16. mudando o passado

LARA

O salão do café da manhã ficava dentro do chalé-barra-recepção da Sra. Barnes e apresentava uma vista magnífica da piscina. Lara desejou um bom-dia à rechonchuda dona da pousada e se sentou numa das mesas que ficavam próximas às janelas, observando o movimento crescente da piscina. Ela respirou fundo, alegre por sentir o cheiro de café novo, biscoitos amanteigados e bolos de canela que vinham da grande mesa do salão.

Os turistas idosos entravam animados para o desjejum, vestindo shorts, camisetas e viseiras, falando sobre as atividades planejadas para o dia que recém começava. Lara sorriu por cima da xícara de café ao ver uma pequena senhora ficar radiante ao perceber a existência dos bolinhos de canela na mesa repleta de quitutes.

De súbito seus pensamentos se voltaram para Gérard. Ela sorriu outra vez, mordiscando o pequeno biscoito amanteigado. Que grande surpresa ele teria quando visse as filhas ali, a um abraço de distância! Quando Lara pensava que estavam há menos de dez horas de onde ele vivia, não conseguia evitar que um sorriso imenso ganhasse seu rosto. Porque Gérard me ajudará a pagar o aluguel. E a encontrar outro emprego.

A maior preocupação de Lara era pagar o aluguel daquele mês. Atrasar o pagamento estava fora de cogitação.

Tão logo Gérard se mudara para a Flórida, há quatro anos, ela tivera a sorte de encontrar a irmã de Damian nos classificados. Na época, Grace estava de malas prontas para a Itália e precisava alugar o apartamento em que morava o mais rápido possível. Lara, ansiosa por deixar os guetos, sabia que teria de trabalhar o triplo para pagar aluguel, mesmo com Grace sendo gentil o suficiente para abaixar em algumas centenas de dólares o valor, mas não se importou. Se para sair dos guetos precisasse trabalhar o triplo, que fosse.

Ela trabalhava como um cavalo de carga para pagar cada centavo a Grace porque morria de medo de voltar aos guetos, de sentir o cheiro de urina nas escadas, de ouvir os gritos de cafetões e o choro de prostitutas nos corredores pichados. Lara não queria criar as garotas naquele ambiente onde era comum um membro de gangue amanhecer com a garganta cortada e não queria, nunca mais, se esconder das batidas policiais que varriam o prédio. Voltar a morar nos guetos seria seu último recurso.

Mas sem o bico de garçonete no pub talvez seja... necessário. O que Lara ganhava como caixa no mercado do Sr. Mills não seria o suficiente para pagar o aluguel, nem com o salário de Maria. Estavam ferradas.

Lara tentara pedir um aumento o Sr. Mills, mas cada vez que o via, desistia. O dono do mercado, um senhor gorducho que usava suspensórios e sorria mais do que o usual, ultimamente não fazia outra coisa além de se trancar no escritório e revisar as contas.

(Na última vez em que fora pedir um aumento, Lara vira o Sr. Mills debruçado na escrivaninha com o rosto escondido nas mãos e chorando feito um menino. Sem graça, ela saiu antes que ele percebesse sua presença, desistindo do aumento. Depois disso, nunca mais retornou ao escritório dele, mas ouvia seu choro baixinho e engasgado vez ou outra.)

Eu vou dar um jeito. Gérard vai me ajudar. Ela sorriu para uma velhinha simpática e tomou outro gole de café.

O marido entenderia a situação. Gérard sempre fora ótimo em encontrar soluções para problemas de dinheiro. Ele provavelmente beijaria o nariz dela e diria: Não se preocupe, bella! Vamos dar um jeitinho nisso pra já! Lara sorriu, pensando em sua surpresa ao vê-la, ao ver Giorgia e Alessia. Por que a Flórida precisava ficar tão longe?

Lara mastigava um biscoitinho de canela quando Damian desabou na cadeira em frente. Ela estava prestes a articular um bom-dia alegre e sorridente, mas desistiu ao ver a expressão do vizinho.

