15. como ela era?
DAMIAN
Cada chalé da Pousada Barnes possuía uma pequena churrasqueira e uma mesa de madeira com dois bancos retangulares nos fundos. Assim que Damian acendeu as brasas, ajeitando a grelha e os hambúrgueres, lembrou-se das festinhas de aniversário que os pais faziam quando ele e a irmã eram crianças.
Balões, presentes, crianças correndo e jogando bola no gramado, subindo em árvores e gritando. Damian suspirou. Aquilo sim era vida. Seu pai grelhando as carnes, a mãe servindo suco e bolo aos outros pais e Grace, sua irmã, tirando fotos das amiguinhas.
Damian riu, lembrando-se de uma Grace banguela chacoalhando nas mãozinhas a câmera do pai. Ela sempre soube que seria fotógrafa e em cada churrasco e festa de família a futura profissão da irmã ficava mais evidente, até ela decidir, enfim, seguir carreira como fotógrafa de moda na Itália.
Eu deveria falar mais com Grace, pensou Damian, remexendo as brasas da churrasqueira e buscando na memória a última vez em que vira a irmã. Teria sido no último Natal, quando ele fora a Londres resolver problemas da agência e acabara em Milão para uma visitinha ou teria sido antes? Antes, provavelmente.
Grace saberia como colocar Irina no lugar dela. Damian sentia falta da irmã, de seu jeito enérgico e principalmente da maneira como ela dizia que Irina era uma piranha desgraçada que só pensava em si mesma. Bem, Grace nunca esteve errada.
Depois de receber dez ligações de Irina — e ignorar todas elas —, Damian decidiu que seria melhor desligar o celular. Estava de saco cheio de ouvir reclamações da noiva, de ser humilhado pelos amigos esnobes dela e de não poder transar no sofá. Qual era o problema de Irina com o sofá, afinal?
O cheiro dos hambúrgueres fez a boca de Damian salivar. Com a ajuda da espátula, virou-os na grelha e suspirou.
Por mais incrível que aquilo parecesse, ele estava... feliz. Não do tipo ganhei-na-loteria-feliz, mas um feliz relaxado, despreocupado. Até o momento, exceto por uma filha adolescente gótica, a morte dela, o espancamento do melhor amigo, uma longa viagem pela frente e uma minivan que não tinha força alguma de motor, ele poderia dizer que estava feliz.
Ainda queria chegar o mais rápido possível no destino e se livrar da garota, mas não adiantava protestar. Ordens médicas são ordens médicas. Eles chegariam, mais cedo ou mais tarde, à Flórida. Como dizia Lara, as coisas sempre se acertam. Eu realmente preciso ser um pouco mais como ela.
Ele ergueu os olhos para a mesa de madeira que agora tinha uma toalha xadrez, pratinhos e copos azuis descartáveis, e sorriu. Lara colocava garfos e facas de plástico sobre a mesa e, ocasionalmente, afastava algum passarinho intrometido.
— Onde você conseguiu a toalha? — perguntou Damian, virando os hambúrgueres mais uma vez.
— Com a Sra. Barnes, a senhora da recepção. — Ela riu, inclinando-se para ajeitar um dos pratinhos. Sua medalhinha de prata pendeu do pescoço. — Ela me contou que as pessoas geralmente gostam de fazer churrascos, mas que a Srta. Kelly nunca se lembra de colocar as toalhas e os pratinhos nas gavetas da cozinha, e isso a deixa... louca da vida.
Damian riu e balançou a cabeça. O rosto bondoso e gorducha da Sra. Barnes brilhou em suas memórias, e ele tentou imaginá-la furiosa com o que quer que fosse.
— Bem, ela não me parece ser o tipo de pessoa que perde a paciência — comentou ele, virando as salsichas na grelha. — Aliás, estamos quase prontos aqui. Maria e as garotas...
