11. as luzes néon do preconceito

LARA

A viagem pela Carolina do Norte, o Estado Do Calcanhar De Piche — há muito Lara havia desistido de tentar entender todos aqueles apelidos que os americanos davam aos estados — estava tranquila. A tarde dava lugar a um céu de azul escuro, carregado com nuvens cinzentas e Lara queria, mais do que tudo, tomar um banho e esticar as pernas. O silêncio no carro era estranho e, pelo retrovisor, ela espiou as filhas cochicharem no banco de trás.

Giorgia e Alessia faziam planos — em italiano, que orgulho — para o destino da cartela de tatuagens das Princesas que Will encontrara debaixo do banco. Ela sorriu para as meninas e se ajeitou melhor no banco do carona. O rádio estava desligado, e fora o som dos cochichos e risadinhas, ouvia-se apenas o murmúrio do ar-condicionado e dos grunhidos de Damian.

Intrigada, Lara deu uma boa olhada no vizinho. Ele olhava de um lado para outro da estrada e coçava a barba por fazer. Sua camiseta cinzenta estava amarrotada, e os olhos injetados lhe davam a aparência de um daqueles mendigos malucos que anunciam que o fim está próximo.

— A maldita pousada de Will não chega nunca — reclamou ele, dividindo a atenção entre o GPS e a estrada que escurecia. — Eu só preciso chegar. Eu só preciso chegar.

Lara riu e se virou para a janela.

— Qual é a graça? — perguntou ele.

— Você sempre repete as coisas quando fica nervoso — respondeu ela. As sobrancelhas de Damian se ergueram. Ela deu de ombros. — Quando surtou antes do acidente, você repetia a mesma frase como se fosse uma velha...

— Certo, Lara, já entendi. Muito obrigado — Um pequeno sorriso atacou o rosto de Damian, que voltou à procurar pela pensão. Virando a cabeça um pouco para trás, elevou o tom de voz para falar com os outros: — Se alguém avistar a Pensão do Rob Alegre, já sabem o que fazer.

— Por que tudo na América tem de ser alegre? — A voz rouca e monótona de Amy veio lá de trás. Lara sorriu. — Taco Alegre, Rob Alegre. Que país carente e hipócrita.

— E você está aqui há três dias. — Maria riu. — Imagine para quem está há mais de dez anos.

Damian franziu o cenho, virando o rosto para Lara.

— Vocês estão aqui há tanto tempo assim?

— Doze anos — respondeu ela, na esperança de que o assunto fosse liquidado.

— Doze anos nessa porcaria de país para viver com menos de quinhentos paus por mês — reclamou Maria. Lara desviou os olhos ao sentir que Damian prestava mais atenção em suas bochechas vermelhas do que na estrada. — Sonho americano é o meu...

— Se aquela coisa cheia de luzes néon cor-de-rosa for a Pensão do Rob Alegre — interrompeu Amy —, então acho que chegamos.

Na noite que caía, a Pensão do Rob Alegre se parecia mais com um clube barato de strip-tease do que uma parada honrada para viajantes. Uma placa de néon cor-de-rosa com a caricatura assustadora de um homem de barba sorridente indicava a entrada para a pequena pensão. Feito uma criança que recebe um saco de doces, Damian estacionou debaixo de uma árvore e desceu. Apoiando-se na janela, ele disse:

— Vou conseguir os quartos! Já volto.

Antes que Lara pudesse intervir, ele saltitou pelo estacionamento, sumindo atrás das portas da pensão. Ela virou o rosto para frente, pensando. Se não conseguia pagar por um quarto antes, quando tinha dois empregos, agora que havia perdido o bico de garçonete no pub do Sr. Lee, seria impossível. E Maria não faz nem ideia. Se a irmã achava ruim viver com menos de quinhentos dólares por mês, ela com certeza não gostaria de saber que o dinheiro diminuiria ainda mais. Preciso encontrar outro bico e contar para ela. E rápido.

Lara ainda tinha cinquenta pratas na bolsinha, sua última gorjeta antes de ser demitida, mas definira, antes de começarem a viagem, que seria apenas para emergências. Ela ainda trabalhava como caixa no mercado do Sr. Mills, mas o dinheiro das gorjetas era o que a fazia respirar com tranquilidade no final do mês. Lara não podia pagar por aquela pensão e decidiu que, por motivos de força maior, dormiriam as quatro no carro.