Na melhor das definições, Damian parecia atormentado. Seus cabelos castanhos estavam arrepiados e seus olhos azuis tinham o brilho nervoso de quem passa a noite em claro tentando resolver um problema sem solução. Ele murmurou um bom-dia sem vontade e roubou um pãozinho do prato dela. Lara descansou a xícara no pires.

— Está tudo... bem?

Ele ergueu o rosto. Os dois ficaram em silêncio, ouvindo o ruído dos talheres dos velhinhos e das conversas sussurradas.

Lara deu uma boa olhada nele. Damian usava a mesma camisa de ontem, agora amarrotada pela possível noite insone. Havia um princípio de barba em seu rosto quadrado, que ele coçava com uma carranca. Algo não ia bem.

— Eu dormi no carro — disse ele.

Lara parou a xícara a meio caminho da boca, encarando Damian com uma curiosidade preocupada. Ela depositou a xícara no pires novamente.

— Você... quer falar sobre isso?

— Não.

Ela ficou em silêncio enquanto ele comia o pãozinho com amargura. Os olhos inchados de Damian fitavam os velhinhos alegres e falantes com a raiva mal disfarçada do cachorro chutado que exige respeito. Lara esperou e comeu outro biscoito doce.

— Tudo bem — disse ele, bufando. — Talvez eu precise falar sobre isso. Você quer bolinhos?

Ela agradeceu quando Damian voltou com um pratinho repleto de bolos de baunilha decorados com carinhas felizes, corações e arco-íris de glacê numa mão e uma xícara de café na outra. Antes de começar, ele juntou a ponta dos dedos e a encarou com os olhos inchados.

— Certo. A conversa pode ficar um pouco estranha, mas preciso que você seja honesta comigo, ok? Mesmo que nada faça sentido e que eu pareça meio chapado, a honestidade será importante.

Lara assentiu e lambeu o glacê do dedo indicador, retesando os ombros. Os velhinhos conversavam e comiam, aumentando o burburinho de vozes e talheres no salão da Sra. Barnes, entretanto ela não relaxou. Algo na expressão dele a deixava inquieta, como se quisesse resolver o que o incomodava de uma vez por todas.

Lara estava prestes a pegar outro bolinho, mas Damian segurou seu pulso e estendeu o outro dedo mindinho meio curvado para cima. Ela enrijeceu na cadeira com aquele gesto repentino. Os olhos azuis dele fitaram o fundo de sua alma. Lara não soube o que responder.

— Você jura? — perguntou ele.

Alessia e Giorgia, de sete anos, faziam aquilo. As promessas de dedinho. Era fofo quando garotinhas risonhas trocavam segredos e juravam nunca falar sobre determinado assunto.

Mas quando um homem nos seus 33 — 34? — anos iniciava promessas de dedinho era, no mínimo, assustador. Damian não apertava com força seu punho, e Lara poderia pegar outro bolinho se quisesse, mas não quis. O olhar dele era tão perdido e suplicante que ela não ousou se mover ou mesmo respirar.

E o dedo continuava lá, no ar, esperando por correspondência.

Lara deixou um sorriso compreensivo chegar ao próprio rosto e enganchou o dedo mindinho no dele.

— Eu juro.

Damian sorriu em agradecimento e a deixou livre para pegar outro bolinho, que Lara não demorou a puxar para o próprio prato. Ele tomou um grande gole de café antes de apoiar os braços na mesa e perguntar:

— Se você pudesse criar uma outra realidade, mudar uma escolha da sua vida, qualquer uma, que escolha você mudaria?

Lara parou de comer o confeito do bolinho e limpou a boca no guardanapo.

— O que você quer dizer com isso?

— Você sabe. Sempre passamos por aqueles momentos em que precisamos tomar decisões que mudam tudo, que alteram todas as outras escolhas que vamos fazer. O que você mudaria se pudesse?