— Só Deus sabe. — Lara enrolou os saquinhos plásticos, jogando-os no lixinho. Quando ela se aproximou, o cheiro de massinha de modelar e biscoitos se misturou ao de carne assada, e Damian sorriu. Com um franzir de sobrancelhas, Lara confessou: — Espero que não tenham colocado fogo em nada. Maria às vezes parece uma criança quando está com elas.
— Também tenho sobrinhos.
Ela ficou em silêncio. Ele pressionou os hambúrgueres na grelha, ligeiramente arrependido por ter deixado aquilo escapar. Lara permaneceu em silêncio, esperando pelo resto.
Damian raramente via as duas filhinhas de Grace que, pelas contas dele, tinham pouco mais de dois anos. Aí está outra coisa que preciso consertar. Sem graça, ele deu de ombros.
— Bem, eu...
— Eu não tenho sobrinhos — disse ela. Ele agradeceu com um olhar pela mudança de assunto. — E espero que Maria não escolha esse novo namorado imbecil para ser o pai dos filhos dela.
Damian se lembrou de Maria dizendo poucas e boas sobre Gérard, o marido de Lara, antes de saírem em viagem. Talvez seja normal para os italianos odiar os cunhados, pensou ele.
— O cara é tão ruim assim?
— Ah, é péssimo. — Lara abaixou o tom e se aproximou com as sobrancelhas franzidas. — Ele tem problemas com a... com a polizia, se é que você me entende.
— Entendo. — Damian não tinha muita certeza se entendia, mas preferiu assim. Will, o stalker oficial de Maria, deveria saber melhor daquela história. Ele virou as salsichas com a espátula e limpou as mãos no pano de prato. Querendo mudar de assunto, emendou: — Então, vocês estão aqui há doze anos?
Lara ficou rubra, piscando os olhos verdes mais do que o necessário. Cara, você não faz nada direito. De todos os assuntos que poderia escolher, tinha de ser justo esse? Nervoso com o silêncio de Lara e os passarinhos rondando a mesa, Damian colocou mais hambúrgueres e salsichas para grelhar. Sobre os chiados da carne, ele disse:
— Se for uma intromissão, eu...
— Não é. — Mas ela ficou séria, distante, e Damian soube que estava se intrometendo. Que merda. — Acho que você precisa saber com quem está viajando, certo?
Lara deixou uma risada nervosa escapar e Damian apertou o cabo da espátula.
— Se você não quiser me falar, tudo bem, Lara. Eu não quis ser...
— Tudo bem.
Ela sorriu como quem pede desculpas e cruzou os braços, apoiando-se na ponta da mesa e ficando de frente para Damian. Ele virou as salsichas na grelha, sem graça com o olhar perdido de Lara.
— Nossa mãe morreu quando éramos adolescentes. Aguentamos as contas por um tempo, arranjando empregos temporários, mas não demorou para que tudo desandasse e perdêssemos a casa. Na época eu tinha um namoradinho que trabalhava no porto, num navio de carga. Ele disse que poderia nos levar escondidas para a América, e eu aceitei.
Lara fez uma pausa e respirou fundo, segurando a medalhinha de prata entre o polegar e o indicador. Absorvido pela história, por pouco Damian não queimou os hambúrgueres.
— A verdade é que fora a roupa do corpo e alguns pertences, não tínhamos nada. Maria não queria ir. Disse que era loucura, que seríamos presas. — Ela sorriu cansada. — Bem, ela estava errada. Moramos aqui há doze anos e, graças a Deus, a polizia nunca bateu na nossa porta.
— E o namoradinho? — perguntou Damian, colocando os últimos hambúrgueres e salsichas num prato descartável antes que o silêncio ficasse desconfortável demais. — Ele é o famoso... Gérard?
Lara riu e relaxou os ombros.
— Não. Gérard e as meninas vieram um tempo depois. — Ela pegou o prato com os hambúrgueres de Damian, posicionando-o no centro da mesa. Por fim, ela sorriu, descansando as mãos na cintura. — Formamos uma boa dupla de cozinheiros.
Ele fechou a tampa da grelha e sorriu de volta, limpando as mãos no pano.
— Pode apostar que sim.
