09. fora de rota

MARIA

Maria não tinha medo de chuva.

Quando ela e Lara chegaram aos Estados Unidos, há exatos doze anos, caía um temporal de proporções absurdas naquela noite. Descendo do navio imundo no meio da madrugada com nada além de roupas amarrotadas dentro dala e o medo de serem presas dentro do coração, as duas se viram num porto escuro, num país estranho e sem entender uma palavra da língua inglesa. Sem ter para onde ir, as duas ficaram paradas na chuva do porto, sentindo os pingos gelados de água descerem pelo corpo e pelas malas.

Maria não tinha medo de chuva, mas estava com medo do temporal que enfrentavam agora.

A minivan cortava a estrada em alta velocidade e os pingos grossos de chuva se chocavam contra a lataria com um ruído ensurdecedor. Aquele temporal era assustador principalmente porque não havia um só carro para ajudá-los se alguma merda acontecesse. A rodovia estava tão vazia quanto aquele maldito porto em que ela e Lara atracaram há tantos anos.

Damian estava quase debruçado no volante, furioso pela mudança no clima. As meninas brincavam de Barbie ao seu lado, Amy olhava para fora e Will roncava, a cabeça ruiva jogada para trás. Maria riu e pensou em atirar um amendoim na boca dele, mas para sua tristeza não havia nada em seu alcance além de maçãs e sanduíches de presunto.

No assento do carona, Lara olhou para Damian com o rosto aflito, esfregando a medalhinha entre os dedos. Com os pés apoiados na porta, ela se ajeitou melhor no banco de couro.

— Bem, nós poderíamos parar — sugeriu Lara. O pescoço de Damian se retesou e um silêncio repentino dominou o carro. Nem as garotas sussurravam mais. — Está chovendo tanto que...

— Não está — respondeu ele, tão rápido que Lara não terminou de falar. — É só uma chuva de verão. Só uma chuva de verão. Só uma chuva de verão...

Ele repetiu aquilo feito um mantra, de novo, de novo e de novo. Os pára-brisas iam de lá para cá numa velocidade alucinante e mesmo assim não davam conta do volume de água. Passaram por postes de luz amarelada que lançaram vultos sombrios dentro do carro conforme avançaram. Incomodada com aquele clima, Maria ignorou o celular que vibrava no bolso traseiro do jeans.

Poderia parecer bobagem, mas ela sempre sentia quando alguma merda estava para acontecer. Desde que moravam na Itália, Maria sempre sabia quando algo daria errado. Seu faro para detectar merdas nunca falhava. A única vez em que errou foi quando estavam naquele navio imundo, entrando nos Estados Unidos no meio da noite.

Naquela madrugada, Maria sentira o cheiro da Imigração, dos policiais esperando por elas no porto e do gosto salgado das lágrimas de Lara na deportação.

Graças a Deus, estava errada. Naquela noite, só havia o gosto da chuva.

Lara tinha a mania de dizer que ela era sortuda. A irmã mais velha anunciava aos quatro ventos que Maria encontrava dinheiro perdido entre as almofadas do sofá, que recebia por engano todo mês vales de desconto da Casa do Waffle, sua revista preferida, raspadinhas premiadas e que ganhava promoções e sorteios do jornal porque era sortuda, mas não era sorte.

Alguns chamavam de intuição, outros de sexto sentido, mas Maria acreditava que era simplesmente um sentimento. E a mesma porra de sentimento que se grudara no fundo de sua garganta no navio estava de volta dentro daquele carro, no meio de um temporal na rodovia deserta.

Maria tentou se livrar da sensação fingindo ser uma Barbie veterinária, mas não adiantou muito. Quando o sentimento se instalava, era difícil se livrar dele. Ela ouviu Lara suspirar no banco da frente e dizer:

— Está escuro, Damian...

— Acha que não sei dirigir à noite? — retrucou ele, sem tirar os olhos da estrada. — Já fiz isso um milhão de vezes, Lara. Não é uma chuvinha que vai nos derrubar.

— É perigoso dirigir assim — insistiu ela. Damian aumentou um pouco a velocidade, seus ombros curvados para frente. Maria desejou que ele fosse menos teimoso. — Você mal consegue enxergar o que vem lá.

— Não vem nada lá — respondeu ele. O som do pára-brisas era assustador, e Damian teve que altear a voz para ser ouvido. — E já disse que não vamos parar. O assunto está encerrado.

— Será que você pode parar de ser um... stronzo?

