sem graça, Will desviou os olhos.

Vermelho como um tomate pela proximidade e por aquele silêncio bobo, ele disse:

— Não é necessário agradecer.

— É sim — respondeu ela, os braços ainda ao redor de seu pescoço. Num sussurro, Maria completou: — Vai saber o que aquele Schwarzenegger movido à batata doce teria feito comigo se você não tivesse aparecido? Além do mais, esses dias Damian me falou que foi você quem me indicou para a vaga de cópias lá da agência...

Will não indicou Maria. Como sócio da agência, ele forçou Damian a criar e imprimir um jornalzinho de bairro falso com a vaga de operador de fotocopiadora e deixar o único exemplar na porta dela.

Will não queria indicar a vaga à Maria, não queria que ela pensasse que havia alguma segunda intenção esquisita por trás da oferta. Ele queria que ela conquistasse o trabalho sozinha, que chegasse em casa sorrindo e dissesse: Eu consegui!

Damian concordou com a ideia porque pensou que Will chamaria Maria para sair, mas ele não entendia. Ninguém entendia, na verdade. Fazer Maria feliz era muito mais do que isso.

— Apenas reconheci seu nome na lista do RH — disse ele, rígido debaixo do toque dela. — Você é muito competente, Maria.

— Ninguém precisa ser competente para tirar cópias, cara. — Ela deixou uma risada baixa escapar antes de voltar a esfregar as tatuagens. Ele sorriu. Gostava de vê-la alegre, mesmo que vez ou outra Maria resmungasse sobre o cabeção de Jasmine ou os cabelos da Pocahontas. — Mas você sabe que a...

Will sentiu uma vibração na coxa em que Maria estava sentada. Ela se interrompeu e apertou o pano com força entre os dedos. Um misto de surpresa e ansiedade preencheu seus olhos castanhos. A vibração do celular continuou, mas ela não deu atenção. Maria torceu os lábios e seguiu esfregando o rosto e o pescoço dele.

— Por que você nunca atende o celular? — perguntou Will, tão logo o aparelho parou de vibrar. — Hoje você ignorou sete chamadas enquanto estávamos no carro, e...

— É um cara idiota — resmungou ela, puxando o pequeno esparadrapo do supercílio dele com agressividade. Maria ficou em silêncio e afastou os cabelos do rosto com um gesto angustiado. — Ok, dane-se. Preciso falar com alguém sobre isso. É Gérard.

— O marido de...

— O próprio. — Maria franziu os lábios e molhou o pano na pia. — Ele tenta falar com ela todo dia, mas não quero que esse imbecil saiba que estamos indo atrás dele. Quero pegar esse podre no flagrante.

Will ficou em silêncio, pensando. Maria esperou por sua reação com o semblante angustiado da criança que busca aprovação.

— Por que você o odeia tanto?

— Porque além de tratar Lara como um lixo, ele é um idiota. Estou cansada de gente idiota na minha vida. — Maria ficou em silêncio e o encarou. Havia culpa e ameaça em seus olhos castanhos sarapintados pelas adoráveis manchinas verdes. — Você não pode contar. Se Lara descobrir, ela vai...

A voz dela morreu aos poucos. Ele ouviu ao longe o latido do mesmo cachorro, o homem gordo e peludo abrindo outra latinha de cerveja e a estridulação dos grilos. A cítara de George Harrison não soava mais, e o silêncio dela o deixava nervoso.

Maria ficou séria e se levantou como pôde do colo de Will. Com um gesto ansioso e o semblante fechado, ela atirou o pano molhado contra a pia cheia, fechou a pequena janela basculante e empurrou a porta de correr, fechando-a com um click ensurdecedor.

Ficaram trancados no banheiro, os joelhos dela tocando as pernas dele. Fazia calor, e a luz amarelada, agora concentrada no cubículo, não colaborava. Will suava e sentia o desconforto crescer. Maria, por outro lado, parecia determinada como um soldado no campo de batalha.

— Escute. — Ela puxou o celular, um modelo cor-de-rosa ultrapassado, do bolso traseiro da calça jeans. O coração de Will, amante dos eletroeletrônicos, quase gritou de dor ao ver a tela trincada em pelo menos três pontos diferentes. Maria afastou os cabelos do rosto com um gesto selvagem e tocou a tela do aparelho. — Ninguém pode saber disso, capisce? Saca só o que recebi dele no dia da viagem...


"Cara, por que a Lara não atende o celular? Olha só, eu sei que você me odeia e que não vai passar o recado, mas eu tô pensando em... eu preciso dizer à Lara que quero voltar. Voltar pra nossa casa. Ser um marido bacana, um pai presente para as garotas. Você não vai com a minha cara, mas quero sua ajuda. Avisa para Lara me ligar."


Quando a mensagem de voz de Gérard terminou, Will ouviu a respiração pesada de Maria. Ele ergueu os olhos, enxergando a massa disforme que era a Branca de Neve na lente de seus óculos dividir o espaço com a silhueta de Maria.

— O que você achou? — perguntou ela.

— Ele parece... arrependido.

— Como se um testa di cazzo miserável feito ele pudesse sentir arrependimento! — Uma veia pulsou no pescoço dela. Baixando a voz, mas não a raiva, Maria continuou: — Esse cara fez alguma merda. Ele passou quatro anos na Flórida fodendo todas as puttane que encontrava pelo caminho e agora quer voltar e ser o papai e o maridão do ano? Lara pode cair nessa conversa, mas eu não.

Ela fez uma pequena pausa e apertou o celular na mão. Will encolheu as pernas para ceder mais espaço à Maria, mas foi inútil. Ela engoliu em seco e o mirou com tamanha determinação que ele se sentiu nu.

— Eu tenho dois objetivos nessa viagem. O primeiro é receber o dinheiro que ele me deve de uma aposta. O segundo é fazer a Lara enxergar o marido que ela tem. Ainda não sei como, mas preciso separar os dois. Preciso de ajuda.

Will sentiu uma gota fina de suor escorrer por suas costas quando Maria apoiou as mãos em seus joelhos. O toque dela queimava, ardia muito mais do que os socos de Rob Filho ou as tatuagens de Princesas de Giorgia e Alessia. Maria sorriu com o canto dos lábios.

— Eu não estou dizendo para acabarmos com Gérard na porrada. Apesar de sermos bom pra caramba quando o assunto é pancadaria, preciso que o nariz dele fique no lugar dessa vez. — Ela suspirou. — Estou cansada de ver a Lara pensar que tem o marido perfeito quando um saco de bosta seria mil vezes melhor. Preciso de ajuda para isso. Não sei o que fazer ainda, mas se você quiser me...

— Eu quero.

As bochechas de Will queimaram, e ele imaginou que deveria estar parecido com um fósforo aceso. Malditos cabelos ruivos.

Maria sorriu. Quando a mecha selvagem caiu por seu rosto outra vez, Will entendeu que seria impossível negar qualquer coisa a ela.

— Ok, cara. — Ela pegou o pano de volta e sorriu com o canto dos lábios, apoiando-se na pia. Os joelhos dos dois ainda se tocavam apesar de Maria estar escorada na pia. — Agora que somos cúmplices nessa, vou contar umas sujeiras do Gérard. Espero que você não goste de dormir cedo, porque isso vai demorar.

Ele sorriu o máximo que o rosto machucado permitiu e assentiu. Se dependesse de Will, aquela bendita noite duraria para sempre.

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