Os dois ficaram em silêncio, ouvindo o canto dos passarinhos e o som da brisa movimentar a toalha xadrez. Lara sorria para a mesa posta, e Damian não conseguiu afastar a certeza de que tudo, como ela sempre dizia, ficaria bem. Seja como ela e você vai ficar bem. Damian quis dar um soquinho no ombro de Lara, mas se conteve por receio de parecer ridículo ou saliente.
O momento passou quando Maria e as garotas vieram correndo, aos risos, pela porta dos fundos do chalé. Um sorriso gigante iluminou o rosto de Lara, que se abaixou na grama para abraçar as filhas.
— Onde vocês estavam? — perguntou ela à Maria, que se sentou no banco e puxou uma salsicha para o próprio prato. Sem resposta da irmã, Lara se virou para as meninas, que agarravam seu pescoço. — Vocês ficaram de olho na titia, não é mesmo?
— Claro, mamma — disseram as crianças ao mesmo tempo.
Giorgia e Alessia trocaram um sorriso travesso com Maria. Os ombros de Lara se retesaram e um olhar desconfiado surgir em seu rosto. Maria, que já comia a segunda salsicha, riu quando as sobrinhas se juntaram a ela na mesa, puxando os pratinhos descartáveis para mais perto.
— Relaxa, sorella. Estávamos falando com a Sra. Barnes sobre a piscina da pousada.
— Piscina?
— Sim. — Maria mastigou com vontade. — Enquanto você cuidava dos sanduíches em Nova York, eu cuidava da diversão. Escondi nossos biquínis velhos nas mochilas das meninas, esperando pegar um solzinho em Miami, mas a piscina da Sra. Barnes também serve, não é, bambine?
— Não estamos de férias, Maria. Não iremos à praia e muito menos à piscina — retrucou Lara, comprimindo os lábios. Os olhos verdes dela silenciarem qualquer súplica das filhas e da irmã antes de se voltarem para ele. — Sinto muito por isso, Damian.
— Na verdade — começou ele, coçando a cabeça. — Bem... elas têm razão.
Maria e as garotas, amuadas pela reprimenda de Lara, abriram um sorriso gigantesco. Lara franziu o cenho.
— O que você quer dizer com isso?
— Só poderemos ir embora amanhã de manhã. — Damian deu de ombros. — Um pouco de piscina e diversão não fariam mal hoje.
— Ouça o homem, Lara. — Maria apontou o garfo de plástico para ele. Lara semicerrou os olhos para a irmã mais nova e as filhas, que comiam sem erguer o rosto risonho do pratinho. Maria, por outro lado, sorriu com o canto dos lábios. — Eu até trouxe seu biquíni. Quem sabe você não consegue um namorado novo?
— Maria, eu sou casa...
— Não, você não é — retrucou Maria, mastigando com a cara amarrada.
— Não me casei na igreja, mas...
— E nem no cartório e nem em lugar nenhum. — Ela revirou os olhos castanhos. — Você não é casada, Lara. Não é só porque um cara qualquer enfiou uma porcaria de aliança no seu dedo que você é casada. Uma aliança de bronze ainda por cima. Che scherzo!
Lara corou, franzindo os lábios para o tom sarcástico da irmã.
Damian se sentou de frente para Maria, prestando mais atenção do que o necessário nas salsichas e hambúrgueres sobre a mesa, tentando fingir que não estava ali, ouvindo o que parecia uma conversa íntima demais. Pelo clima esquisito, o assunto parecia recorrente entre as duas. Sem graça, Damian sorriu para Giorgia e Alessia, que comiam sem se importar com o silêncio constrangido da mãe.
— Bem, isso não faz diferença — retrucou Lara, cruzando os braços. Com um olhar de relance, ele viu as bochechas dela corarem. — Não estou solteira. É isso o que importa.
— Faça como achar melhor, mas aposto que os caras adorariam ver você de biquíni. — Ela riu, dando de ombros. Damian pegou outra salsicha, mas não conseguiu puxá-la para o prato. Maria fincou o garfo na mesma salsicha, obrigando-o a erguer os olhos. Com uma expressão travessa ela perguntou: — Você não concorda, Damian?