Maria soube que Lara estava furiosa porque além de nunca chamar alguém de stronzo — palavra um pouco forte para ser usada na cara da pessoa —, ela nunca permitia que sua voz tremesse tanto. Maria conhecia bem demais a irmã mais velha para saber que, se o vizinho não cooperasse um pouquinho, Lara se transformaria na própria reincarnação de Lúcifer na Terra. Damian apertou o volante e trincou a mandíbula.

— Eu só disse que não vamos parar — retrucou ele. — Não precisa agir assim.

— Precisa sim — interrompeu Amy, arrancando os fones de ouvido e desistindo de mirar o breu da rodovia. A chuva batia contra a lataria do carro, silenciando todos os ruídos. — Tudo o que você fez, desde que essa viagem começou, foi ser um grosso idiota comigo, com Lara e com todos.

— Talvez eu tenha motivos, não é mesmo? — Ele fitou Amy pelo retrovisor. Os pára-brisas se moviam com um barulho irritante. — E cale essa boca, garota. Ninguém aqui pediu a sua opinião.

— Relaxa, cara — disse Maria, escorada na porta. Não aguentaria outra discussãozinha idiota dos dois. — Vamos esfriar a cabeça e...

— Amy não está errada — rebateu Lara, as bochechas coradas. — Você está sendo grosseiro e teimoso desde que a chuva começou. Qual é o problema em encostar o carro?

— Não estou sendo teimoso — disse ele, como se explicasse a uma criança burra os motivos para não enfiar os dedos nas tomadas. — Só não quero perder mais tempo de viagem. Obrigado.

— Quando são as suas vontades em jogo, você para — disse Amy, seu sotaque escocês deixando as palavras mais engraçadas. — Para se empanturrar de chilli você até sai da estrada, mas quando precisamos parar por um motivo realmente importante que não seja as vontades de Vossa Majestade, você nega porque não quer perder tempo. Seja menos hipócrita, cara.

— Cale essa boca, garota — retrucou Damian. — Você não me conhece.

— Pois é, você andou meio sumido nesses quinze anos.

A garota, sem nenhuma surpresa, era fluente na língua do deboche. Maria sorriu com o canto dos lábios e, secretamente, decidiu que gostava dela. Apertando o volante com força, Damian fechou a cara e disse:

— Não vamos parar. O assunto está encerrado.

— Como Vossa Majestade desejar — respondeu Amy.

— Bem, agora a Vossa Majestade deseja que você cale a boca. Obrigado.

— Meu Deus. Quantos anos você tem, cara? Cinco?

A boca de Damian se retorceu e ele explodiu. Enlouquecido, o vizinho socou o volante com a mão direita, fazendo o próprio banco balançar, e gritou:

— NÃO VAMOS PARAR! NÃO VAMOS PARAR! NÃO VAMOS PARAR!

— Pare de gritar, cara! — Amy retrucou numa voz esganiçada.

— Já disse que não estou falando com você, garota!

— Cuidado! — Lara gritou.

Foi o tempo de Maria ouvir o grito da irmã e vê-la puxar o volante. Luzes de farol encheram o interior do carro, e o som cortante de uma buzina de caminhão passou uivando por eles. A minivan girou e saiu para fora da estrada com um estouro. Durou três segundos. Três segundos em que o coração de Maria parou por completo. Damian puxou o freio de mão e o carro derrapou pela grama alta, parando com um solavanco na beira da estrada.

— Estão todos bem? — Lara se virou imediatamente para as meninas, a preocupação estampada em cada linha de seu rosto. — Maria? Amy?

O ronco de Will e uma risadinha de Alessia responderam à pergunta. Giorgia permaneceu com os olhos arregalados, mas a irmã mais nova riu e segurou sua mãozinha. Maria passou um braço por cima da sobrinha assustada e tocou o ombro de Lara com a outra mão. Os dedos de Lara tremiam quando tocaram os dela. Amy estava silenciosa e branca feito papel.

— Cara, acorda! — Maria empurrou os joelhos de Will quando outro ronco surgiu. Confuso, ele esfregou os olhos. Um fio de baba escorria de sua boca — Como diabos você consegue dormir numa hora dessas?!

Sem graça, ele disse:

— Tenho o sono pesado.

Amy permaneceu ereta contra o banco, os olhos azuis arregalados. Maria chamou uma, duas vezes, mas a garota não se moveu um milímetro sequer. Ah, cara, me ajude aqui. Ela ia recorrer à Lara, porém ouviu, entre os pingos grossos de chuva, a voz irritada e abafada da irmã:

— ...irresponsável, colocando nossas vidas em risco por causa de um...!