Damian a encarava, esperando por uma resposta. Lara pousou a xícara no pires e pensou. Como diabos aquilo estava relacionado a dormir no carro?

Ficaram em silêncio novamente, ouvindo os velhinhos manipularem os talheres ruidosamente. Lara deu de ombros. As perguntas profundas não eram exatamente sua praia.

— Nada. Eu não voltaria, não mudaria nada.

Ele não esboçou reação num primeiro momento. Lara tomou outro gole de café e viu seu vizinho semicerrar os olhos azuis.

— Você está me dizendo que não tem arrependimentos?

— Não. Eu só disse que não mudaria nada — respondeu ela, como se falasse com uma criança teimosa. Lara suspirou para a própria xícara. — As escolhas que fazemos sempre têm consequências boas e ruins. Só precisamos aprender a lidar com elas.

Ele apoiou o cotovelo na mesa e enterrou a cabeça na mão, bagunçando ainda mais os cabelos arrepiados. Damian girou o saleiro na mesa, desistiu da brincadeira e suspirou, observando os velhinhos com o rosto apoiado nas mãos. Lara tomou outro gole de café, observando-o por cima da xícara. Os olhos azuis dele encontraram os dela.

— A garota me mostrou um vídeo de Diane ontem à noite — disse Damian de um fôlego só, como se temesse perder a coragem. — E eu não conseguia parar de pensar que se eu pudesse voltar no tempo, que eu... eu largaria tudo. Eu deixaria tudo para trás para estar naquele vídeo com elas. Isso é loucura?

Lara ficou em silêncio.

— Você ainda quer honestidade?

— De preferência.

— É loucura. — Lara pôs um bolinho sorridente no prato de Damian e inclinou o corpo para frente. — Você não pode mudar as escolhas que passaram, mas pode mudar as que virão. E se você for otimista, pode pensar que tudo pode sempre melhorar.

Ele girou o saleiro na mesa mais uma vez e sorriu com o canto dos lábios. Lara teria dado um tapinha em seus ombros largos, mas estavam longe. Ela se limitou a sorrir como sorria para as filhas quando elas desistiam de algo. Novamente, o olhar dos dois se encontrou.

— Você ainda não me respondeu o que mudaria. — Damian se endireitou na cadeira e levantou uma das mãos. — Não me venha com essa conversa mole de que você faria tudo igual, ok? Todo mundo já pensou em mudar alguma coisa. Você não pode ser tão evoluída assim.

Lara riu, balançando a cabeça. Depois de um tempo o sorriso sumiu e ela segurou a medalhinha que a mãe lhe dera como presente de aniversário de quinze anos. Um grupo de idosos saiu para fazer trilha, e os sons do salão se aquietaram. Lara fixou os olhos em Damian, que prestava atenção com curiosidade, como se ela pudesse resolver todos os problemas do mundo com a resposta.

— Eu teria mudado algumas coisas...

— Tipo? — perguntou ele.

— Eu não teria saído da Itália — disse ela, antes que as palavras entalassem em sua garganta. Com um sorriso, Lara completou: — Mas cada vez que olho para Giorgia e Alessia, percebo que desistiria milhões de vezes da Itália para estar com elas.

— Consequências boas e ruins — disse ele após um silêncio reflexivo.

— É isso aí.

Damian semicerrou os olhos e os dois riram. Pegando o bolinho do prato, ele perguntou:

— Nada mais?

Lara apoiou o cotovelo na mesa e o queixo na mão direita. Já tinha passado por tantas situações humilhantes e empregos esquisitos que nem sabia por onde começar. Quando um ligeiro cheiro de fritura pairou no ar, soube exatamente o que mudaria.

— Bem, eu não teria trabalhado no Barley's — disse ela. — Isso é algo que eu com certeza mudaria.

— Então é daí que vem a sua resistência com fast food e salgadinhos. — Damian riu. — O que você fazia lá?

