03. poder de persuasão
DAMIAN
A mãe de Damian era uma conselheira valiosa. Dona de uma força de vontade inabalável — e de uma floricultura na região dos subúrbios que era a menina de seus olhos —, a Sra. Harris criara os dois filhos, Damian e Grace, para que fossem boas pessoas. Pessoas com imaginação, como dizia o Sr. Harris, orgulhoso, ao olhar com carinho para a esposa. Os conselhos da Sra. Harris, quando seguidos, raramente traziam consequências desastrosas, e os filhos e o marido, melhor do que ninguém, sabiam disso.
Para ela, não havia nada no mundo que um belo arranjo de flores e uma soneca não curasse. Damian, assim como a mãe, acreditava que eram poucos os problemas que não se resolviam após uma boa noite de sono, e nunca encontrara um só conselho seu que não fosse certo. Entretanto, para toda regra havia uma exceção.
Ele passara a noite inteira daquele sábado dormindo e acordando, vendo o rosto de Diane e da garota maldita que dizia ser sua filha pairando sob o teto do quarto. As duas vagavam feito fantasmas diante dos olhos de Damian, que já não sabia diferenciar o pesadelo da realidade. Desistindo de dormir, ele jogara as cobertas longe e se levantara da cama no início da manhã com apenas uma pergunta atormentando sua cabeça. Há quanto tempo não pensava nela?
Damian conhecera Diane Thomas numa festa da faculdade. Todos enchiam a cara, dançavam ou se agarravam pelos cantos daquela fraternidade apertada enquanto ele só procurava por um pouquinho de paz antes de ir embora. Damian se lembrava de vagar pelos corredores, de buscar por algum lugar onde ninguém gritasse, vomitasse ou estivesse transando, quando um moça loira, usando uma faixa colorida nos cabelos, empurrou-o para dentro de um quarto, trancando a porta e pedindo silêncio num sotaque engraçado.
Ele não se lembrava ao certo o porquê de se esconder — havia algo sobre uma aposta que Diane perdera para as amigas —, mas Damian se lembrava dos olhos castanhos dela, do nariz arrebitado, do sotaque de Edimburgo e da risada contagiante. O que era para durar alguns minutos, apenas o suficiente para que as amigas a esquecessem, durara a noite inteira.
Os dois conversaram até o sol surgir no horizonte, rindo das festinhas ridículas, dos professores metidos e dos colegas idiotas. Ela disse que cursava Artes, que adorava pintar e que Bob Marley era sua maior inspiração. Ele não se lembrava do que havia dito, mas sabia, tão logo a manhã chegara, que estava completamente apaixonado por Diane Thomas.
Os dois tinham 18 anos quando começaram a namorar, e agora, sentado de pijama no sofá da sala, naquele domingo sem graça, Damian calculou que não pensava nela há 15 anos. Com os braços caídos ao lado do corpo, ele mirou um ponto fixo na parede.
Era esquisito pensar que Diane estava morta, que não existia mais. Damian acreditara que o gênio ruim dela, de alguma forma, a protegeria da morte. Parece que eu estava errado.
E era mais esquisito ainda pensar que os dois tiveram uma filha. Uma filha que Diane fizera questão de esconder. Que ideia de merda foi essa, Diane? Mas Damian não encontrou a resposta. A campainha tocou e ele enrijeceu no sofá.
Era Lara. Só podia ser ela. A vizinha o forçaria a dar abrigo à menina satanista que tinha seus olhos azuis e o nariz arrebitado e a insolência de Diane. Lara diria que a responsabilidade era dele, que por ser o pai era sua obrigação ficar com a garota.
A campainha tocou outra vez. Damian cogitou ficar em silêncio e fingir que não havia ninguém em casa, mas desistiu da ideia, erguendo-se do sofá com os ombros baixos. Era melhor acabar com aquilo de uma vez por todas.
Porém, não foi Lara quem ele encontrou do outro lado da porta.
Will sorriu, segurando uma caixa de papelão velha nas mãos. Os óculos de aro grosso escorregavam por seu nariz reto. Damian sorriu, mesmo sem vontade, ao ver o rosto de fuinha do melhor amigo.
— Você não vai acreditar no que encontrei no porão da casa dos meus pais — disse ele, atravessando o apartamento e depositando a caixa em cima da mesa. — Você vai adorar!
Will deu uma de suas risadinhas animadas que nunca falhava em se parecer com o ronco esquisito de um pato engasgado e limpou os óculos na camisa xadrez que usava. Ele enfiou a cabeça ruiva na caixa de papelão, puxando de seu interior um Nintendo 64 azul empoeirado. O sorriso dele cresceu.
