06. unicórnios e bombeiros

DAMIAN

Damian só relaxou quando entraram no Túnel Holland.

Até que a minivan não era tão ruim depois de um tempo. O ar-condicionado mantinha a temperatura num nível agradável, o rádio tocava uma música meio folk num volume mínimo e, o melhor de tudo, as pessoas conversavam em voz baixa. Damian ouvia o sussurro infantil das meninas no banco de trás e as palavras desconexas que Will e a garota trocavam sobre o jogo no fundo do carro. Maria comia uma maçã, fazendo um crunch crunch vez ou outra, e Lara olhava pela janela do carro com o maior sorriso que Damian já vira no rosto de um ser humano.

Ele relaxou no banco e apoiou o braço esquerdo na porta do carro. Aquele meio silêncio era tão agradável aos seus ouvidos que se a viagem inteira fosse assim, tranquila, ela não seria um maldito fardo em sua vida. Olhou pelo retrovisor e viu Will e a garota compenetrados num jogo qualquer. Por puro instinto, Damian franziu os lábios.

Os cabelos negros e a cabeça baixa da garota escondiam seus olhos azuis. Maldita. Ela é insolente e arrogante exatamente como Diane, ele pensou, voltando os olhos para um Volvo que dirigia logo adiante. Diane tinha aquela mania irritante de sempre levantar o nariz e agir como se fosse a rainha do mundo, como se suas opiniões estivessem sempre acima de tudo e todos.

Damian se lembrou dos olhos maquiados da garota no posto de gasolina, de seu deboche, de Lara pedindo, quando voltaram ao carro, para ele ter paciência. Damian via Diane em cada milímetro da menina, como uma sombra sentada em seus ombros magricelas. E toda aquela coisa com a mochila, pensou ele, torcendo o nariz. Será que a mãe dela sabia do vício, ou morrera antes de descobrir que a filha não passava de uma maconheirazinha infeliz?

Você não podia ter morrido, Diane. Como foi que isso aconteceu, porra? O silêncio fazia seus pensamentos vagarem pelo presente e o passado, que se mesclavam e se transformavam no Túnel Holland, àquela hora repleto de carros apressados para deixarem a cidade.

Um toque de celular fez Damian acordar do sonho. O nome de Jenna, sua secretária na agência, piscava no painel LCD do carro, ao lado de um pequeno ícone. Ele suspirou. Estava demorando para os problemas chegarem. Damian apertou o botão para atender a chamada.

— Bom dia, Sr. Harris. — A voz amistosa de Jenna preencheu o carro, calando todos. Ele imaginou a secretária, uma mulher miúda que usava óculos de armação vermelho vivo, fazer anotações. — Surgiram alguns problemas na agência. O senhor pode falar agora?

— O que há?

— Algumas coisas. — Jenna hesitou. — O Sr. Bonker está a caminho, como deve se lembrar, para a reunião com...

— Eu e o Sr. Greene estamos indo à Flórida. Não teremos condições de fazer uma reunião hoje e muito menos nos próximos dias. Passe o Sr. Bonker para Meg, a Diretora do Núcleo de Criação Digital. Ela saberá o que fazer.

— Sim, senhor. — Ele tinha certeza de que Jenna anotava suas palavras com aquele trejeito nervosinho que era sua marca registrada. — Tentei fazer o pessoal do Sr. Bonker conversar com a Sra. Carter, mas eles desejam falar com os senhores sobre o layout do novo site.

— Diga à equipe do Sr. Bonker que sentimos muito, mas que Meg cuidará do projeto e fornecerá todo o suporte necessário. Mais alguma coisa?

— Uma última coisa, senhor. — Ela remexeu em inúmeros papéis de recados para encontrar o certo e, quando finalmente conseguiu, foi como um soco na boca do estômago de Damian. — A Srta. Berliv ligou. Informei que o senhor estaria fora da cidade, mas que assim que possível retornaria o recado.

Caralho. Me esqueci de Irina. Damian não respondeu de imediato. Tudo ficou suspenso durante aquele segundo interminável. Jenna aguardava do outro lado da linha, mas ele não conseguiu formular um pensamento que prestasse. Damian não via mais o Volvo em sua frente, mas sim os lábios franzidos de Irina.

Com toda aquela merda com a garota, Damian se esquecera da existência de sua noiva polonesa de lindos olhos verdes. E se esquecera de avisar que viajaria à outra ponta do país para se livrar de uma filha adolescente recém-descoberta. Se Irina já estava uma fera por causa da briga, descobrir através de sua secretária que o noivo estaria fora da cidade certamente não ajudaria. Isso não é bom. Isso não é nada bom.

— Obrigado, Jenna — disse ele, a boca seca. — Qualquer coisa entro em contato.

Damian encerrou a chamada e desejou que o Túnel Holland fosse menor para que pudesse sair de trás daquele Volvo maldito e ligar para Irina. Discretamente, viu duas mensagens dela no visor do celular. Porra, ela deve estar furiosa. Os carros avançavam em ritmo lento, e ele apertou o volante, querendo voar por cima do tráfego.