— O de sempre. Às vezes fritava os hambúrgueres, às vezes limpava os banheiros. — Lara inclinou o corpo como se fosse contar um segredo a ele. Damian fez o mesmo. — O banheiro dos homens era um pesadelo. Um cara que morava ali perto tinha problemas intestinais tão terríveis que era...

— Ok, Lara. Muita informação para essa hora da manhã. Obrigado.

Eles riram. Um pequeno silêncio, regado pelos sons dos talheres das outras mesas, surgiu entre os dois.

Mas o clima leve não durou. Damian roçou o dedo indicador na toalha, encarando a estampa quadriculada sem realmente prestar atenção.

— Dormi no carro porque estava pensando sobre as escolhas que fiz. — Ele suspirou. — E porque depois de ver o vídeo mil vezes, coloquei minha música e de Diane para tocar.

Damian ficou em silêncio antes de completar:

— Eu sou um covarde por não ter ido atrás dela.

— Ei. — Lara enroscou os dedos nos dele. A mão de Damian era quente e pulsava debaixo da sua. — Consequências, certo? Você não pode mudar isso, mas pode... pode trabalhar com o que tem, reparar algumas coisas. E pode começar mais cedo do que imagina.

Ela riu e indicou com um gesto de cabeça a entrada do salão, de onde vinham Maria, bocejando, Amy, muito maquiada, Will, mancando um pouco, e as filhas, sonolentas e esfregando os olhos. Alessia trazia o urso de pelúcia, Giorgia, o cenho vincado e a mesma irritação matinal da tia.

Damian sorriu de volta e apertou a mão de Lara como forma de agradecimento. Ela soltou a mão dele antes que o restante do grupo chegasse perto demais.

Giorgia abraçou Lara com mau humor, escondendo o rostinho em seu pescoço. Ela beijou a testa da filha sete minutos mais velha e acariciou seus cabelos castanhos.

— O que houve, pupa? — perguntou Lara, enquanto todos se sentavam e pegavam pães, bolos e biscoitos para os próprios pratos.

— Estou com sono, mamma — respondeu Giorgia, emburrada. Olhou feio para a irmã, que comia um bolinho repleto de confeitos coloridos. — E Alessia roncou como um trattore.

Maria deu um beijo na cabeça de Lara, tomando um lugar à mesa. Lara riu da filha e se virou para Alessia, que olhava para Amy com a boca aberta.

Com as unhas pintadas de preto, a jovem abriu as mãos para a garotinha e sorriu com o canto dos lábios. Maria balançou a cabeça, apoiando os cotovelos na mesa.

— Como você fez isso?! — perguntou Alessia. — Amy sumiu com meu biscoito, mamma!

— Espere. — Amy estalou os dedos atrás das orelhas de Alessia, reaparecendo com o biscoito. — Abracadadra, pequena.

Todos riram, exceto Damian, que permaneceu encarando o próprio prato vazio, alheio à alegria da mesa. Ela suspirou, limpando a boca no guardanapo. Ele ainda precisa de tempo. Virou-se para o resto do grupo, que ainda se divertia com os truques de mágica.

Lara queria perguntar se Will se sentia bem, mas exceto por Alessia — e Giorgia, que se animara com o pequeno truque —, ele era o mais intrigado pela mágica de Amy. Na verdade, parece muito melhor do que... bem. Com os óculos de aro grosso remendados com Band-Aids da Hello Kitty, Will franziu as sobrancelhas ruivas. Todos seus cortes e arranhões se contorceram.

— Mas isso... como você...? Qual o mecanismo que você usou? — perguntou ele. — Seus dedos são muito finos para esconder os biscoitos. Faça de novo!

Amy repetiu o truque para Will, que não conseguiu adivinhar como a garota era capaz de sumir com as rosquinhas de canela. Amy riu e comeu o biscoito. Embasbacado, Will olhou para Lara, que deu de ombros com um sorriso.

— Certo, crianças, chega de brincadeiras. — Ela deu dois tapinhas no traseiro de Giorgia, que sentou ao seu lado. — Vamos comer.