— Cara, eu preciso muito de um banho. — Maria bocejou, fazendo cócegas nas garotas. — E vocês suas fedorentinhas? Quem precisa de um banho também?

Giorgia e Alessia soltaram risadinhas e desviaram da tia. Lara não sabia como dizer a elas que não tinham dinheiro para pagar um quarto e que Não, Maria, não podemos deixar Damian pagar para nós. Dever dinheiro a ele seria vergonhoso, principalmente porque ela não poderia pagar tão cedo. Interrompendo seus pensamentos, o rosto vermelho e mal barbeado do vizinho apareceu através da janela do motorista. Com os braços apoiados no teto do carro, Damian disse:

— Acabaram os quartos.

Um alívio do tamanho do mundo tomou o peito de Lara.

— Como assim? — inquiriu Maria naquele tom de Você só pode estar doido, cara. Ela olhou ao redor, franzindo o cenho. — Não tem uma porcaria de carro nesse estacionamento!

— Disseram que estão todos ocupados, e os dois que sobraram são deles — respondeu ele.

— Deles?! Que raio de gente abre uma pensão e não aluga os quartos?!

— Eles moram aqui, sei lá — retrucou Damian, a cabeça caindo para frente. — E só vamos encontrar outra pensão se entrarmos em alguma cidadezinha. Nada na beira da estrada.

Um silêncio pesado tomou o carro. Todos estavam tão cansados que Lara se sentia mal por estar aliviada pela falta de quartos. Quando o silêncio cresceu, ela sugeriu:

— Bem, nós podemos dormir no car...

— Ah, não! — interrompeu Maria. — Minhas costas estão moídas e meu pescoço precisa de um travesseiro, sorella. Eu vou resolver, relaxa.

Maria saiu do carro e Damian finalmente entrou, balançando a cabeça.

— Ela não vai conseguir — disse ele, apoiando as mãos no volante. — Na boa, eles são uma família de caipiras. Duvido que mudem de ideia. Vocês acreditam que todos se chamam Robert? Juro por Deus. Até a garotinha que estava brincando de bonecas se chama Robreena, ou algo assim.

— Robert é um nome bastante comum na Carolina do Norte e nos estados sulistas de forma geral — disse Will. Quando ninguém comentou, ele continuou: — O General Robert Lee foi o principal herói dos Confederados na Guerra Civil.

— É por isso que odeio o Sul — resmungou Damian. — Ficam idolatrando essa guerra idiota e agindo como se tivessem o rei na barriga. Não temos quartos, camarada — imitou ele, forçando um sotaque engraçado. — Caipiras idiotas.

— Você sabe que a tendência é piorar — disse Will, ajeitando os óculos. Lara, que não entendia uma porcaria da Guerra Civil Americana, ficou em silêncio. Como um professor na sala de aula, Will disse: — Quanto mais para o sul, pior é a obsessão com a Confederação.

— Eu sei — retrucou o vizinho, abraçando o volante. — Sinceramente, eu só queria que eles tivessem um quarto.

— Podemos desviar o caminho e procurar por outro lugar — sugeriu Will.

— Ou podemos dormir no carro. — Lara sorriu para os companheiros de viagem, nada entusiasmados com a ideia. — Não é uma ideia tão ruim assim, é?

— Não quero ser rude, Lara — começou Amy com cuidado —, mas estou com Maria nessa. Mais uma noite nesse carro vai ser a morte.

— Ora, querida, não seja pessimista! — Ela buscou ajuda em Will e Damian, que não exibiram reação. Apelou para Giorgia e Alessia. — Podemos... podemos nos divertir, não é, belle?

— Sim, mamma! — Giorgia se apoiou no banco da frente e Lara se contorceu para dar um beijo na bochecha da filha. — E o Sr. Greene pode brincar com a gente!

— E contar histórias sobre o General Robert e a... a Condeferação! — disse Alessia, apertando o ursinho contra o peito.

— Viram? — Lara riu. — Podemos nos divertir!

O silêncio dizia o contrário. Os carros passaram zunindo pela estrada e um gato miou ao longe.

— Pelo menos você tentou — disse Damian, dando dois tapinhas afetuosos em seu joelho esquerdo. — Espero que Maria tenha conseguido um quarto.

Lara afundou no banco. Por que vocês sempre têm de dificultar as coisas?

