18. Bessie, o monstro
AMY
Ela estava de saco cheio de ver árvores, placas e carros com adesivos bregas colados nos pára-choques. Amy suspirou e esperou por alguma mensagem de Tommy ou Liz, mas recebeu apenas silêncio dos amigos. A tarde caía, pintando no céu um tom alaranjado e escurecendo o horizonte a cada carro que ultrapassavam. A monotonia da estrada engolia tudo.
Mais árvores, mais placas, mais adesivos bregas. Um sedã vermelho passou por eles rugindo uma música eletrônica terrível, e durante intermináveis segundos o baixo reverberou no estômago de Amy.
Ela nunca quis tanto estar com os amigos. Fazia tanto tempo que não os via em carne e osso que tinha certeza de que assim que pusesse os olhos em Liz, Fred e nos outros, teria dificuldade em deixá-los livres de um abraço de urso. Principalmente Tommy.
Suspirou quando outra maldita árvore surgiu na beira da estrada e um rock meloso tocou no rádio. Amy agradeceu silenciosamente quando Damian trocou de estação com uma careta. Pelo menos o cara tem bom gosto. Ele se endireitou no banco e interrompeu as pequenas conversas baixas que flutuavam na minivan ao perguntar:
— A próxima parada está muito distante?
— O que você considera distante? — perguntou Will, olhando fixamente para a tela do celular.
— Ei, você pode usar essa coisa? — Maria franziu o cenho, apoiando o braço no encosto do banco. — Tipo, o doutor não tinha proibido?
Will ficou em silêncio, visivelmente constrangido. Vermelho como um tomate pela pergunta de Maria, ele olhou para todos os cantos do carros, exceto para sua interlocutora. Amy sorriu com o canto dos lábios. Will era tão apaixonado por Maria — e tão diferente dela — que era divertido imaginar o que sairia daquela mistura de personalidades tão distintas.
Sem graça, Will ajeitou os óculos e respondeu:
— Acredito que todas as proibições sejam relativas. — Ele fez uma pequena pausa. — Sou um cara... rebelde.
Maria riu.
— Will... — repreendeu Damian.
— Em que unidade você prefere ouvir a distância?
— Isso faz alguma maldita diferença?
Will coçou o nariz. Seu olho esquerdo se repuxou num tique nervoso, e ele levantou a cabeça ruiva para encarar Damian. Will rolou a tela do celular e disse:
— De acordo com o roteiro, a próxima parada será em... 203 quilômetros.
— Estamos nos Estados Unidos, cara. Fale comigo em milhas.
— São 126 milhas.
O carro emergiu em silêncio. Amy percebeu que não era exatamente a resposta que Damian queria ouvir, não aquela distância absurda de 203 quilômetros. De onde estava, ela viu as mãos dele apertarem o volante. Não era necessário ser um perito em emoções para saber que ele estava furioso e exausto.
Ansioso com o silêncio da minivan, Will ajeitou os óculos.
— A Carolina do Sul tem áreas verdes incrivelmente bem preser...
— Eu não ligo para árvores ou áreas verdes, cara — interrompeu Damian. A conversa baixinha das garotas silenciou. — Um lugar com uma cama está mais do que bom.
— Podemos dormir no... — começou Lara, mas desistiu ao ver a careta de Damian.
Amy ficou grata por ela não ter insistido na ideia. Nenhum deles aceitaria dormir no carro. Não depois do quase acidente em Maryland, que sempre trazia calafrios à pele de Amy por causa da mãe, e depois de dormir nas camas incríveis daquele chalé na Carolina do Norte.
A tarde dava lugar a um início de noite azulado, e Amy se sentiu incomodada com o silêncio tenso da minivan. Sabia o que viria a seguir.
Foi Damian quem selou o destino deles:
— Vamos fazer um desvio, então.
Era tudo que ela não queria ouvir. Lara sorriu para ele, assentindo como se aprovasse a ideia. Um desvio atrasaria a viagem, e Amy não poderia se dar ao luxo de perder mais tempo. Não com todos me esperando e contando comigo na Flórida.