Damian permaneceu silencioso, remexendo nos restos de um bolinho meio comido. Lara quis confortá-lo, fazê-lo participar das conversas da mesa, mas não conseguiu. Depois da mágica, Amy também ficou silenciosa, comendo em pequenas mordidas um pãozinho doce.

— E nada de café para você, cara. — Maria puxou a xícara vazia para longe de Will. Do outro lado da mesa, uma expressão de tristeza tomou o rosto deformado dele. — Você só pode estar louco se acha que vai beber café depois de apanhar como apanhou ontem.

— Mas eu já estou melhor... — começou ele.

Aquilo não foi o suficiente para convencer Maria. Ela semicerrou os olhos para Will, que se encolheu um pouquinho e desistiu do café.

Quando a maioria foi e voltou da grande mesa de comida do café da manhã, enchendo os pratos de plástico com bolinhos, pães, frios e outras delícias, Maria inclinou o corpo para frente, sorrindo. Lara sempre ficava receosa com aqueles sorrisos enviesados da irmã mais nova.

— Ok, quem vai me ajudar a levar alguns bolinhos para a viagem? — perguntou ela.

— Maria! — repreendeu Lara. O olhar das filhas brilhava com o potencial de uma travessura. Virando-se para as meninas, Lara completou: — Não é certo roubar, sim? A titia está fazendo uma coisa muito, muito, muito...

— Bem, teoricamente — começou Will, ajeitando os óculos —, nós pagamos pela comida. Seria roubo se não fechássemos a conta.

Novamente, o silêncio abraçou a mesa. Maria sorriu como um duende. As garotas pularam de ansiedade no banco.

Lara suspirou ao perceber que era voto vencido.

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No carro, o cheiro de bolinhos e biscoitos roubados estava por toda parte. O açúcar corria nas veias de todos tão logo deixaram a Carolina do Norte. Como sempre, Damian dirigia em silêncio, com o braço apoiado na porta e a cabeça no punho, guiando com apenas uma das mãos. Lara encolheu as pernas e espiou pelo retrovisor o que cada um fazia nos bancos de trás.

Giorgia e Alessia contavam uma história a Will e Maria sobre uma amiguinha da escola. Amy olhava para fora, baixando os olhos constantemente para a tela do celular. Lara relaxou no banco quando percebeu que tudo estava em ordem e que, em breve, estaria com Gérard. Ele vai saber o que fazer. Ele vai me dar uma saída.

Lara ainda precisava tratar com Maria os dois assuntos que tiravam seu sono há semanas. O primeiro era a perda do bico de garçonete no pub do Sr. Lee. O segundo — e muito mais espinhoso — seria a probabilidade de Lara se mudar de vez para a Flórida a fim de ficar ao lado de Gérard e das filhas. Ela vai me odiar para sempre, pensou Lara quando a irmã riu da história das sobrinhas.

Maria seria mais do que bem-vinda se quisesse ficar com eles, mas Lara sabia que a irmã não moraria com o cunhado nem sob tortura. Gérard havia morado com elas até as meninas completarem três anos, e foram os anos em que as portas do pobre apartamento mais sofreram com os acessos de fúria de Maria. Lara não queria reviver as brigas terríveis que eles encenavam entre a cozinha e a sala do minúsculo apartamento nos guetos, mas não queria deixar Maria para trás.

Separar-se dela seria a maior das traições que poderia cometer, mas não era justo Lara ter de viver longe do marido e deixar Giorgia e Alessia sem o pai. A cada árvore que passavam na estrada, Lara via os olhos verdes da mãe misturando-se às folhas, balançando a cabeça. Ela respirou fundo e segurou a medalhinha de prata entre os dedos. Diga-me o que fazer, mamma. Como ela poderia deixar Maria? Como poderia deixar Gérard?

O toque do telefone de Damian encheu o carro. Com um sorriso, ele apertou um botão no volante.