Um trovão abafou as vozes e o possível palavrão de Lara. Alessia e Giorgia se encolheram contra o banco. Nervosa, Maria sacudia os joelhos de Amy, tentando acordá-la daquele transe insuportável. Os olhos da garota estavam fixos na escuridão do lado de fora, fora do alcance de qualquer um.

— ...porque você não ouve o que as pessoas...! — Outro trovão engoliu a voz de Lara. Amy ainda não dava sinais de ter voltado. — ...um cabeça dura!

— Lara, você pode deixar o xingamento para depois e nos ajudar aqui? — perguntou Will.

Maria encarou os olhos míopes de Will, e apesar de saber que ele não enxergaria, agradeceu com um gesto de cabeça. Damian fez um muxoxo sobre ver as condições do estrago e saiu do carro, batendo a porta. Lara se virou assim que ele saiu.

— O quê... — Percebendo a expressão apavorada no rosto de Amy, ela mudou o tom da voz. — Querida, o que houve?

Antes que Maria pudesse fazer qualquer coisa, a irmã mais velha se esgueirou para o banco traseiro, ficando de joelhos entre as meninas. Giorgia e Alessia, imitando a posição da mãe, encararam a garota atrás de si. Amy respirava com dificuldade e não se movia. Will apertou os olhos para a garota. Todos esperavam por uma palavra dela. Lara, maternal como sempre, perguntou outra vez:

— Amy, querida, o que houve?

— Ela está em choque. — Maria sentiu um comichão estranho nos lábios ao dizer aquelas palavras. Ela sacudiu mais uma vez os joelhos ossudos de Amy. — Você está nos ouvindo?

Reaja, pensou Maria, furiosa como silêncio de velório que rondava a minivan. Amy piscou mais algumas vezes, engolindo em seco. Como se distinguisse o que existia a sua volta pela primeira vez, ela olhou para tudo com uma expressão branca.

— Estou bem. Sinto... sinto muito.

A voz dela era áspera e estranha. Amy relaxou no banco e Maria respirou fundo. Lara se certificou — alguns milhões de vezes — sobre o bem-estar da garota e voltou ao assento do carona, enfiando-se no vão entre os bancos com um sorriso carinhoso e arrancando risadinhas das filhas. Apesar do som da chuva e do pára-brisas, as risadas das garotas iluminaram o semblante de Lara, deixando o clima mais leve dentro do carro.

Pelo menos até Damian entrar na minivan e bater a porta. Da cabeça aos pés, ele estava uma sopa. Sua camisa azul grudava no corpo e seus cabelos arrepiados pingavam no estofado de couro cinzento da minivan. Nos olhos azuis, a expressão dele era a mesma de Amy. Ah, porra, de novo não.

— O que houve? — Lara inquiriu numa voz seca e distante que dizia Eu ainda estou furiosa com você por ter quase nos matado numa estrada desconhecida. — Damian?

— Furamos um pneu. — Ele não olhou para ela. — E eu juro que alguma coisa rastejou nos meus pés.

— Você não vai conseguir trocar o pneu nessa chuva e nesse escuro — disse Maria, suspirando e se encostando na porta do carro. — Vamos dormir aqui e esperar amanhecer.

— Mas...

Lara lançou o olhar para Damian. Ele se calou. Maria sorriu com o canto dos lábios antes de dizer:

— Vamos dormir aqui, cara. É o melhor que podemos fazer.

Amy olhava para os pingos de chuva na janela quando Will esticou os braços e puxou as sacolas de Lara com os cobertores. Maria quis chamar a garota, mas não o fez. Todo mundo aqui precisa dormir. Só isso. Giorgia e Alessia ficaram radiantes com a ideia de acamparem no carro, aconchegando-se no banco com risadinhas. Damian arregaçou as mangas e afastou os cabelos molhados do rosto.

— Você não vai tirar a roupa? — perguntou Lara.

— Se você me pagar um jantar antes, quem sabe? — Ele riu, mas Lara não esboçou reação. Maria sentiu pena dele. Cara, não brinque com ela depois de quase nos matar na estrada. — Foi uma brincadeira, Lara...

— Você pode ficar doente se a roupa secar no seu corpo — disse ela, erguendo as pernas para o banco. — Mas já que você sabe de tudo, faça como achar melhor.

Damian franziu o cenho para o tom desinteressado dela, entretanto acatou a sugestão. Tirou a camisa molhada e pediu a Will que alcançasse outra a ele. Will, mais uma vez, roncava no banco de trás. Damian fechou a cara.

— Ah, cara, que grande mer...!

Amy atirou uma camiseta cinzenta para frente antes que ele concluísse o palavrão. Durante alguns minutos, tudo o que ouviram foi o som da chuva e dos carros que vez ou outra passavam pela estrada. Damian girou a chave da minivan e tudo ficou escuro. Maria distinguia apenas as silhuetas de cada um contra a escuridão da noite.