— Não há nada no mapa? — suplicou ela a Will, que afundou o rosto na tela. — Sério, qualquer coisa. Estamos aceitando até uma filial do Rob Alegre.
— Cara, acho que eu dormiria no carro se uma filial do Rob Alegre fosse a única opção. — Maria riu, ajeitando os cabelos num coque. — Qualquer coisa para não sentir aquele cheiro de batata doce de novo.
— Espere — disse Will, correndo o dedo indicador pela tela. Um sorriso torto iluminou seu rosto pontudo e outro pedaço do esparadrapo se soltou. — Encontrei um parque de trailers. Aparentemente eles alugam trailers e motorhomes de todos os tamanhos, inclusive para famílias grandes. Ah, e aceitam animais.
Ninguém entendeu os motivos da última colocação, mas ninguém perguntou. Havia um lugar para passarem a noite, e isso bastava.
— Distância? — perguntou Damian numa voz que não queria criar falsas expectativas.
— 102 metros, ou... 0,0683 milhas, se você preferir — respondeu ele. Maria franziu o cenho para Amy, que simplesmente deu de ombros. Will deu zoom na tela. — Mas você precisa pegar uma estradinha... esquisita à direita.
— Sem problemas. — Damian reduziu um pouco a velocidade e sorriu. — Estradinhas esquisitas são minhas especialidade.
---
Esquisita não seria um adjetivo que Amy usaria para descrever a estradinha que levava ao parque de trailers. Sinistra, com certeza, esquisita, nem tanto. O que Will chamava de "estradinha esquisita", Amy conhecia, pelo menos na Escócia, como "região de desova de cadáveres".
Damian embocou no caminho acidentado com as costas rígidas e os olhos azuis procurando por possíveis ameaças. Sem luz alguma, exceto a dos faróis, seguiram num silêncio assustado. Os sons da estrada principal ficaram distantes, e o cricrilar dos grilos cresceu. A minivan subiu e desceu pelos trechos acidentados da estrada de terra feito um jipe de rally, o motor reclamando dos buracos mais profundos.
Levou uma eternidade para enxergarem o estacionamento abarrotado de trailers e RV's, com um mercadinho e um trailer vermelho, a recepção, no centro de um pequeno jardim decadente. Letreiros com néons queimados e o cheiro de gasolina indicavam que estavam no lugar certo. Amy sentiu o ar voltar aos pulmões, e percebeu os ombros de Lara relaxarem no banco da frente. Enfim, chegamos.
O trailer que Damian conseguiu, uma coisa monstruosa com dois beliches, uma cama de casal e um sofá nada confortável, era a menina dos olhos da dona, uma senhora gorducha que vestia coletes com estampas militares e tinha bochechas caídas. Cuidem da minha menina!, dissera ela, entregando as chaves com um olhar nada amigável.
Estacionaram atrás do monstro, desceram da minivan e deram uma boa olhada no trailer que, segundo a gentil senhora, chamava-se Bessie. Ao redor deles, o cheiro de salsichas, fritura e cerveja enchia o parque de trailers. Um cachorro latiu e um grito de homem mandou-o calar a boca. Risadas altas, seguidas por um acesso de tosse, cortaram a noite. Maria sorriu e colocou as mãos na cintura antes de dizer:
— Cara, parece que essa porcaria vai ruir a qualquer momento. Adorei.
Enquanto todos entravam no trailer e se ajeitavam nos beliches e no sofá, o celular de Amy tocou. O nome de Tommy piscou no visor. Ela murmurou um pedido de licença e se afastou, ciente do olhar de Damian cravado em suas costas.
— Oi, Tommy.
— Oi, Tommy? Caralho, é assim que você atende o telefonema da porra do amor da sua vida, garota?
Liz. Amy sorriu e quase deixou o celular cair no chão, tamanha sua felicidade. Fazia tanto tempo que não falava com a amiga que não sabia o que dizer. Só queria sorrir e ouvir a voz de Liz proferir quantos palavrões conseguisse naquela ligação.
— Estou sentindo sua falta! — Ela apertou a celular contra a orelha, ignorando a ardência das mãos. — E estou quase chegando. Como estão as coisas?