— Acho que se conectarmos na televisão ele ainda funciona. Só preciso encontrar a fonte e o cartucho do Donkey Kong para a diversão começar. — Will enfiou a cabeça na caixa, explorando seu interior como um Indiana Jones moderno. — E sinto muito por não ter aparecido ontem. Era aniversário da mamãe, então eu fiz o jantar, as garotas fizeram um bolo e papai tocou piano. Acabei dormindo por lá.
Dos quatro filhos dos Greene, Will era o único que ainda morava com os pais. Anna, Daisy e Sarah, suas irmãs, haviam há muito deixado a proteção do lar paterno. Anna, a mais velha, era até casada. O único que permanecia era Will. Apesar de ter um bom apartamento no centro da cidade, Will insistia em dividir suas noites entre o sofá de Damian e a casa dos pais. Damian desconfiava que o amigo não se mudava para o apartamento que tinha porque detestava ficar solitário, mas nunca mencionava o fato. Certas coisas eram melhores quando deixadas em silêncio.
Damian sorriu para as costas de Will, que continuava curvado sobre a caixa apesar de sua estatura de jogador de basquete. Ficaram em silêncio até Will se erguer com um sorriso no rosto.
— Encontrei vocês! — exclamou ele, puxando a fonte e o cartucho do jogo de dentro da caixa. Damian, que até então pensava em Diane, encarou Will como se não o visse. — Por que você não está feliz? Encontrei Donkey Kong...
— Eu preciso da sua ajuda — disse Damian. — E acho melhor você se sentar.
Damian resumiu o melhor que pôde a bomba que caíra sobre seu colo na noite de sexta; a briga com Irina, a garota adolescente que dizia ser sua filha e que precisava ir à Flórida ver a avó, a morte de Diane e em como ele passara o sábado trancafiado no apartamento, pensando no que fazer. Will, que era bom ouvinte, ficou em silêncio e prestou atenção em cada detalhe. Quando Damian terminou, a cabeça apoiada nas mãos, Will franziu as sobrancelhas e disse:
— Isso parece o roteiro de um filme francês ruim...
— Você me ajudou muito. Obrigado, William — resmungou Damian, afundando-se no sofá. Novamente, ficaram em silêncio. Com diversos sentimentos agitando-se no peito, ele se curvou para frente. — Como Diane não me contou? Caralho, não estávamos falando de uma planta. Era uma criança. Ela simplesmente deixou um bilhete grudado na porta do quarto e voltou para a Escócia. Como diabos eu ia saber?
Damian tremia porque não podia pegar o telefone e gritar nos ouvidos de Diane tudo o que tinha vontade, porque não podia pegar um avião e vê-la outra vez. Que ideia idiota foi essa de morrer, Diane?
Mesmo depois de 15 anos ele nutria tantos sentimentos confusos por ela, tanto nojo e amor, que se ela estivesse ali, no meio de sua sala, Damian teria beijado Diane em vez de torcer seu pescoço.
Como se lesse seus pensamentos, Will empurrou os óculos para cima. Olhando em sua direção de esguelha, o amigo disse:
— Vocês brigaram por causa daquela moça francesa...
— Como você tem coragem de reviver essa merda? — interrompeu Damian, levantando-se do sofá com o rosto vermelho. Will afastou o corpo, colando as costas à poltrona. — Diane inventou essa droga como pretexto para discutir. Você sabe como ela era, sempre com aquelas maneiras impulsivas, aquela fúria cega que via o que queria ver. Eu nunca a traí. Nunca.
Emma Vaulin era o nome da moça. Ele se lembrava dela batendo à porta do quarto dele e de Will, pedindo para tomar uma ducha porque a do banheiro que dividia com as colegas havia pifado. Damian estava tão atarantado com uma prova que deixara a garota entrar e fazer como bem entendesse. Quando Diane abrira a porta do quarto dele — sem bater, porque ela nunca batia em porta alguma —, vira-o deitado na cama, o rosto enfiado nos livros, e Emma Vaulin usando apenas uma toalha enrolada no corpo, saindo do banheiro.
Quando Damian tentara explicar, já no quarto de Diane, ela gritara que ele era um traidor filho da puta que merecia morrer empalado por um arpão e batera a porta com força em sua cara. Damian decidira esperar, conversar na manhã seguinte com mais calma, mas nunca mais se viram depois disso; Diane fizera as malas e pegara o primeiro voo de volta para a Escócia no dia seguinte.
Will ergueu os cílios avermelhados para Damian, suas bochechas pálidas coradas. Os dois se encararam antes de o som da campainha tomar o apartamento outra vez. Como o cervo que pressente a presença de um predador, Damian encarou a porta.
— São elas — sussurrou ele, a imagem de Lara e da garota tomando sua mente. Voltando-se para o amigo, disse: — Atenda e diga que não estou.
William Greene franziu o cenho, seu rosto de fuinha sardenta se contorcendo na mais sincera confusão ao dizer:
— Mas você estaria mentindo se fizesse isso.