As bochechas de Lara ficaram rubras, e ele não soube o que responder. Maria o encarava como um duende, seu sorriso malicioso crescendo do outro lado da mesa. O coração de Damian batia nas orelhas, perguntando-se como diabos a conversa havia caído em seu colo. Ele engoliu em seco e se virou para Lara, abrindo e fechando a boca antes de dizer:
— Bem, eu...
— Não responda, por favor. Maria não sabe a hora de parar com as brincadeiras. — Lara semicerrou os olhos para a irmã, que deu de ombros e continuou a comer. A porta dos fundos do chalé bateu, e a figura magricela de Amy surgiu. A expressão de Lara se abrandou imediatamente. — Sente-se, querida. Como está Will?
— Bem — respondeu a garota naquela voz sem emoção. — Está dormindo um pouco.
— Ah, ótimo — disse Lara, guiando a garota à mesa e se sentando. — É bom que ele descanse. Com fome?
— Faminta.
Damian pensou ter ouvido uma sombra de sorriso envolver as palavras da menina, mas não levantou a cabeça para ter certeza. Com o canto dos olhos, viu a figura esquelética da garota se acomodar ao seu lado. Não olhe para ela. Não faça movimentos bruscos. Afastando um pouco os braços, Damian se encolheu para longe dela.
O que mais o irritava — além daquela semelhança quase perfeita que a garota tinha com Diane — era a facilidade com a qual ele se tornava uma criança birrenta quando estava próximo a ela. Damian calculava cada palavra e tentava — só Deus sabia o quanto — não dizer algo errado. Precisava ir com cuidado, mas a teoria era infinitamente mais fácil do que a prática.
Era como se a garota desse um nó em sua língua cada vez que aparecia, silenciosa como um vulto. Enquanto Maria contava uma história engraçada entre um hambúrguer e outro, Damian foi atingido por um pensamento no mínimo doloroso. Entendeu, ao passo que todos riam das palavras de Maria, que nunca se acertaria com a garota se continuasse a tratá-la como Diane.
Ela não é Diane. Ela não é Diane. Mas era inútil repetir. Amy era uma mistura tão gritante dele com Diane que ele mal suportava olhar para a garota. Sem saber direito o que pensar, Damian suspirou para a salsicha que descansava em seu prato. Quando Maria começou outra história, Lara sorriu em sua direção e, cansado, ele sorriu de volta.
Damian observou Maria e as garotas rirem às gargalhadas do outro lado da mesa, a felicidade discreta de Lara ao ouvir o riso delas e, sem saída, ficou um pouco mais alegre. Até Amy, que não era dada a sorrisos faceiros, segurava-se para não deixar uma risada escapar.
Pelo menos alguém estava se divertindo naquela viagem. Seja como Lara, camarada. Seja como ela. Ele só precisava deixar as coisas rolarem e ignorar a garota até chegarem à Flórida. Relaxar e tentar se divertir até aquele suplício acabar. Era isso que importava, certo?
Secretamente, Damian agradeceu por Maria ser tão engraçada. Pelo menos se divertir não seria tão difícil assim.
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Damian abriu os olhos quando começava a escurecer lá fora. Meio abobalhado, demorou para assimilar que estava no quarto que dividia com Will no chalé de uma pousada no meio da Carolina do Norte. Sonolento, ergueu-se da cama com um gemido e massageou o pescoço. Da outra cama, o amigo roncou alto, estremecendo as paredes e janelas.
Se a ocasião fosse outra — se Will estivesse dormindo em seu sofá, babando em suas almofadas — Damian atiraria um travesseiro nele. Will sempre tivera aquela mania terrível, desde a faculdade, de roncar feito uma picape velha, sugando o ar com força e não deixando ninguém dormir.
Irritado, Damian pegou o celular na mesinha e saiu do quarto pela porta da frente, deixando Will e seus roncos em paz. Ele ligou o aparelho e caminhou até a frente do próprio chalé, lendo as notificações.