— Ótimas. — Liz riu daquela maneira sarcástica. — Tommy não para de encher a porra do meu saco, Lindsay e Ben dormem o dia inteiro, Gwen e Aubrey comem como duas mortas de fome e Fred só pensa em transar. Sem contar que na porcaria desse estado de merda faz um calor do inferno. E com você, amiga?
Amy riu e se afastou um pouco das caçambas de lixo do parque de trailers. As moscas se banqueteavam em restos de pizza e pedaços de lixo, e o cheiro de cerveja velha ali era insuportável. Quando se afastou o suficiente das moscas, Amy respondeu:
— Tudo ótimo. Acho que amanhã apareço no hotel.
— Graças a Deus! Você precisa me ajudar a colocar ordem nesse galinheiro, porque... — Liz se afastou do telefone, e Amy quase viu suas sobrancelhas castanhas se erguerem. — Que merda, Fred, sai pra lá! Estou no telefone com a Amy!
Ela ouviu o garoto gritar: Chegue logo, criatura! Vamos conquistar a Flórida! Amy riu. Fred era o mais animado do grupo. Se não fosse por ele e pela Srta. Meadows, eles nunca teriam forças para entrar naquela loucura. Amy mandou um beijo para ele através de Liz, que ria com o namorado na cama confortável de um hotel na Flórida.
Uma pequena inveja amigável assaltou a garota. Amy afastou uma mosca insistente, franzindo o nariz, e deu mais dois passos para o lado. Ela também queria desfrutar de lençóis bem lavados e travesseiros de penas, e não de um maldito trailer caindo aos pedaços. Em breve. Para desviar os pensamentos de uma cama quentinha de lençóis brancos, Amy perguntou:
— E a Srta. Meadows e o Sr. Bell?
— No quarto no final do corredor. — Liz fez uma pausa maliciosa. — E sinceramente, acho que estão transando. E por falar em transar, se Ben e Lindsay não dormissem tanto, eu diria que andam se enroscando como dois malditos coelhos.
Amy riu. Era típico de Liz achar que todos, inclusive os professores, transavam o tempo todo, a todos os momentos, em todos os lugares.
— Eles são amigos, Elizabeth. Você não vale nada.
— Amigos que dormem juntos não são amigos. — Ela fez outra pausa maliciosa. — Mas você sabe disso melhor do que eu, não é, querida?
Amy corou e empurrou com a ponta do tênis um saco de lixo que não se moveu um milímetro do lugar.
Depois de uma festa com os amigos, antes de eles voltarem aos Estados Unidos, Amy dormiu com Tommy. Não aconteceu nada de mais — dormiram agarrados no sofá minúsculo e fedorento do porão da casa dela, onde a mãe pintava as telas —, mas Liz nunca deixava Amy esquecer o fato. Quando é que vocês vão tomar vergonha na cara e assumir essa porra, hein? Amy não sabia, e sempre que podia, como agora, trocava de assunto.
— Aliás, não sei se o Tommy falou sobre a fronteira. O cara me trouxe sem problemas.
— Ele comentou. Falei que o contato era quente e... Fred, tire as mãos daí! — ralhou ela. As duas riram no telefone. — Esse garoto tem sérios problemas. Ligue quando estiver na Flórida, ok? Quero ser a primeira a abraçar você.
— Certo. Eu amo você, Liz.
— Eu também. Vamos arrasar.
Elas ficaram em silêncio. Amy se virou para o trailer e viu Damian se aproximando com duas latas de Coca-Cola, uma em cada mão. A expressão no rosto dele era sem graça, e ela soube que ele queria conversar.
Com a boca seca, ela se despediu de Liz:
— Preciso ir. Cuide de tudo por mim, ok?
Amy encerrou a chamada quando Damian ficou a três passos de distância. Como já era esperado, nenhum deles abriu a boca.
Por que sempre tinha de existir aquele silêncio entre eles? O cheiro do lixo se misturou ao da fritura, o som das risadas veio acompanhado por uma nuvem de fumaça de cigarro e eles ficaram parados, escutando o ronco de um motor distante e uma música country ruim que vinha de um pequeno trailer prateado caindo aos pedaços.