Outro carro passou zunindo pela estrada. O silêncio foi quebrado por Damian:

— Valeu, garota.

Novamente, silêncio.

— Sem problemas, cara — disse ela.

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Maria acordou com Alessia e Giorgia enroscadas em seu corpo. Espreguiçando-se como pôde, ela acariciou a cabeça das sobrinhas, que gemeram baixinho e esfregaram os olhos. Maria não fazia ideia da hora, mas pela claridade que invadia a minivan e pelos sons que vinham da rodovia, parecia cedo. Mais cedo do que eu gostaria, pensou, irritada com a dorzinha incômoda nas costas e com fome que ameaçava chegar. Giorgia e Alessia se aninharam do outro lado do banco, fazendo coro ao ronco de Will no fundão.

Era engraçado vê-lo assim, relaxado e dormindo com a boca aberta. Sempre que Will passava no balcão de cópias da agência ele estava com Anne, do Marketing, ouvindo o que ela dizia com a cabeça baixa, um sorrisinho envergonhado e a mania de apertar a alça da mochila que trazia no ombro. Will sempre acenava para Maria com uma rigidez engraçada, como se os cumprimentos distantes e mecânicos fossem uma espécie de iniciação e término do expediente.

Maria esfregou os olhos. Amy olhava para o lado de fora, acompanhando com os olhos azuis bem maquiados o movimento dos carros. A expressão assustada da garota na noite anterior fora o suficiente para Maria perceber que algo não ia bem. Perder a mãe nunca é fácil. Esticando-se, ela disse:

Buongiorno. — Amy a encarou com olhos vazios. Sem graça, Maria sorriu. — Como você passou a noite?

— Bem. — A garota deu de ombros. — E você?

— Dormir no carro é sempre uma merda — reclamou Maria, arrancando um sorrisinho de Amy. Percebendo os dois assentos da frente vazios, Maria franziu o cenho. — Onde estão...

— Lá. — A garota apontou para fora do carro, onde Damian e Lara avaliavam os estragos do acidente. — Parece que a coisa foi feia. Pneu furado e tal.

— É. Ontem à noite não foi fácil para ninguém.

— Só para ele. — Amy indicou Will com a cabeça. Maria riu quando ele roncou alto, a cabeça jogada para trás do banco. — Realmente não sei como ele consegue.

— Nem eu. Na agência ele parece tão... — Maria se calou ao ver Damian gesticular com uma Lara de rosto corado. Quando percebeu que Amy olhava na mesma direção, suspirou. — Volto já.

Maria bateu a porta do carro e a primeira coisa que sentiu foi a grama molhada roçar em seus tornozelos. Os carros passavam zunindo pela estrada, sem se importar em espirrar a água da chuva para fora da rodovia. Enquanto se aproximava da irmã, Maria ouviu a voz irritada de Damian dizer:

— ...essa bosta! — Ele chutou o pneu furado. — Tomara que o estepe esteja bom, senão vamos precisar de uma intervenção divina para chegar à Flórida.

A lateral direita da minivan estava arranhada por causa da cerca que destruíram quando giraram para fora da estrada, e o pneu murcho não era lá muito animador. Lara tinha as mãos na cintura e o cenho franzido, mirando o vizinho e o pneu com uma fúria contida. O ar gelado daquela manhã fazia seus cabelos presos num rabo de cavalo balançarem.

— Daremos um jeito. Vamos trocar o pneu e seguir viagem — disse ela. — Alguma ideia de onde estamos?

— Acho que estamos saindo de Maryland. — Damian se abaixou para verificar os danos do pneu, apoiando-se num joelho. — Sei lá, também. Estamos no meio do mato. Não faz diferença.

— Como você pode não saber? — retrucou Lara.

— Porque não sei de tudo, Lara — reclamou ele, arrancando a grama presa entre a lataria e o pneu furado.

— Bem, não é o que parece.

— Qual é o seu problema comigo?

— Ontem você quase nos matou porque não ouve o que os outros dizem. Qual era o problema em parar?

Damian se levantou e encarou Lara. Seu rosto mal barbeado era tão cansado e irritado que era possível ler em seu olhos a vontade de esganar alguém, e o pescoço mais próximo era o de Lara, que ergueu o queixo em resposta ao desafio. Maria se colocou entre os dois antes que uma Terceira Guerra Mundial se iniciasse, descansando as mãos nos ombros de cada um.