Uma ligação e uma mensagem de Jenna sobre as reuniões da agência. Quatro ligações e nenhuma mensagem de Irina. Damian se apoiou na parede de fora do próprio chalé. Ouvindo os roncos de Will, franziu o cenho. Nenhuma mensagem de Irina. Aquilo não era nada bom.
Damian saiu em direção ao estacionamento, e assim que chegou à máquina de refrigerantes na varanda do imenso chalé da Sra. Barnes, discou o número dela. Enquanto a chamada se completava, pensou no que dizer.
Irina atendeu no quarto toque sem emitir um som sequer. Nenhum alô enfurecido, nenhum cumprimento frio. Damian ficou em silêncio, ouvindo a respiração pesada da noiva do outro lado da linha.
— Então? — perguntou ela, e ele quase visualizou as sobrancelhas pálidas dela se erguendo. — Você não tem nada para me dizer? Você não atende minhas ligações, não me conta que está indo à Flórida, e quando liga não me diz absolutamente nada?
Ele trincou a mandíbula. Um casal de velhinhos saiu da recepção da Sra. Barnes usando pochetes, viseiras e segurando com alegria a chave de um dos chalés. Damian relaxou os ombros. A última conversa entre ele e Irina, nos fundos do Taco Alegre, não terminara bem. Ele não queria brigar outra vez. Seja como Lara, caralho. Numa voz cansada, perguntou:
— O que você quer que eu diga?
— Bem, você poderia começar me comunicando quando vai viajar para a outra ponta do país — disse ela. Damian suspirou e imaginou Irina comprimindo os lábios. — Isso definitivamente seria um bom começo. Ou, quem sabe, me dizer o motivo de não ter retornado minhas ligações.
— Porque eu não queria discutir mais uma vez.
Ela ficou em silêncio. Ele também.
— A culpa é sua, Damian — decretou ela naquela voz polonesa arrogante. — Não venha dar uma de Mahatma Gandhi para cima de mim. Estamos brigados por culpa sua, porque você nunca se empenhou na nossa relação.
As orelhas de Damian pegaram fogo. Irina sempre fazia aquilo. Ela sempre tentava convencê-lo de que a culpa era dele, de que ele era um merda, um namorado ruim e um noivo pior ainda.
Damian apertou o celular nas mãos, perguntando-se o que diabos havia acontecido com eles. A relação dos dois costumava ser tão boa, tão leve. Quando foi que terminaram afundados naquela pilha de bosta e acusações? Damian respirou fundo, percebendo que, desta vez, não conseguiria agir como Lara.
— Eu sempre fiz tudo por você, mas nada é bom o suficiente. Parei de usar as roupas que você odiava, não transei mais no sofá e fui a todos os bares idiotas com os seus amigos metidos. E o que você fez? Você pouco se fodeu para tudo.
— Você considera isso um empenho? — retrucou ela. — Eu melhorei você, Damian. Peguei um menino e transformei num homem. Você deveria me agradecer.
— É por isso que eu não quis atender suas ligações.
Ela soltou uma risada irônica e amarga. Típica dela.
— Por quê? Ouvir a verdade dói?
— Não. Porque Grace e Will estavam certos. Você é insuportável.
Eles usavam termos bem menos gentis para falar de Irina, mas Damian deixou assim. Não queria brigar ainda mais com ela porque sabia que Irina venceria todas as discussões. Ela estava com uma resposta na ponta da língua, mas Damian foi mais rápido.
— Estou cansado.
Ela ficou em silêncio. O mundo parou durante um segundo.
— Você está terminando comigo por telefone? — Irina riu novamente e Damian franziu os lábios. — Aí está a prova da sua imaturidade, Damian. Você não consegue nem dizer na minha cara que não quer mais se casar comigo. Que patético.
Damian endireitou as costas e respirou fundo.
— Conversaremos sobre isso quando eu voltar, Irina.
— Se você acha que eu...
— Quando eu voltar — frisou ele, alteando a voz. — Até mais.