— Lara está fazendo o jantar — disse ele, mirando algum ponto acima da cabeça dela. Suas mãos seguravam as latas com força. — Tentei ajudar, mas ela disse que não era...
Damian se calou e virou o rosto quadrado de boneco de ação quando o cachorro latiu e o homem mandou-o calar a boca outra vez. O que você quer, porra? Sempre que estava perto dele, Amy respirava com dificuldade e sentia cada músculo se contrair e implorar para ir embora, para fugir daqueles silêncios profundos e sufocantes. Ela vivera sem ele durante quinze anos, e viveria mais quinze, e mais quinze, e mais quinze se os anos permitissem.
Lá no fundo, Amy se ressentira de não ter tido um pai para apresentar no Dia dos Pais na escola, ficara com raiva da mãe por não ter contado a ele sobre sua existência, com raiva porque a mãe também nunca lhe dissera nada sobre o pai além de: Ele é só um desses americanos idiotas que a gente conhece na faculdade, Amy.
Na verdade, ela sentia ódio de si mesma por ter cruzado um oceano só para descobrir que ele não passava de um americano idiota. A mãe, como sempre, estava certa. Viver é uma merda às vezes.
O cachorro se calou, mais risadas roucas soaram e o som de uma garrafa quebrada chegou até os dois. Sem graça, ele apontou com as latas para Amy e perguntou:
— Como estão suas mãos?
Ela nem sentia mais os cortes.
Na hora em que empurrara Giorgia para longe do carro que quase a atropelara, as palmas de suas mãos arderam e seus cotovelos queimaram, mas agora eram apenas um traço de coceira irritante. Ela se sentia esquisita com aquela preocupação excessiva dele desde o posto. Você está bem? Você se machucou?
De braços cruzados, Amy deu de ombros.
— Estão ok.
Era ridículo vê-los conversando; palavras jogadas, monossílabos murmurados e frases interrompidas compunham o arsenal dos dois. Conversar com ele era como andar em terreno minado, sempre esperando pela próxima explosão, pela próxima mina fazer tudo voar pelos ares.
Damian oscilou, trocando o peso do corpo entre os pés. Ele se aproximou sem graça e estendeu uma das latas de refrigerante a ela.
— Pelo café no hospital. E pelo... pelo vídeo.
O vídeo. Ela não conseguira dormir depois de ver os olhos vidrados dele, os mesmos olhos azuis que ela havia herdado, absorverem as palavras, a figura da mãe, as coisas que ele não viveu com elas de novo e de novo. O coração de Amy sempre falseava centenas de batidas ao se lembrar de como ele segurou o choro até se afastar, das palavras embargadas que Damian murmurara antes de sair quase correndo do estacionamento.
Amy bebericou a Coca-Cola. Sem graça, Damian indicou um banco de madeira carcomida em frente a um pequeno trailer prateado. Com a cabeça formulando mil perguntas, a garota se sentou ao lado de Damian. Apertando a latinha gelada nas palmas das mãos, Amy percebeu o maxilar saliente dele se enrijecer entre um gole e outro.
— Posso fazer uma pergunta?
O questionamento escapuliu antes que Amy pudesse se conter, e ela definitivamente não estava preparada para o olhar meio confuso e ansioso que recebeu como resposta. De longe, viram um casal fumando, sentado em cadeiras de praia na frente do próprio trailer. Damian bebeu outro gole de refrigerante e assentiu. Amy reuniu toda a coragem que acreditava ter e perguntou, antes que as palavras fugissem:
— Você sabia que eu existia? Não vou ficar brava se você disser que sim. — Ela fez uma pequena pausa, pensando em como deveria ter soado infantil aos ouvidos dele. Amy deu de ombros e completou: — Os caras às vezes ignoram e deixam a mulher sozinha para criar. Foi isso o que aconteceu?
Ela sempre perguntava aquilo à mãe, principalmente quando o Dia dos Pais ameaçava chegar, mas nunca recebia uma resposta clara. Ele é só um americano idiota, Amy. Todos os americanos são idiotas. Depois de receber tantas vezes a mesma resposta, a pergunta perdia o sentido.