— Olha só, vocês precisam se acalmar um pouco, ok? — disse ela. Nenhum dos dois desviou os olhos. Lara era boa em acalmar as discussões, não ela. Porra, sorella, como você faz isso? — Vamos respirar, trocar o pneu e voltar ao carro. Foi só um pneu, galera. Nada grave aconteceu ontem, e estamos bem, porra. Sobrevivemos. Agora, continuamos viagem.

Ela soltou os ombros dos dois quando a figura alta e ruiva — e míope — de Will saiu da minivan com o celular nas mãos. Amy, feito um vulto silencioso e extremamente maquiado, veio atrás. Os três se calaram, esperando.

— Bom dia — cumprimentou Will. Maria foi a única a responder, já que Lara e Damian permaneciam no silêncio contrariado. De bochechas vermelhas e apertando os olhinhos castanhos, Will passou o celular a Amy. — Acordei e decidi fazer um planejamento de viagem para calcular as paradas. Amy marcou no mapa os postos e as pousadas e, se tudo seguir conforme o roteiro, nossa primeira parada será em Virgínia. Contabilizando as paradas e eventuais atrasos, chegaremos na Flórida num tempo total de 26 horas.

Ninguém abriu a boca. Mais carros passaram zunindo pela estrada antes de Damian abrir um sorriso largo. Não parecia que, há menos de dez minutos, ele queria esmagar a primeira pessoa que aparecesse em sua frente.

— Eu amo você, cara — disse ele, aproximando-se do amigo. — Eu realmente amo você, William. Certo, agora me ajude a trocar esse pneu e vamos seguir viagem!

Eles se afastaram em direção ao estepe — com Will ainda meio confuso por causa da falta dos óculos — e Maria passou o braço pelos ombros de Lara. A irmã mais velha suspirou, observando Amy e as garotas brincando de Barbie dentro da minivan. Um pouquinho afastadas, Maria riu.

— Passou, sorella. Relaxe.

— Às vezes acho que Amy tem razão — retrucou Lara num tom amuado, virando o rosto para o porta-malas, onde os dois verificavam as condições do estepe. — Damian sabe ser o maior stronzo quando quer.

— Tudo vai dar certo. As meninas verão o pai, Amy verá a avó e eu cobrarei daquele maldito testa di cazzo do Gérard o que ele me deve.

Há sete anos, quando ainda moravam nos guetos e Gérard dividia com elas o apartamento de um quarto, Maria e ele fizeram uma aposta. Num final de tarde em que Lara — nos meses finais de gravidez — saíra para procurar emprego porque o inútil do marido dela não levantava a bunda do sofá, ele assistia a uma partida de basquete na televisão. Gérard havia apostado uma grana absurda no fato de que os Nets venceriam os Knicks, arrotando e gargalhando como ficaria rico depois daquilo.

Enojada pela postura do cunhado, seus arrotos fora de hora e toda aquela felicidade pelos Nets estarem com uma larga vantagem, Maria apostara quinhentos paus em como os Knicks virariam o jogo. Gérard rira e, tomando um gole de cerveja, dissera com ar zombeteiro:

"Os Knicks não vão virar essa porra. Nem em sonho."

"E se eu ganhar?", ela perguntara.

"Ganhar? Se você ganhar, quem te paga os quinhentos paus sou eu."

Maria, que na época trabalhava lavando pratos num diner ganhando menos de dois dólares por hora, aceitara a aposta. Se perdesse, não teria como pagar o cunhado, mas isso não fizera diferença quando a partida terminou e os Knicks, numa virada espetacular, metralharam os Nets por 186–136. Apesar de Gérard não ter cumprido sua parte dos quinhentos paus, arrancar o sorriso da cara de fuinha dele fora a melhor recompensa que Maria conseguira na época. E agora você vai me pagar cada centavo, seu testa di cazzo miserável.

— Não fale assim, Mimi — repreendeu Lara. — Gérard é esforçado.

— Claro. Esforçado em sentar a bunda no sofá e beber cerveja o dia inteiro — retrucou ela. Os cantos da boca da irmã mais velha se comprimiram, e Maria soube que era a hora de trocar de assunto. — Enfim, tudo vai dar certo. Logo essa viagem terminará e ficaremos bem.

— É. Tudo vai dar certo. Vamos relaxar e curtir a viagem, não? — disse Lara. Maria sorriu para a irmã e beijou sua bochecha. — Vou ver as meninas.

Enquanto Lara voltava ao carro, com a grama molhada fazendo um som engraçado sob seus pés, Maria não pôde afastar o sentimento de que as merdas estavam apenas começando. Como dentro do navio, na noite em que pisaram nos Estados Unidos, desejou para que estivesse errada.

Completamente errada.

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