Maria não demorou a voltar com um cara absurdamente imenso e esquisito, uma cópia do Arnold Schwarzenegger de 1970. Ela sorria feito criança e, pela experiência de Lara com a irmã mais nova, aquilo não poderia significar boa coisa. Maria se apoiou na janela de Damian e ergueu os polegares.

— Consegui dois quartos!

O cara estaqueou atrás dela, visivelmente abobalhado naquela camiseta sem mangas e nos shorts de corrida apertados demais. Lara percebeu que ele se parecia com o guarda-roupa do filme A Bela e a Fera, o preferido de Alessia.

— Você poderia nos ajudar a descarregar o carro, Rob? — perguntou Maria ao rapaz, numa voz afetada que não lhe pertencia. Correndo os dedos pelos braços nus dele, ela completou: — Você é tão forte!

Will enrijeceu. Rob sorriu e seus dentes separados ficaram tão evidentes quanto um raio de sol num dia temporal. Enquanto o jovem passava as sacolas, mochilas e malas para fora da minivan e os outros desciam, Lara puxou Damian para longe da minivan. No estacionamento vazio, encarando o vizinho, ela engoliu em seco.

— Escute, eu... — Lara coçou a cabeça e encarou os cadarços, o céu escuro e Rob levantando as malas e mochilas como um super-herói de desenho animado, exceto Damian. Por que tudo tinha de ser tão difícil? — Você está fazendo muito por nós, e eu não quero que pense que vamos abusar, mas...

— Do que você está falando, Lara?

Certo, agora é a hora. Ela respirou fundo e disse de um fôlego só, antes que perdesse a coragem:

— Não temos dinheiro para pagar uma noite nessa pensão. As coisas estão difíceis e nós... nós preferimos dormir no carro, se você não se importar.

Ela respirou fundo quando terminou, sentindo o ar pinicar dentro de seus pulmões. Pronto, está feito. Damian olhava para ela com as sobrancelhas franzidas, como se não soubesse muito bem o que dizer. O rosto quadrado e mal barbeado dele sustentava uma expressão confusa e Lara só queria que aquilo acabasse de uma vez por todas.

— Bem, é lógico que me importo — disse ele. Lara ia retrucar, mas Damian ergueu uma das mãos. Corada e com as mãos na cintura, ela se calou. — Dormir no carro é uma droga, e agora que conseguimos o quarto não é necessário continuar com esse orgulho besta.

— Damian, você não está entendendo a...

— Estou sim. Pago essa noite como forma de agradecimento, se você aceitar.

— Do que você está falando? — Ela franziu o cenho.

— Por você ter limpado meu vômito e... e ter dado um lugar para a garota dormir. — Ele suspirou e coçou a barba. — Você já fez algumas coisas por mim, então acho justo retribuir.

— Mas não tenho como pagar — disse ela. O vizinho deu de ombros. — É sério, Damian. Você não pode ficar pagando coisas para nós. Isso é... isso é errado.

— Se você faz tanta questão, pensaremos em algo. — Damian juntou as mãos como se fosse rezar e olhou para ela com aquela expressão de cachorro abandonado. — Agora, por favor, vamos comer e descansar, sim?

Lara considerou, ainda com as mãos na cintura. Ela detestava dever. Por não ter dinheiro sobrando, ela contabilizava cada gasto num caderninho de capa vermelha. Qualquer atividade que saía do orçamento dela e de Maria — e que fosse supérfula — era cortada sem misericórdia. Dever para seu vizinho, sem saber quando poderia pagar, seria terrível. Principalmente por morar de aluguel no apartamento que era da irmã dele. Você vai dar um jeito. Por fim, Lara cedeu com um suspiro resignado.

— Mas eu pagarei de algum jeito, si?

— Como você quiser, Lara.

Ele sorriu e se juntou ao resto do grupo antes que ela pudesse mudar de ideia.

---

Depois de saber que Damian tinha uma família esperando por ele no carro — e que não era um maluco querendo roubar a pensão —, Papa Rob, o dono do lugar e chefe da família Baker, chamara-os para jantar.

O convite foi repassado por Rob Filho, o jovem armário que ajudara a descarregar as malas. Ele enfiou a cabeça sebosa para dentro da porta do quarto e disse as exatas palavras que Maria desejava ouvir:

— Mamãe e papai fizeram carne assada para vocês — convidou Rob, seus olhos pregados no pijama curto de Maria, que sorriu de volta. — Com fome?