Amy nunca sentira falta de um pai, mas a curiosidade sempre batia à porta naquelas datas onde os pais deveriam estar presentes.
— Eu não sabia, e ela não me contou — disse ele, os dedos roçando nas bordas da lata de Coca-Cola. Pela primeira vez, Amy acreditou nele. Damian deu de ombros, como se estivesse abraçado a uma lembrança triste. — Na última vez em que vi sua mãe, ela disse que eu era um... Traidor filho da puta que merecia morrer empalado por um arpão.
Amy quase sorriu. Aquilo se parecia com algo que a mãe dela diria. Tomando outro gole de refrigerante, ela se sentou por cima de uma das pernas.
— E você era?
— O quê?
— Um traidor filho da puta que merecia morrer empalado por um arpão...
Ele se encostou no banco, cruzando os braços. Mais gritos de mulher e latidos chegaram até eles. A brisa quente da noite fez uma árvore, a única do parque de trailers inteiro, balançar. Moscas barulhentas sobrevoavam uma caçamba de lixo ali perto.
As narinas de Damian se inflaram, e seu maxilar quadrado de boneco de ação ficou ainda mais proeminente.
— Eu não traí sua mãe. Ela abriu a porta do meu quarto e de Will e viu uma francesa saindo de toalha do banheiro. Emma Vaulin. — Damian deu uma risada amarga, comprimindo os lábios. — Sua mãe foi embora no outro dia, não me deixou nem explicar. Quando cheguei lá na manhã seguinte só encontrei um bilhete malcriado na porta. Eu não traí. Emma só estava tomando banho, e eu...
A voz dele vacilou, flertando com a região do choro. Amy piscou, sem saber o que dizer. Pareceu uma eternidade até ele voltar a falar.
— Eu fui tão covarde por desistir da sua mãe, Amy.
De novo, a garota não soube o que dizer. Damian entornou a lata de Coca-Cola. Os olhos dele brilharam. Amy não soube se era por causa do gás do refrigerante, ou das lágrimas que se negavam a descer.
Ficaram em silêncio, ouvindo todos aqueles sons do parque de trailers envolvê-los num abraço sufocante. Damian pigarreou.
— Amanhã chegaremos à Flórida, então — disse ele, mudando de assunto. — Animada pra ver sua avó?
— Animada não seria a palavra. — Ela deu de ombros. — Talvez ansiosa.
— Vai dar... dar tudo certo.
Amy bebeu um grande gole de Coca-Cola e olhou para frente, sorrindo sem vontade. A verdade era que ela não ligava para a avó. Nem pensava nela, para ser honesta.
A Flórida a interessava por causa dos amigos. Ela precisava fazer aquilo pelos amigos. Ela não cruzara a fronteira atrás do pai, da avó, ou de algum resto de família. Amy fizera tudo aquilo pelos amigos, e apenas pelos amigos. Talvez eu fique com Liz quando essa merda toda acabar.
Através das persianas do trailer prateado, duas silhuetas femininas discutiam aos berros. Ao longe, os cães voltaram a latir. No banco, os dois ficaram em silêncio, e pela primeira vez ela gostou, sentiu-se agradecida por Damian não dizer nada.
— Bem, vou ver se Lara precisa de ajuda. — Ele se levantou do banco e coçou a nuca, sem saber direito para onde olhar. — Se você precisar de algo para os cortes, ou...
A voz dele morreu aos poucos. Damian enfiou as mãos nos bolsos dos jeans, e Amy percebeu manchas de suor debaixo dos braços de sua camiseta cinzenta. Ele olhou para Bessie, o trailer monstro, e ela ergueu o rosto para encará-lo.
— Você não precisa se preocupar, cara. Tô... legal.
— Eu sei. Preciso me lembrar de que você não é mais criança.
Eles trocaram um pequeno sorriso constrangido. Amy sentiu-se culpada por sorrir com um pai que não queria ficar com ela, então tratou de entortar a boca e desviar o rosto.
