05. a bondade de estranhos
AMY
No posto de gasolina, Amy saltou da minivan logo depois de Will. Esticando-se, respirou o ar poluído de Nova York e olhou em volta. Não demorou a perceber que não havia muito o que ver. O posto estaria vazio naquela manhã de segunda-feira tão brilhante se não fosse por uma família de turistas usando camisetas tenebrosas que diziam Eu estive no Texas e foi o máximo, Cowboy! e alguns executivos engravatados entrando e saindo de carrões pretos bem polidos. Na rua, os táxis amarelos buzinavam, ciclistas gritavam e, ao longe, músicos de rua tocavam jazz.
Amy sorriu ao reconhecer os sons de um violino e de um violão. As notas se misturavam ao caos do trânsito, mas ainda estavam lá, escalando os prédios e invadindo cada janela aberta que encontravam. Tudo ia bem, até o violino começar a tocar um reggae. Bob Marley. O coração de Amy parou e o sorriso, que só a música tinha a capacidade de trazer após a morte da mãe, sumiu do rosto da garota. Porra, precisava ser Bob Marley?
Damian abastecia, Lara levava as garotas ao banheiro com pulinhos engraçados e Will seguia Maria entre as gôndolas da loja de conveniência, mas tudo isso parecia distante. Amy engoliu em seco, lembrando-se do rádio sujo de tinta que a mãe deixava ligado ao pintar suas telas, o rádio que sempre tocava Bob Marley. Ela se lembrou da mãe usando os macacões manchados, cantarolando enquanto misturava as tintas. Amy se lembrou da mãe, e o pensamento foi o suficiente para formar um nó de marinheiro em sua garganta.
Às vezes o rosto da mãe ficava confuso em suas memórias. Ela havia morrido há menos de três meses, porém Amy encontrava dificuldades para visualizar os olhos castanhos brincalhões, as sobrancelhas bem delineadas, o nariz delicado e os cabelos loiros sempre presos por uma faixa manchada de tinta com mais frequência do que gostaria de admitir. Quando acontecia, Amy pegava na mochila a última fotografia que tiraram num pub, poucos dias antes do acidente, e chorava até os olhos ficarem secos e a imagem do rosto da mãe voltar a brilhar em suas lembranças.
Querendo pegar a fotografia na mochila e se esconder no banheiro do posto para chorar, Amy foi para a traseira da minivan. O porta-malas, entretanto, não abriu. A garota puxou novamente, com mais força, mas foi inútil.
— Vai destruir o carro também, garota?
Amy ergueu os olhos e encontrou os dele, os mesmos olhos azulados que via refletido no espelho cada vez que se mirava. Aquilo era tão injusto.
Amy entrara num avião para o Canadá logo depois da morte da mãe, pensando em como o pai a reconheceria e diria Que bom que você veio, meu amor. Mas ao contrário de tudo, havia atravessado uma fronteira, correndo o risco de ser deportada e enfiada num orfanato, para nada. Só para o cara ser um grosso que não via a hora de se livrar dela. Não preciso de você, idiota. Não preciso de você. Amy queria chorar, só que não na frente dele. Na frente dele nunca.
— Quero pegar uma coisa na minha mochila — disse ela, amaldiçoando a voz que denunciava sua vontade de chorar. — Abra aqui.
— Que coisa? — perguntou ele.
— Que eu me lembre, não preciso dar satisfações a você. — Amy sorriu de maneira debochada quando a cara azeda dele se fechou. — Abra aqui, cara.
Damian apoiou a mão direita no porta-malas, inclinando o corpo em sua direção. Ele era ameaçador naquela atitude de policial machão de cidade pequena, mas Amy não se moveu, preferindo encará-lo. Na Escócia, seus professores a tratavam muito pior, sempre exigindo mais esforço, mais concentração, mais, mais e mais. Perto deles, Damian era uma versão feiosa da Dora Aventureira.
— Vamos deixar uma coisa bem clara aqui, garota — disse ele, apertando os olhos. — Você pode achar muito bacana esse estilo de vida de... satanismo, drogas e roubo de órgãos, mas você está lidando comigo agora, ok?
— Hm, ok? — respondeu ela, franzindo o cenho. Discretamente, Amy tentou abrir o porta-malas, mas Damian não se moveu. Ela bufou. — Só quero pegar uma coisa na minha mochila.
— Você quer sua erva?
— Erva...?
— Desiste, beleza? — Ele cruzou os braços e a encarou com um sorrisinho sabichão. — Já saquei qual é a sua. Você e essa... — Damian gesticulou com as mãos — aura de adolescente rebelde e maconheira que não liga para nada. Bem, eu ligo e digo que você não vai ficar chapada aqui, entendeu?