E desligou. Tremendo, Damian apoiou as costas na parede do chalé da Sra. Barnes e respirou fundo. Irina conseguia tirá-lo do sério com uma facilidade impossível de ser compreendida. Era algo na voz dela, na maneira como proferia as palavras, com um misto de arrogância e inteligência, que o fazia querer bater com a cabeça nas paredes. Damian desconfiou que nem Lara conseguiria agir como Lara na presença de Irina.
Ele vasculhou os bolsos dos jeans puídos — que Irina tanto odiava — e enfiou na máquina de refrigerantes a nota de cinco que encontrou. Damian estava prestes a pressionar os botões, mas olhou para o lado, em direção ao chalé que dividia com Will.
A chalé de Lara, Maria e as garotas não ficava longe do deles, e Damian viu, sem querer, Amy saindo de mansinho pela porta da frente, a mochila cheia de bottons nas costas. Damian parou com a mão a meio caminho do botão da Coca-Cola. Ela olhou para os lados, como que para se certificar de que não era vista, ajeitou a mochila nas costas e se afastou.
Eu sabia que uma hora ou outra você faria algo errado, menina. Como uma fugitiva, Amy seguiu para os fundos do terreno da Pousada Barnes, onde ficavam os quatro maiores chalés, o restante dos estacionamentos e a piscina, sempre virando a cabeça para ambos os lados.
Para não ser notado, Damian pegou a latinha de Coca-Cola e se espremeu contra a máquina, espionando a garota. Amy sumiu entre os carros que estacionaram próximos à fonte e desceu a pequena colina.
Bingo, ele pensou, endireitando a postura. Ou ela iria à piscina — pouco provável — ou ao estacionamento. Fazer o quê? Damian sentiu um comichão na palma das mãos e não pensou duas vezes antes de seguir a garota. Drogas. Eu estava certo a porra do tempo do todo.
Ele não se orgulhava de estar agindo como um maldito James Bond, mas alguma coisa estava errada com aquela menina. Por que sair do chalé quando noite se aproximava, com a mochila nas costas e um olhar nervoso para todos os lados?
Aquilo cheirava a culpa. Puro e simples sentimento de culpa.
Ela parou no ponto mais afastado do estacionamento, onde havia três ou quatro lugares vazios, e tirou a mochila das costas. Damian se escondeu atrás de um carro ali perto e esperou, dando uma espiada por cima do capô de vez em quando. Amy remexia na mochila, procurando por algo como... como...
Como uma viciada! Damian semicerrou os olhos, erguendo um pouco a cabeça para enxergar melhor. Pelo visto, Amy ainda não havia encontrado o que tanto procurava.
— O que você está fazendo ajoelhado aí, garoto?
Damian se virou com os olhos arregalados. O casal de idosos que saíra do chalé da Sra. Barnes momentos atrás o observava com o cenho franzido. O senhor protegia a esposa com um dos braços como se Damian fosse pular em cima dela.
— Eu... — Damian coçou a cabeça e apertou a latinha de Coca-Cola. — Eu não sou... eu estava... só...
Sem graça, Damian deu um passo para o lado e os dois entraram no carro, não sem antes deixar escapar um Esse rapaz só pode ser maluco! em alto e bom som. Quando Damian se virou, percebeu o olhar gelado de Amy o encarando sem expressão. Que. Grande. Merda.
Então, o silêncio. Ela cruzou os braços e ergueu as sobrancelhas.
— Você estava me seguindo.
Não era uma pergunta, mas assim mesmo um milhão de desculpas passaram pela cabeça dele. O céu alaranjado de final de tarde começava a cair sobre os chalés da Pousada Barnes, envolvendo a paisagem das colinas como num cartão postal. Ainda de braços cruzados, Amy esperou pela resposta.
— É claro que não, garota. — Damian limpou as roupas e retesou ombros, tentando parecer ofendido. — Eu estava... procurando por... minhas... lentes de contato.
— Quantas vezes vou precisar dizer que não uso drogas?