— Pelo amor de Deus, cara. Nossa profissão é uma grande sucessão de mentiras — suplicou Damian. — Você não consegue fazer isso por mim?
Às vezes a ingenuidade do amigo o irritava. Will era o cara que não entendia as piadas ou o sarcasmo dos outros funcionários da agência, que franzia o cenho para os comentários maldosos e esperava por uma explicação séria e racional para as bobagens que saíam das bocas dos publicitários, designers e administradores, deixando a maioria deles numa saia-justa desgraçada. Todos o respeitavam por ser o diretor de redação, mas sabiam que contar piadas a ele era tão útil quanto procurar por uma cachoeira no meio do deserto do Saara.
A campainha tocou novamente, e um olhar penetrante de Damian foi o suficiente para Will se erguer da poltrona num solavanco. Ele abriu a porta, duro feito um robô, e disse:
— Não tem ninguém.
— Ah, oi. — Afundado no sofá, Damian ouviu a voz doce de Lara vir acompanhada por uma pequena risada amistosa. — Sou a vizinha aqui da frente. Podemos falar com o Sr. Harris?
Podemos. A garota. A garota estava com Lara. Por trás de Will, a vizinha ergueu o pescoço, tentando enxergar para dentro do apartamento. Damian abraçou uma almofada e afundou ainda mais no sofá.
— Eu sei que o Sr. Harris está aí — disse Lara. — Eu o vi.
— Isto é totalmente relativo — rebateu Will, possivelmente franzindo as sobrancelhas ruivas. — O que vemos é um produto da reflexão e da refração da luz nos objetos. O que você viu pode ser algo ou alguém que pode ou não ser Damian. Você vê aquilo que a luz lhe proporciona, logo, você vê aquilo que procura, se distanciando da realidade daquilo que você... vê.
Então um silêncio curto e uma risada assoprada. A risada da garota maldita era exatamente igual à risada debochada de Diane. Que raio de feitiçaria é essa?
Escondido entre as almofadas do sofá, Damian enterrou o rosto nas mãos e gemeu. Quando Will não queria mentir, ele confundia as pessoas com aqueles jogos de palavra que, querendo ou não, cumpriam sua função de atordoar o alvo. Deixando os ombros caírem, Damian se levantou do sofá.
— Abra a porta, Will — pediu ele. — Pelo amor de Deus.
Lara e a garota entraram em sua sala. Usando uma camiseta puída e jeans manchados de tinta, a vizinha olhava para o apartamento como se fosse uma intrusa ali. Damian, diferentemente dela, não tinha crianças e prezava por um mínimo de ordem em casa.
A aberração gótica permaneceu parada atrás de Lara, os braços cruzados com força. O estômago de Damian despencou ao ver a garota colocar uma mecha de cabelo para trás da orelha exatamente como Diane fazia. Ele não aguentaria aquilo por muito tempo.
Com a boca seca, decidiu ir direto ao assunto.
— O que há? — questionou Damian, retirando Lara da contemplação do papel de parede cinza-chumbo e das estantes bem organizadas. Como ninguém continuou, ele ergueu as sobrancelhas. — Algum... problema?
Lara sorriu de maneira maternal e foi para trás de Amy, repousando as mãos nos ombros ossudos da garota como que para apoiá-la. O pentagrama invertido brilhou na camiseta preta da pequena adoradora de Satanás, que permaneceu de braços cruzados. Sorrindo, Lara disse:
— Amy quis vir.
Damian encarou a garota, que levantou o maldito nariz arrebitado de Diane em sua direção. Mesmo àquela hora da manhã os olhos azuis dela estavam afundados em delineador e rímel tão negros quanto seus cabelos tingidos. Ele semicerrou os olhos.
— O que você quer, menina?
— De você? Nada — retorquiu ela. Damian ia retrucar, mas percebeu Lara apertar de leve os ombros da garota. Ele quase sorriu. Pelo menos alguém consegue conter essa sacrificadora mirim de virgens. Amy revirou os olhos. — Olha, cara, eu não quero nada de você, ok? Já deu para sacar que você é um bosta que não acredita em mim, mas você ainda é a porra do meu pai.
— Isso é o que você diz — disse ele. — Só acredito fazendo o exame.
Amy franziu os lábios e se calou. Damian trocou um olhar ligeiro com Will, mas de nada adiantou. O amigo, ele sabia, via Diane em cada palavra e gesto da garota, em cada palavrão e trejeito. Era impossível não ver.
Os olhos azuis de Amy, idênticos aos seus, não significavam nada para Damian. O nariz arrebitado, a boca suja e os modos dela, idênticos aos de Diane, só que com muito mais rímel, também não significavam nada para ele. Damian precisava de um exame de DNA antes de tomar qualquer decisão.