— Eu só quero minha mochila. — A voz de Amy vacilou. Estava à beira de uma crise de choro quando Lara voltou, trazendo as meninas pela mão. Aquela visão das três, mãe e filhas sorrindo, foi o suficiente para Amy perder o controle. Voltando-se para Damian, ela disse: — Você é o maior palhaço da face da Terra. Espero que esteja feliz com esse circo que armou.
— O que está acon... — disse Lara, franzindo o cenho, mas Amy não ficou para ouvir o resto.
Assim que virou as costas, chorou. Amy sabia que seu rímel negro estaria borrado — e que um garoto gorducho da família de turistas tirava fotos suas com o celular —, mas não se importou. Se pudesse, ela explodiria todas as bombas de gasolina do posto, todos os americanos nojentos como Damian com um simples estalar de dedos.
Amy se enfiou num dos reservados do banheiro feminino e desejou, pela segunda vez na vida, se diluir no ar feito a fumaça do cigarro do executivo que fumava do lado de fora da loja de conveniência. Sumir.
Ou abraçar sua mãe novamente. Isso com certeza ajudaria.
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Assim que Amy se recompôs — e retocou o rímel borrado com o pincel que sempre trazia no bolso traseiro dos jeans —, saiu do banheiro e viu Lara sentada na mureta de um canteiro de flores ali perto. Admirando sem interesse o vai e vem dos carros entre as bombas, Lara trazia uma sacola nas mãos e uma expressão ansiosa que se acentuou ao ver as filhas pularem ao redor de Will na entrada da loja de conveniência.
Lara tinha todo o ar de mãe: as calças jeans puídas com manchas de tinta colorida, tênis All Star brancos, uma camiseta cor-de-rosa com um Mickey Mouse estampado, cheiro de biscoitos e massinha de modelar e aquele coração imenso que sempre cabia mais um. Quando as garotas voltaram correndo ao carro, rindo para Damian, Lara suspirou aliviada e virou o rosto para a porta do banheiro.
Os olhos verdes dela encontraram os azuis de Amy, que corou com aquela encarada tão maternal.
— Oi, querida. Como você está? — perguntou ela, sorrindo. Sem saber o que responder, a garota ficou em silêncio. Lara puxou um sanduíche da sacola, estendendo-o à Amy. — Pensei que talvez você estivesse com fome, já que não tomou café-da-manhã. Consegui guardar um sanduíche de presunto para você antes que Alessia terminasse com todos.
Amy pegou o sanduíche embalado em papel filme como se tivesse uma mão robótica. Ainda de pé, a garota estudou Lara, apertando o pãozinho fofo do sanduíche e imaginando os motivos dela para estar sentada naquela mureta. Ela está aqui por causa do idiota.
— Por que você está me ajudando? — perguntou Amy.
Quando o cara vomitou e apagou no corredor, Lara cuidou de tudo. Ela havia limpado a sujeira e carregado o imbecil para dentro enquanto Amy pensava onde diabos passaria aquela noite. Ela não tinha nada na mochila a não ser duas fotos da mãe — a das duas abraçadas no pub e a da mãe com o cara — e algumas roupas emboladas. Amy entrara num estado de estupor sufocante. Não conhecia a cidade, não tinha mais do que vinte libras no bolso e todos os seus amigos estavam na Flórida. Foi então que Lara voltou do apartamento do cara, sorrindo e cheirando a alvejante de lavanda.
Com aquele brilho bondoso nos olhos verdes, ela convidara Amy para entrar e preparara um prato de comida enquanto ouvia o que a garota tinha a dizer. Ainda presa na inércia, Amy disse que viera da Escócia para ver o pai, sem saber direito como entrar nos detalhes com Lara, uma desconhecida. Graças a Deus, não fora necessário. Você pode falar com ele amanhã, querida. Fique aqui essa noite. Se precisar de alguma coisa, é só chamar. Lara havia sorrido e sumido pelo corredor depois de deixar um lençol e alguns travesseiros no sofá para Amy.
Por que você está me ajudando? A pergunta viajou pela cabeça de Amy, que ainda de pé em frente à Lara, esperava por uma resposta. Aquela mulher havia dado abrigo e comida a uma menina desconhecida e nunca a chamara de nada que não fosse querida ou algum sinônimo agradável. Amy não queria ser rude com Lara, mas queria saber seus motivos. Ninguém era tão legal assim de graça.
Lara sorriu para o próprio sanduíche e deu de ombros.
— Sei como é estar num país diferente sem ter a quem pedir ajuda. — Ela levantou os olhos verdes para Amy. — Estou apenas fazendo por você o que eu gostaria que tivessem feito por mim, querida.
— Eu não queria ser rude com você, Lara, mas ele... — Amy se sentou na mureta e apertou o sanduíche. Irritada, a garota percebeu que o esmalte negro de suas unhas começava a descascar nas pontas. — Eu só queria... eu só queria que a minha mãe...