As mulheres continuaram discutindo dentro do trailer, e uma risada bêbada cortou a noite. Damian demorou-se, gingando de um lado para o outro. Amy balançou o pé, tentando encontrar um padrão nos círculos de poeira que o movimento formava no chão.
— Então, você quer vir comigo e ver se Lara precisa...
Ele ficou em silêncio, sem completar a frase. Amy assentiu e se levantou, espanando a poeira do traseiro. Caminharam lado a lado entre os trailers enferrujados, ouvindo a briga das duas mulheres morrer no ar denso da noite.
Já próximos de Bessie, Amy viu a sombra de um sorriso surgir no rosto de Damian. Finalmente entendeu, enquanto voltavam à Bessie, porque sua mãe se apaixonara por ele.
Ele era exatamente o tipo de cara para o qual a mãe sorria nos pubs; alto, de cara meio quadrada e barba por fazer. Amy não era contra a mãe namorar, mas evitava se envolver ou mesmo saber de seus casos. A mãe nunca apresentou um namorado a ela, e as duas viviam assim, sem tocar no assunto até que o relacionamento fosse o sério o suficiente, o que raramente acontecia com Diane.
Um mês antes de a mãe morrer, Amy descobrira que ela estava saindo com Joe, o dono do pub O'Heary. Ele era um cara bacana, moreno de olhos castanhos, barba por fazer e que não conhecia outra roupa além de jeans surrados e camisas de flanela verde. Amy percebeu que a mãe andava sorrindo mais do que o habitual, mas não comentou nada. Estava esperando as coisas ficarem sérias com Joe antes de tomar qualquer atitude, mas não deu tempo.
Joe foi ao enterro e chorou feito criança o tempo inteiro, limpando o nariz torto na manga da camisa de flanela verde. Amy tinha certeza de que eles teriam dado certo se tivessem tido tempo.
(Na noite do enterro, Joe abriu o O'Heary e serviu cerveja de graça a todos. Era o que a sua mãe teria gostado. Além do mais, você vai ter cerveja de graça aqui no O'Heary para a vida toda assim que atingir a maioridade, ok?)
Amy parou quando Damian parou. Já estavam em frente à Bessie, e a memória de Joe se desfez no ar pesado daquela noite que cheirava a churrasco e cigarros. Dentro do trailer monstruoso, viram Lara através da janela da cozinha, com um pano de prato encardido no ombro e cortando legumes no balcão do trailer.
— Se você estiver comigo, Lara vai me deixar ajudar — disse ele, coçando a nuca. — Ela leva esse negócio de cozinhar bem... a sério.
Amy sorriu sem desviar o rosto do trailer. Lá dentro, Lara secou as mãos, esticando-se para mexer o conteúdo de uma panela e provar o conteúdo.
— Quando chegarmos à Flórida, quero comprar um presente pra ela. Lara merece — disse ela. Damian permaneceu com as mãos nos bolsos, encarando-a. Sem graça, ela continuou: — Talvez... flores. Ou um bolo, assim poderemos comer todos juntos antes de vocês seguirem viagem.
Ela odiava admitir que sentiria falta deles, do ar-condicionado da minivan, da conversinha em italiano de Alessia e Giorgia, das gargalhadas de Maria, dos olhares maternais de Lara, de Will ajeitando os óculos e jogando videogame com ela.
De certa forma, Amy também sentiria falta daquele pai idiota que não a queria. Mas não vou pensar nisso agora. Amanhã eu penso nisso.
Damian encarou a figura de Lara, cozinhando apressada dentro do trailer, e coçou a nuca. Com um pigarro, ele disse:
— Bacana. Pensaremos em algo que Lara possa gostar.
Ele ergueu a mão para tocar o ombro seu esquerdo, mas desistiu na metade do caminho. A mão de dedos quadrados ficou suspensa, decidindo se deveria descer ou não. Amy fingiu não ver, e ficou grata quando Damian recolheu a mão, pigarreando e ajeitando os cabelos.
— Vamos entrar — disse ele.
Ela sorriu sem graça, seguindo-o para dentro da Bessie.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top