Ele baixou o rosto, envergonhado pela atitude idiota. Uma brisa suave fez as árvores da área da piscina balançarem e Damian tentou não olhar muito para a garota. Com a noite chegando, a semelhança dela com Diane era ainda maior. Com a boca seca, ele disse:
— Eu só... só vi você saindo e pensei em... em agradecer pelo café no hospital.
— Você já agradeceu — retrucou ela, ainda de braços cruzados.
Damian pensou em responder, mas terminou por murmurar qualquer coisa sobre voltar ao chalé e se virou para ir embora. Que ideia idiota foi aquela de seguir a garota?
Damian deu dois passos, mas parou quando ela o chamou de volta.
— Cara. — Ela fez uma pausa. — Lá no hospital você me perguntou como ela era...
Não, por favor. Ele não queria se virar e ver Diane entre os carros, encarando-o com olhos azuis que pertenciam ao rosto que Damian via todos os dias no espelho. De súbito, sua respiração ficou pesada e ele ouviu risadas na área da piscina. Damian deu meia volta, mas não se aproximou.
Ele e Amy conversavam por silêncios pesados entre as frases, por distâncias preenchidas por palavras desajeitadas e entrecortadas. Damian nunca sabia o que dizer quando estava com ela. Era mais fácil acusá-la de satanista e maconheira do que aceitar que ela era sua filha com Diane.
Amy puxou o celular do bolso traseiro da calça skinny rasgada nos joelhos e, com um olhar sério, pediu que Damian se aproximasse. Inseguro, ele deixou a latinha vazia de Coca-Cola em cima do capô de uma picape e secou as mãos nas calças jeans antes de ir até ela.
As palmas de suas mãos suavam quando ficou próximo o suficiente da garota para ver que seu cabelo negro era tingido e que nenhum traço de raiz deixava à mostra a real cor de seus cabelos. Será que ela é loira como Diane?
Compenetrada, Amy mexia na tela do celular. A ponta de seus dedos ágeis voou com rapidez pelos ícones, deixando Damian quase tonto.
— Aqui — disse ela, enfiando o aparelho em suas mãos. — Só dar play.
O play o encarou e o corpo inteiro de Damian se retesou. Não, por favor. Trêmulo, ele se apoiou no capô de um carro. Ao tocar a tela, foi transportado direto para a Escócia.
O vídeo era uma daquelas gravações caseiras que todos fazem pelo menos uma vez na vida, com a câmera balançando feito o diabo e focando diversos objetos sem importância. Uma janela aberta aparecia, e um final de tarde alaranjado preenchia a tela.
"Eis aqui," ele ouviu a voz da garota dizer na gravação, fazendo um giro abrupto e focando a bancada de uma cozinha, "a grande Miss Suflê, Diane Thomas! Uma salva de palmas, por favor!"
Ela usava um avental azul-escuro com uma frase MAMÃE SABE TUDO em letras laranjas no peito e um lenço florido na cabeça. Diane sorriu com o canto dos lábios e fez uma mesura exagerada, arrancando risadas de Amy. Uma mecha de cabelo loiro caiu em seu rosto e ela gargalhou, batendo os ovos manualmente.
"Será que hoje a corajosa Miss Suflê vencerá o temível Sr. Forno?" continuou Amy, rindo. "Do que ela será capaz para não jantarmos na Marlene pela terceira vez nessa semana?" Diane colocou as mãos na cintura e levantou uma sobrancelha, exatamente como fazia há quinze anos quando Damian dizia alguma piada que a desagradava. Amy, mesmo não aparecendo, não parava de rir. Diane semicerrou os olhos, mas continuou sorrindo.
"Ou será que desta vez a Pirralha ajudará a Miss Suflê?" Diane retrucou, apontando o fuê sujo para a câmera. As duas riram e ela voltou a bater os ovos. "Juro que agora acertei o ponto dessa porcaria. Hell's Kitchen, aí vou eu."
"Gordon Ramsay que se cuide," disse Amy.