Onde você está?! — Era uma voz de mulher e, pela barulheira de fundo, não parecia estar sozinha. — Eu juro por Deus que estava quase pedindo à Interpol para que localizasse essa sua bunda branquela que não atende o celular!

— Grace. — Damian sorriu de verdade pela primeira vez desde o início da viagem, relaxando no banco. — Também estou feliz por falar com você. Como estão as coisas?

Ah, o de sempre. Modelos vomitando um órgão por dia, estilistas temperamentais jurando processar todo mundo, assistentes que não têm noção nenhuma do que estão fazendo e caras lindos usando cuecas de marca e posando para mim. Milão é o mundo dos sonhos, mano.

— Foi o que ouvi dizer. — Ele riu.

Então, que diabo de história é essa que eu tenho uma sobrinha? — perguntou ela. — A ligação da tarde passada falhou, e eu juro por Deus que se você engravidou aquela cadela da Irina...

Damian corou quando Giorgia e Alessia riram. Apertando o volante e sorrindo sem graça para Lara, ele disse:

— Ei, mana, cuida com a... com a boca. Estamos no viva-voz da minivan.

— Minivan?

— É uma história meio longa — disse Damian. — Estou indo para a Flórida numa minivan com suas inquilinas italianas, Will, e uma garota adolescente que conheci essa semana. Explico tudo por mensagem, caso a ligação falhe.

Grace ficou em silêncio do outro lado da linha antes de dizer:

Você é sempre uma surpresa, irmãozinho. — Ela riu mais uma vez. Um burburinho de conversas altas e equipamentos pesados sendo carregados surgiu junto com a voz dela. — Ciao, Maria e Lara! Como estão as coisas? Tudo certo com o apartamento?

Lara sorriu, lembrando-se da última vez em que vira Grace, quando ela estava de partida para a Itália, atarantada com as malas e o horário do voo. Lara não conseguia visualizar com clareza o rosto da irmã de Damian, porém se recordava dos brilhantes olhos azuis e dos cabelos castanhos curtos e repicados, além de uma curiosidade insaciável pelo idioma italiano.

— Está tudo ótimo — respondeu Lara, instintivamente inclinando a cabeça em direção ao painel multimídia do carro. — Grazie mille, Grace.

— Eu vou a Nova York mês que vem. Se vocês não estiverem ocupadas, poderei tentar impressioná-las com meu italiano ruim num chá. O que acham? — O burburinho cresceu do outro lado. Grace alteou a voz. — E isso serve para você também, Damian. Se eu pousar em Nova York e você não me recepcionar com os hambúrgueres de Will, as coisas vão ficar feias.

— Longe de mim querer decepcionar Vossa Majestade — respondeu ele, rindo.

— Grace, você precisa experimentar minha nova receita — Will comentou num tom animado, apoiando-se no banco de Maria. — Ainda está em fase de testes, e você, como minha cobaia culinária preferida, precisa dar sua opinião. Posso adiantar que envolve mostarda caseira.

Grace riu.

Se eu não fosse casada com Paolo diria que você é minha alma gêmea, Will. — Ela suspirou e retrucou algumas palavras em italiano longe do telefone. — Preciso ir. Paolo está de cuecas, reclamando do frio e querendo terminar logo a sessão. Homens. Até depois. — Damian quase apertou o botão para encerrar a chamada, mas a voz de Grace voltou a ressoar pela minivan. — E Damian, pelo amor de Deus, atenda a porcaria desse celular quando eu ligar. Ciao!

Um click indicou o fim da chamada.

— Às vezes agradeço por não ser mais vizinho de Grace, mas às vezes — Damian suspirou e sorriu —, cara, às vezes ela faz uma falta danada.

Giorgia e Alessia apareceram no vão entre os bancos. Lara apertou de leve a ponta do nariz da filha mais velha, que riu. Alessia, segurando o Sr. Bolotas contra o peito, franziu as sobrancelhas para Damian. Os olhinhos dela o avaliaram antes de perguntar:

— A sua irmã é mais velha, Sr. Harris?