— Mortas! — Maria deu um gritinho de alegria. Da cama, ajeitando as roupas, Lara franziu o nariz. — Só precisamos de um tempinho para trocarmos de roupa e logo estaremos com vocês!

Assim que o jovem fechou a porta, o sorriso de Maria se desfez.

— Palhaço — disse ela. — Os homens são muito idiotas.

— Por que, titia? — perguntou Giorgia, esfregando os olhos em cima da cama.

Lara trocou um olhar duro com Maria, que pigarreou.

— Porque... porque, bem, outra hora a titia conta, ok? Vamos comer!

Maria trocou de roupa, Lara deu um banho rápido nas meninas e as quatro desceram para se reunir à família Baker. Segurando Giorgia em uma mão e Alessia em outra, Lara percebeu que Damian — barbeado —, Amy e Will já estavam sentados com a família na longa mesa de madeira da sala de jantar.

Tudo ali tinha cheiro de lustra-móveis e flores do campo. Os pratos decorativos nas paredes mostravam pintados em sua porcelana branca homens de farda à cavalo, a bandeira confederada e frases como SUPREMACIA SULISTA e FORTE SUMTER – 1861. Maria, sem prestar atenção em nada disso, sentou-se ao lado de Rob Filho, trocando sorrisinhos com o rapaz.

Lara achava fascinante como a irmã mais nova conseguia levar qualquer um na conversa. Quando queria ou precisava de algo, Maria recorria a uma mentirinha ali, uma jogada de cabelo eficaz aqui ou a um beicinho acolá. Rob Filho, que possuía muito mais músculos do que neurônios, decerto fora uma presa fácil para Maria, acostumada a lidar com gente muito pior em Nova York. Não quero nem imaginar o que você prometeu a esse gorila movido a batata doce para conseguir os quartos.

Lara ia se acomodar com as filhas no fim da longa mesa, mas foi interceptada por Papa Rob.

— Ora, menina! — disse ele num vozeirão firme e de sotaque engraçado. — Guardei um lugar para você e a sua família aqui do meu lado esquerdo. Venha!

Sem demoras, Lara, Alessia e Giorgia ocuparam os lugares indicados, ficando de frente para Damian, Will e Amy. Incomodada por aquela voz de comando, Lara deu uma boa olhada em Papa Rob.

Ele devia estar na casa dos sessenta anos, tinha um bigode grisalho bem aparado, sobrancelhas espessas e cabelos presos num rabo de cavalo curto, próximo ao pescoço. Papa Rob usava uma corrente de ouro no pescoço e dois anéis gigantes nos dedos de juntas grossas, além de uma camisa negra com detalhes em dourado. Ele cheirava a colônia barata e sabonete de flores, o que não era uma combinação muito agradável.

— Estava aqui conversando com seu homem, Sra. Harris, sobre os motivos de termos mentido sobre os quartos — disse ele num tom envergonhado, mas ainda solene, para Lara. — Sabe como a violência está consumindo esse país, não é? Um homem sozinho aparece pedindo abrigo, no início da noite... precisamos abrir os olhos. Tenho filhas para cuidar, veja bem. Se sua irmã não dissesse que estavam todos em família, teríamos deixado vocês seguir viagem por um medo besta! Nesta época do ano ficamos às moscas e os assaltantes vêm aos bandos. Como sempre digo às garotas: segurança é tudo!

Ele riu e deu dois tapinhas sabichões no dorso da mão de Lara, que tentou sorrir e ergueu as sobrancelhas para Damian. Sra. Harris? Seu homem? Que diabo de conversa era aquela? O vizinho escondeu o rosto no copo de suco e deu de ombros, olhando de relance para a outra ponta da mesa.

Maria. Lara tentou repreender a irmã com um olhar azedo, mas ela estava envolvida numa conversa animada com Rob Filho. Eu vou acabar com você, Maria.

— As filhas de vocês são muito bonitas — Papa Rob continuou, tomando um grande gole de limonada. — Como Robreena e Robriana, não acham?

Robreena deveria ter, no máximo, doze anos, e além de um vestidinho rosado, usava marias-chiquinhas que prendiam firmemente seus cabelos castanhos. Robriana, por outro lado, se parecia com uma daquelas modelos que se vestiam como caipiras sexy e apareciam em calendários de parede de borracharia. E, como a maioria das garotas na faixa dos dezoito anos, deixava os seios à mostra e sorria para Damian e Will com uma malícia angelical.