"Hora da verdade, senhoras e senhoras!" Diane enfiou a luva e abriu o forno. Amy começou a rir. A câmera tremeu antes de mostrar três suflês de chocolate completamente destruídos e murchos. Diane olhou para cima como quem pede clemência e ergueu as mãos. "Quer saber? Dane-se. Eu sou uma mãe moderna e hoje nós vamos jantar sorvete."
Então a câmera focou Diane tentando pôr ordem naquele caos culinário que havia tomado conta da bancada da cozinha. Ela mostrou a língua para a câmera e as duas riram.
"E a Miss Suflê perde a batalha mais uma vez," narrou Amy numa voz entristecida. Diane jogou o fuê na pia e semicerrou os olhos castanhos para ela. "Quem disse que perdi? Ainda tenho meu superpoder," gabou-se ela, levantando apenas uma sobrancelha, como as vilãs sedutoras dos filmes.
"Já estou velha para o ataque de cócegas, mãe," disse Amy.
Diane sorriu como uma criança travessa. "Você nunca vai ficar velha o bastante para o ataque de cócegas, Pirralha!"
A câmera tremeu quando Diane avançou, rindo. Mais risadas. Então, fim da gravação.
Damian ficou com o celular nas mãos, encarando o próprio reflexo na tela escura antes de repetir o vídeo.
Ela era a mesma Diane de quinze anos atrás; a voz, os olhos castanhos, os cabelos loiros que nunca ficavam no lugar, os lenços coloridos, a falta de aptidão culinária, o humor. Ela não havia mudado nada. Estava, se é que fosse possível, mais incrível e mais linda do que nunca.
Por que você não foi atrás dela, seu imbecil? Damian repetiu o vídeo pela segunda vez. Ver Diane era diferente de ouvir falar sobre Diane. A presença dela, ainda que feita de pixels, trazia lembranças esquisitas a ele.
Como aquela vez em que os dois ficaram presos no topo da roda-gigante e Damian quase teve um ataque cardíaco porque ela não parava de se balançar e rir de seu desespero. Ou aquele final de semana na casa de praia de uma amiga dela, quando Diane se esgueirou para o quarto dele no meio da noite e sussurrou Ei, podemos transar ou você pretende me pedir em casamento antes, campeão? antes de transarem pela primeira vez.
Por que eu não pedi, porra? Damian repetiu o vídeo. Depois daquele jejum de quinze anos ele queria ouvir eternamente a voz de Diane, de novo e mais uma vez, mesmo que fosse falando sobre suflês que não deram certo. Damian queria guardar cada detalhe da voz e da risada dela, cada careta e sorriso. Ele queria que ela estivesse ali.
Damian olhou para o céu noturno salpicado de estrelas. Com medo de chorar na frente da garota, trincou a mandíbula. O silêncio no estacionamento só era quebrado por alguns grilos vagabundos e pela brisa que balançava as moitas dos canteiros bem-cuidados. Damian olhou para Amy, que tinha os braços cruzados e a cabeça baixa.
— Eu... você — começou ele, a vontade de chorar murchando suas palavras. — Você pode... me enviar...
Amy assentiu, os lábios franzidos. Ela recebeu de volta o celular e, depois de Damian quase dizer seu número todo errado e os dedinhos velozes da garota tocarem os ícones certos, ela iniciou o envio do vídeo.
Esperaram em silêncio até que a internet finalmente encontrasse forças para completar o envio. Um ping metálico veio do celular de Damian, confirmando o recebimento do arquivo. Ele encarou o play, querendo se esconder e assistir ao maldito vídeo um milhão de vezes, mas sentiu que deveria preencher aquele silêncio com alguma coisa.
— Obrigado — disse ele numa voz que não reconheceu. — Ela sempre foi incrível.
Ele não esperou por uma resposta. Nervoso, Damian pegou a latinha de Coca-Cola de cima da picape, abaixou a cabeça e saiu pisando firme pelo estacionamento, secando as lágrimas com as costas das mãos.
Chorando feito criança, Damian preferia mil vezes ter encontrado drogas com Amy.
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