Lara arqueou as sobrancelhas.

— Alessia, não incomode o...

— Está tudo bem — assegurou ele. Lara sorriu agradecida. — E sim, Alessia, minha irmã é mais velha. Assim como a sua, certo?

Seu rostinho redondo se iluminou com um sorriso. Lara quis apertar as bochechas da filha mais nova e enchê-la de beijos.

— Sete minutos mais velha — respondeu Alessia com uma risadinha. Giorgia conversava com Maria no banco de trás. — Por quantos minutos a sua irmã é mais velha, Sr. Harris?

Ele pareceu confuso e olhou para Lara com aquele olhar que dizia: É sério? Ela riu e deu de ombros. Damian pensou um pouco antes de dizer:

— Ela é... dois anos mais velha.

— O senhor também é o irmão mais novo! — O rostinho de Alessia se iluminou e ela apertou o Sr. Bolotas com mais força. — Giorgia está sempre me dizendo para comer coisas do chão. A sua irmã também fazia isso?

Lara franziu o cenho e se virou para encarar melhor a filha mais nova. Aquilo era novidade.

— Porque você não contou à mamma que sua irmã estava fazendo isso, pupa?

— Bem, porque a senhora estava ocupada. — Ela se encolheu um pouquinho. Lara lançou um olhar repreensivo a Giorgia, que arregalou os olhos. — E porque somos parceiras.

Damian riu, diminuindo o volume do rádio.

— Sei como você se sente, Alessia. — Ele ultrapassou uma perua azul repleta de adolescentes e checou o retrovisor com o mesmo sorriso no rosto. — Uma vez minha irmã me fez engolir um giz de cera vermelho que cheirava a morango.

— E o que o senhor fez? — perguntou Giorgia, enfiando-se entre os bancos e dividindo o espaço com a irmã.

— Não contei à nossa mãe, mas ela descobriu quando comecei a vomitar os pedaços do giz. Grace chorava, dizendo que não queria que eu morresse. Depois ela nunca mais me obrigou a engolir nada.

— Eu nunca fiz você engolir nada, fiz? — perguntou Lara, virando-se para Maria.

— Não. — Ela riu, vasculhando a mochilinha da Hello Kitty de Giorgia. — Apenas sapos e seu marido idiota.

Lara apertou os lábios para a irmã. Seus olhos encontraram os de Will, que ajeitou os óculos com um gesto nervoso. Ela sorriu para o rosto inchado e machucado dele, incentivando-o a pular na conversa. Will deu de ombros.

— Tenho três irmãs mais velhas — disse ele. — Engoli todo tipo de material escolar, maquiagem, xampu e moedas ao longo da vida.

Lara riu e recebeu de volta, por parte dele, um sorriso torto por causa do esparadrapo que decorava seu nariz reto.

Por reflexo, Lara quase perguntou à Amy, mas se conteve a tempo. A garota olhava para fora, segurando com força o celular nas mãos. Suas perninhas finas subiam e desciam, balançando seu corpo magro involuntariamente. Algo não vai bem.

Quando Lara se virou para frente, ainda pensando em Amy, ouviu um resto de conversa entre Damian e as meninas.

— ...e por isso que o melhor é o verde! — disse Damian. As palavras flutuaram pelo carro acompanhadas por uma risada relaxa e convencida. — Quando pararmos, vocês vão ver. Vocês estão erradas e eu estou certo.

— É claro que não! — retrucou Giorgia, franzindo o nariz. — O verde é azedo e tem gosto de vinagre. O roxo é o melhor.

— Eu gosto do vermelho — disse Alessia, ajeitando-se no banco. — Todo mundo prefere o vermelho. Podem perguntar.

Lara sorriu, preferindo não entender aquela conversa sem noção das garotas com Damian, e relaxou no banco. Ela fechou os olhos por alguns segundos e ouviu os sons do carro; as palavras soltas das filhas com o vizinho, a conversa de Maria com Will — que mais ouvia do que falava — sobre os trabalhos doidos que elas tiveram e até o silêncio de Amy se faziam presentes na minivan.