Eu só queria que minha mãe estivesse aqui, ela pensou, baixando o rosto para não chorar. Lara suspirou, abrindo o sanduíche. O barulho do papel filme se misturou ao som dos carros entrando no posto quando Lara disse:
— Eu e Maria perdemos nossa mãe quando éramos um pouquinho mais velhas do que você. — Ela fez uma pausa. Amy ergueu a cabeça. — Na verdade, Maria tinha a sua idade. Não vou dizer que foi fácil, mas você precisa... seguir em frente. Ninguém vai substituir sua mãe, mas... mas se você quiser, eu... nós podemos ser amigas, não?
Amy a encarou, percebendo as manchinhas castanhas de seus olhos verdes brilharem contra o sol da manhã. Ela conhecia aquela mulher há quatro dias e, até agora, ela estava sendo a melhor parte de sua ida aos Estados Unidos atrás de um pai que não a queria e de uma avó que não a via há bastante tempo.
Lara sorriu e lambeu o dedo mindinho. Amy abriu o sanduíche, mas parou a meio caminho da boca quando ela disse:
— E sobre seu pai... — Lara ficou em silêncio e Amy fechou a cara. Sem graça, ela continuou num tom cuidadoso: — Bem, meu pai era um stronzo. Um... Dio, como se diz? Um stronzo. Um... imbecil. Damian não é um stronzo, ele... vocês só precisam de tempo para se acostumar à ideia, sabe? Você precisa aprender a ter um pai, e ele precisa aprender a ter uma filha.
Lara inclinou o corpo como se fosse contar um segredo a Amy. Numa voz baixinha, com o sotaque italiano temperando suas palavras, ela disse:
— E se ele for um stronzo com você, fale comigo. — Amy deixou um sorriso escapar, o primeiro em meses. Lara riu, limpando a boca com o dorso da mão. — Você deveria sorrir mais, querida.
Amy sorriu de volta e ergueu os olhos para o posto. Will ainda seguia Maria entre as gôndolas de chocolate e salgadinho da pequena loja de conveniência, observando de longe todos os movimentos dela. Amy franziu o cenho. Cara, você está fazendo tudo errado.
De longe, ela viu Will entrar atrás de Maria na fila e massagear o pescoço, vermelho como um tomate, fato que os cabelos ruivos não ajudavam a atenuar. Ele parecia um cara legal apesar da esquisitice, do tamanho de um jogador de basquete e do conhecimento profundo de videogames, mas não tinha noção de que se parecia mais com um cara pervertido do que com um homem apaixonado. Por que você não o escolheu para ser meu pai, mãe?
Antes de sair da Escócia, Amy vira inúmeras fotografias da mãe, de Damian e de um cara ruivo esquisitão que só poderia ser Will nas caixas que a mãe escondia nos armários. Por que entre os dois ela havia ficado com Damian, um idiota sem precedentes, e não com Will, que apesar das esquisitices parecia ser um cara bacana? Porque esse tipo de coisa não se escolhe, sua pentelha, teria dito a mãe, apertando seu nariz. Amy sorriu e mordeu o sanduíche.
Ela e Lara comeram em silêncio, falando ocasionalmente sobre um ou outro turista perdido e executivos engravatados que gritavam ao celular. Quando terminaram e se levantaram, Amy amassou o papel filme e o jogou no lixo enquanto voltavam ao carro. Lara se espreguiçou e sua camiseta do Mickey Mouse se ergueu o suficiente para Amy ver um pequeno borrão em seu baixo-ventre. Uma tatuagem. Ela sorriu e parou, fazendo Lara se virar em sua direção.
— Valeu mesmo, Lara.
— Não precisa agradecer, querida — respondeu ela, dando de ombros. — Foi só um sandu...
— Não. — Amy corou. — Valeu por tudo. Mesmo. Valeu por me deixar ficar na sua casa, pelas panquecas e pelos conselhos. Valeu.
— É isso o que as amigas fazem, não?
Lara passou um braço ao redor de seus ombros, puxando-os brevemente para si antes de soltá-los com um sorriso. Aquele meio abraço aqueceu o coração de Amy. Era quase como estar com sua mãe ali. Quase.
Caminharam juntas até o carro, sorrindo, e Amy agradeceu a qualquer força superior que estivesse lá em cima pela bondade de estranhos como Lara.
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[NA] → Queridos! Espero que estejam gostando da história até aqui! Passei só para dar um avisinho rápido: farei uma mudança no cronograma. Os dias de postagem serão, a partir de hoje, segundas/quartas/sextas. Adicionei mais um dia pra que vocês não esperem taaanto tempo assim, ok? Hahaha! Até sábado! :)
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