— Sr. Harris.

A voz infantil de Giorgia se levantou no silêncio do carro. Damian olhou para seu rostinho pelo retrovisor. A garota era dona de um rosto mais alongado do que o da irmã e de olhos verdes brilhantes que pareciam implorar por traquinagens. Giorgia, além de tudo, era banguela do dente da frente, o que deixava seu sorriso espoleta ainda mais engraçado.

— Sim? — inquiriu ele, voltando a atenção ao trânsito.

— O senhor conhece o Jimmy? — perguntou ela.

Jimmy Bonker, o novo ídolo da música pop, não passava de um garoto de 15 anos que cantava como uma menina, dançava feito uma minhoca e usava um penteado à la Elvis Presley que fazia as mocinhas — e muitos caras adultos — suspirarem pelos cantos. Ele era o novo fenômeno da indústria, e por isso agia como se fosse o rei do mundo. Era óbvio que as filhas de Lara gostariam do cara.

Damian esticou o pescoço quando os carros pararam no túnel. Aquele maldito engarrafamento atrasaria toda a viagem. Tentando enxergar ao longe, não se virou para olhar a garotinha.

— Nunca o vi, mas ele nos mandou um vinho meio barato da última vez em que fizemos um trabalho para ele.

— É verdade — concordou Will, ajeitando os óculos. — Prefiro os chocolates da Sra. Knowles.

— A Sra. Knowles? — inquiriu Maria naquela incredulidade agressiva que dizia Você está me zoando, cara. Will se encolheu no banco. — Pera aí, você está falando da Beyoncé?

Damian confirmou com um gesto de cabeça desatento, olhando para o relógio no painel do carro. 10h15min. Que ótimo. Tudo o que precisávamos era um engarrafamento. Ao longe, a fila de carros se estendia até perder de vista.

— O senhor é rico?

— Giorgia! — repreendeu Lara. A menina se encolheu, contudo permaneceu entre os dois bancos. — Você está sendo uma menina muito mal-educada!

— Não sou rico — respondeu ele, ainda de olho no engarrafamento.

— O senhor tem mais de uma casa?

— Giorgia!

— Ah, sim. — Will endireitou os óculos e inclinou o corpo para frente. — Damian tem um apartamento em Londres para cuidar dos negócios da filial europeia, e a irmã mora em Milão com as crianças e o marido, Paolo, modelo da Armani.

— E aparentemente tenho mais de uma secretária, como podem ver — disse Damian, sem prestar atenção. Todos riram, exceto Amy e Lara, que permanecia sem graça e encolhida no banco.

— Bem, então o senhor é rico.

— Pelo amor de Deus, Giorgia! — Lara tinha as bochehas vermelhas.

— Ele não é rico, Gio. — A vozinha de Alessia era mais doce do que a da irmã. Seu rostinho redondo se iluminou quando surgiu entre os bancos. — O senhor tem um unicórnio? Só pessoas ricas de verdade tem um unicórnio!

— Não. — Ele franziu o cenho e riu para Lara, que balançou a cabeça para a filha. — Vocês têm uma maneira muito engraçada para definir se alguém é rico ou não...

De volta às mazelas do trânsito, Damian buzinou assim que viu a motorista do Volvo — uma senhora com uma viseira roxa tenebrosa — enfiar a cabeça para fora do vidro para tentar enxergar em frente à massa de carros que se estendia. Damian comprimiu os lábios antes de murmurar:

— O que está acon...

— A saída do túnel está meio bloqueada. — Will tinha o rosto enfiado no celular quando anunciou a notícia. Damian viu o olhar insolente de Amy encontrar o seu no retrovisor antes de a garota virar o rosto para as janelas. Will coçou a cabeça. — Parece que explodiu um bueiro...

Ele sentiu o peso do mundo inteiro se arriar em seus ombros e afrouxou a mandíbula, ouvindo o ruído de uma música pop antiga no rádio. Damian coçou a barba por fazer e descansou as mãos no volante, porque aquilo não podia estar acontecendo. Não de verdade. Aquilo só podia ser um carma violento, o ódio implacável de algum deus indiano ou algo do tipo. Ele analisou as mãos contra o volante, ouvindo as buzinas rugirem pelo túnel, e percebeu que sua aliança de noivado não estava na mão direita.

Aliança esquecida na mesinha de centro depois de uma bebedeira nostálgica, chamadas não-atendidas e nenhum aviso de que viajaria para outro estado com suas vizinhas ilegais, uma adolescente gótica, crianças esquisitas e, é claro, aquele melhor amigo bizarro que nunca saía de seu apartamento.

Irina definitivamente arrancaria seu couro na volta. Que ótimo.

— Diz aqui que os bombeiros estão consertando e desviando o trânsito — continuou Will, deslizando pela tela do celular com o dedo indicador. Ele arrematou com a única coisa que Damian não queria ouvir: — E pelo visto não tem previsão de retorno...

Contra todas as expectativas, o rosto de Damian se contorceu num sorriso de dor. Aquela viagem acabaria com ele.

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