O ar-condicionado amenizava o calor, o rádio tocava uma música country lenta num volume baixo e Lara, que tentava encontrar uma saída para seus próprios dilemas, relaxou no banco de couro e adormeceu.

Foi acordada com um toque hesitante dos dedos quentes de Damian. Lara abriu os olhos ainda meio desorientada. Ele sorriu do banco do motorista.

— Ei, é hora de acordar. — Damian riu, guardando a carteira no bolso traseiro do jeans. — Você murmura em italiano enquanto dorme, sabia?

Lara sorriu, esfregou os olhos e bocejou. Com a pele arrepiada pelo despertar, percebeu que estavam parados.

— Onde estamos? — perguntou ela numa voz rouca. — Onde estão... todos?

— Paramos no posto para abastecer. — Damian girou a chave na ignição, desligando o motor. — A garota sumiu com o celular, Maria está no banheiro e Will está com as meninas na loja de conveniência. Acho que elas gostam dele.

— Espero que elas não o incomodem. — Lara esfregou os olhos mais uma vez.

— Will ainda tem um pouco de medo delas. — Damian riu e apontou para fora quando a cabeça ruiva do amigo apareceu através do vidro da lojinha, seguida por duas garotinhas saltitantes. — Mas acho que no fundo eles se dão bem.

Os dois riram, mas o receio voltou a atacar Lara. Ainda preciso falar com ela sobre o emprego e Gérard. A porta do banheiro feminino, que ficava a poucos passos da loja de conveniência, estava vazia. Agora era a hora.

Ela se espreguiçou mais uma vez e abriu a porta do carro. Damian colocou a mão em sua perna. Lara se voltou para encará-lo.

Os dedos dele esconderam a pequena mancha de tinta vermelha que um trabalho escolar de Giorgia e Alessia deixara em seu jeans puído. Lara esperou, encarando os cabelos desalinhados de Damian e seus olhos azuis distantes.

Um sorriso econômico surgiu em seu rosto quadrado de boneco Max Steel e ele deu um tapinha em cima da mancha. Seu relógio caro, daqueles que os atletas usam para fazer trilhas, brilhou contra o sol.

— Só... só obrigado por não me achar um maluco na pousada. — Ele sorriu. — E eu queria dizer que, sei lá, depois que essa viagem acabar, podemos pedir uma pizza ou algo assim. O que você me diz?

Ah, não. Lara sentiu os ombros se retesarem e as bochechas, traidoras, corarem diante da proposta. Damian sorriu e segurou o volante com as duas mãos, esperando por uma resposta que ela não poderia dar.

Em nenhum momento Lara dera abertura para... para aquele tipo de convite. Sem graça, ela disse a única coisa que lhe ocorreu:

— Eu sou... casada.

— Eu sei. — Ele riu, baixando o rosto e coçando a cabeça. — Tenho uma noiva, Lara. Pelo menos eu tinha uma antes dessa viagem começar. Não foi uma tentativa de chamar você para sair, se isso ajuda em alguma coisa. Acho que seria legal, você sabe, pedirmos uma pizza, bebermos algumas cervejas, chamar Will, Maria e as garotas. Reunir a... a galera. Como amigos normais numa noite normal.

Se tudo ocorresse como Lara imaginava, ela e as garotas não estariam lá para a noite de pizza e cerveja que Damian planejava. Ela estaria na Flórida com Gérard, Giorgia e Alessia e, muito pouco provável, com Maria.

Com a garganta quase fechada, Lara sorriu.

— Sinto muito, Damian. Claro. Será ótimo.

Ela bateu a porta do carro, a cabeça rodando. Quando foi que você se transformou numa mentirosa, Lara?

Ela não pensou mais no assunto. Com o sorriso alegre de Damian cravado na memória, entrou no banheiro feminino para falar com Maria.

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