— O senhor é muito... gentil — disse Lara. Robriana comprimiu os seios na blusa decotada, fazendo Will erguer as sobrancelhas e esconder o rosto corado no copo. — Suas filhas são muito... bonitas.

— Puxaram à mãe, podem ter certeza disso! — Papa Rob latiu uma risada, e Lara vislumbrou um dente de ouro em sua boca. Virando-se para Damian, ele perguntou: — Qual a idade das suas crianças, filho?

Os olhos azuis de Damian, que não fazia ideia da idade de Alessia e Giorgia, pregaram-se aos de Lara. As garotas, entretidas por uma história que Maria contava a Rob Filho e Amy, não viraram os rostinhos para a conversa séria e sem graça que se passava na ponta da mesa, e ela agradeceu por não ter de responder nenhuma pergunta constrangedora de Giorgia. O cenho de Papa Rob se franziu, e antes que ele pudesse perguntar outra vez, Lara disse:

— Elas têm sete anos.

— Sete anos! — exclamou o velho, rindo para Damian numa espécie de cumplicidade masculina. Sem graça, Lara se mexeu na cadeira. — Vocês parecem jovens para ter duas filhas. Você não perde tempo, hein, rapaz?

O rubor subiu pelo pescoço de Damian, que deu uma risadinha amarela quando a mão de Papa Rob desceu sobre seu ombro com força, dando tapinhas repetitivos que sacudiram o vizinho. Como se fosse lhe contar um segredo, o velho se inclinou na direção dele, mas sua voz potente, mesmo sussurrada, foi ouvida por toda a mesa.

— Estou casado há 40 anos, filho, e digo que a crise dos sete chega para todo mundo! — Ele riu, batendo nos ombros de Damian com a mão peluda. — O importante é seguir em frente e não se abalar com as briguinhas bestas que podem surgir.

— Obrigado pelo conselho, Papa Rob — respondeu o vizinho, desviando discretamente o ombro quando Papa Rob ergueu a mão outra vez —, mas eu e Lara nos damos muito... muito bem. Quando nos desentendemos, resolvemos tudo na base da conversa, não é... querida?

Sem graça, Lara sorriu e assentiu. Eu vou matar Maria. Damian sorriu de volta, tão desconfortável quanto ela. Então, para a surpresa de Lara, Papa Rob gargalhou, seu dente de ouro brilhando na boca. Piscando para Damian, ele sussurrou alto o suficiente para que Lara ouvisse:

— Sei bem que tipo de conversa vocês têm, filho! Foi usando esse mesmo tipo de conversa que eu e Mama Rob fizemos Robreena!

Lara arregalou os olhos para Damian, cujas orelhas estavam vermelhas feito um pimentão. O velho ainda ria na beira da mesa, secando uma lágrima com o guardanapo. Lara nunca ficou tão grata pelo resto da mesa estar envolvido pela história de Maria.

— Bem, Mama Rob já está vindo com o assado. — Papa Rob, ainda rindo, encheu mais uma vez o próprio copo com limonada. — Uma especialidade dela. Ei, mas e você? — perguntou ele, apoiando o cotovelo na mesa e chamando a atenção de Will, que ajeitou os óculos. — Qual é o seu papel nesta família, rapaz?

— Eu sou... eu... — respondeu Will, seus olhos castanhos desesperados pedindo ajuda.

— Will é meu irmão — disse Damian. Papa Rob franziu as sobrancelhas. Lara apertou o cabo do garfo. Percebendo que a mentira era difícil de ser engolida pela falta de semelhança entre eles, Damian arrematou da pior maneira possível: — Will é meu irmão... irlandês... adotado.

O rosto de Will ficou vermelho. Papa Rob coçou o queixo, avaliando o ruivo magricela e corado que ajeitava os óculos e piscava demais para seu gosto. Lara sorriu na tentativa de encorajar Will, mas ele estava muito apavorado para reagir. Papa Rob não sorria mais quando perguntou:

— Ele é um... imigrante, pelo o que entendi?

O mero som da palavra foi o suficiente para calar todas as vozes da mesa. O estômago de Lara se revirou ao perceber que Maria, antes tão falante e afetuosa com Rob Filho, olhava para a ponta da mesa com atenção. Amy, antes prestando atenção nas histórias de Maria, tinha o mesmo olhar furioso para o anfitrião. Mantenham a calma, pensou Lara, ajeitando os talheres ao lado do próprio prato com mãos trêmulas.

— Não. Will é... americano — disse Damian, antes que Will acabasse com a mentira. — Os avós dele eram irlandeses, se estabeleceram em Atlanta e... e o resto é história.

— Não quero ser rude, rapaz — disse Papa Rob, dando de ombros —, mas os imigrantes devem ficar no país deles. Não me venham com essa conversinha mole de que não há oportunidades. O que essa gente quer é vida boa e pouco trabalho! Não me admira que todos os dias milhares deles cruzem as fronteiras para sugar nosso dinheiro.

Amy fechou a cara. Maria segurava o cabo da faca com mais força do que o necessário. Damian bebeu um gole de suco e descansou o copo na mesa. Lara percebeu, com o cantos dos olhos, que Rob Filho ainda falava, porém não conseguia mais atrair a atenção de Maria, que mirava Papa Rob com fúria.

Lara ouvira tantas vezes aquelas mesmas opiniões que, depois de um tempo, elas já não a atingiam mais. Aos olhos dos Estados Unidos, os imigrantes sempre seriam uma espécie de ser inferior, alguém indesejado que era, ao mesmo tempo, preguiçoso e ladrão de emprego. Dizer que não doía ouvir aquele tipo de coisa seria uma mentira, mas o tempo, acreditava ela, criava um casco de proteção em todo ser humano que deixava seu país para viver em outro.

— Existem muitos casos, Papa Rob — disse Damian, rompendo o silêncio tenso que se estendeu pela mesa. Olhando para o velho, ele sorriu. — Lara, por exemplo, é um deles.

Ela sentiu todos os olhares da mesa em si. Giorgia e Alessia a encaravam com as sobrancelhas unidas, e Lara sorriu para as crianças apesar de suas mãos tremerem debaixo da mesa. Papa Rob enrugou o nariz largo para ela, assim como todo o resto da família Baker. Damian, não faça isso.

— Quando conheci Lara em... em... — Damian a encarou como quem diz me ajude nessa. — Onde foi mesmo, querida?

— Roma — respondeu ela.

— Em Roma, é claro. — Ele pigarreou. — Pedi a mão dela em... em casamento e realizamos a cerimônia lá mesmo, mas nosso país não queria deixá-la entrar. Foram meses até as coisas se acertarem.

— Ora, mas não tenho nada contra casais que fazem tudo dentro da lei, filho, ou mesmo contra os avós honrados que vêm para fazer o país crescer. — O bigode do velho tremelicou. — Falo daqueles que entram no país no meio da noite, de navio ou pelo deserto, como ratazanas à procura de lixo! Imigrantes que roubam nossos empregos!

Papa Rob deu um soco na mesa. Os copos balançaram, e um silêncio profundo tomou conta da sala de jantar. Maria apertou o cabo da faca, ignorando a conversa de Rob Filho sobre exercícios e os próprios músculos. Amy fulminava Papa Rob com um olhar repleto de desprezo enquanto Robreena e Robriana, aos cochichos, a encaravam como se a garota gótica sentada não muito longe delas fosse um extraterrestre. Alessia puxou a camiseta de Lara.

— Eu tenho uma pergunta, mamma — sussurrou a menina.

— Agora não, piccola — Lara sussurrou de volta, beijando o topo da cabeça da filha. — Depois a mamma fala com você, si?

— Imigrantes imundos que vêm roubar nossos empregos e nosso dinheiro! Que ganham salários absurdos enquanto morremos de fome, filho!

Papa Rob tinha a cara vermelha e bigode tremelicava. Maria bateu com o cabo da faca na mesa, erguendo-se da cadeira no exato momento em que Mama Rob, gorducha e sorridente, entrou na sala com uma imensa travessa de rosbife com batatas nas mãozinhas rechonchudas.

— Mas deixemos os imigrantes ilegais e preguiçosos para lá. — Papa Rob riu, ignorando Maria e enfiando o guardanapo de pano na gola da camisa. — Vamos comer, parceiros!

Lara suspirou aliviada e Damian enfiou o rosto no próprio copo.

Aquela noite seria longa demais para seu gosto.

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