— Eu só quero que você me deixe na Flórida, cara — disse ela.
— Não vou ficar mais de vinte horas dentro um carro com você, menina — retrucou ele. — Tenho mais o que fazer da vida.
— É só uma carona, cara. — Os cantos da boca de Amy se franziram exatamente como os de Diane. Que diabo. — Não precisamos nunca mais olhar na cara um do outro depois disso.
Os dois se encararam. Ele não podia negar que a proposta da garota era tentadora. Deixá-la na Flórida e nunca mais ver aquele rosto, o rosto de Diane com olhos azuis tão parecidos com os seus, seria uma dádiva.
— Também não precisa ser assim... — começou Lara.
— Precisa sim — afirmou a garota, encarando-o. — Você não quer uma filha e eu não preciso de um pai. Me deixe na Flórida e eu juro que você nunca mais vai me ver.
— Ainda assim quero fazer o exame — disse ele, cruzando os braços. — Você não pode ser minha filha. Eu não sou o seu pai, e quero fazer a porcaria do exame para comprovar.
— Podemos procurar um laboratório na Flórida, se você faz tanta questão. — Ela deu de ombros. Damian semicerrou os olhos. Aquela garota maldita era tão desaforada quanto Diane. — E aí? Qual vai ser?
Damian cogitou. O que ela dizia era a mais pura verdade: ele não queria uma filha. Abominava crianças e detestava ainda mais adolescentes, criaturas presas no limbo existente entre a infância e a vida adulta e que pensavam ser indestrutíveis, eternos. Dou uma carona a ela, me livro do problema e volto para casa como se nada disso tivesse acontecido.
Além de tempo, o que mais perderia naquela viagem? A garota não era sua filha, e se fosse, Damian não precisaria ficar com ela. Poderia deixá-la na Flórida com a avó e pagar uma gorda pensão para se livrar do problema. A situação estaria sob controle e, na pior das hipóteses, voltaria para casa com uma filha morando na Flórida, bem longe.
Damian quase sorriu, mas se conteve a tempo. Levar a garota e voltar. Posso fazer isso.
— Amanhã bem cedo — disse ele, erguendo o dedo indicador. — Se você não estiver na calçada no horário em que eu mandar, juro que desisto dessa ideia imbecil.
— Vou arrumar minhas coisas — disse ela, sem expressão.
Assim que a garota sumiu pela porta — sem agradecer pelo imenso sacrifício que ele fazia por ela —, Damian se atirou no sofá. Como era possível que numa bela noite de sexta-feira sua vida virasse toda aquela merda de uma hora para outra?
Lara pigarreou. Ele ergueu a cabeça.
— Eu... podemos conversar em... em particular? — Lara mexia na medalhinha que trazia no pescoço. Damian percebeu que Will ainda segurava a porta, encarando o caminho pelo o qual Amy passara, e deu de ombros. Lara apertou as mãos umas nas outras e respirou fundo, sentando-se no sofá com as costas eretas. — Eu serei direta. Se você vai levar Amy, poderia nos dar uma carona também?
Damian não teve tempo de se refazer do choque que a pergunta causara em seu cérebro. Lara, encontrando em seu silêncio uma negativa, desatou a falar com um sotaque italiano mais acentuado do que o normal sobre um marido motorista que ganhava a vida na Flórida, sobre a falta de um pai na vida das meninas, sobre a falta de um marido em casa, do amor que nutriam um pelo o outro e outras coisas melosas do gênero. As palavras deixavam a bela boca desenhada de Lara numa velocidade alucinante. Ela gesticulava, apertava a medalhinha no pescoço, arregalava os olhos verdes e falava como uma maldita gralha.
— ...parecer estranho porque não nos conhecemos direito, mas você sabe que sou ilegal e que não tenho dinheiro para comprar as passagens. Como vocês já estão indo para a Flórida, seria bom poder...
Com a cabeça latejando, Damian fechou os olhos e ergueu uma das mãos. Lara se calou. Quando foi que eu virei a porra da Madre Teresa de Calcutá? Os olhos da vizinha o encararam de volta, seu cenho franzido de angústia. No silêncio daquele momento, Damian percebeu que manchinhas castanhas salpicavam as íris verdes de Lara.
— Olha, Lara, eu...
Ela tomou as mãos dele nas suas, calando as palavras de Damian. Toda aquela proximidade tão, tão, tão italiana era esquisita para ele, mas o calor dos dedos de Lara foram estranhamente bem-vindos naquele momento. Uma brisa quente agitou as cortinas, trazendo o cheiro da vizinha às narinas de Damian.
Ela tinha um cheiro agradável de biscoitos recém-assados e massinha de modelar, e tudo isso, aliado ao sorriso maternal que ela trazia no rosto, atordoou Damian.
— Eu sei que você é uma... como se diz? Uma... uma brava persona — disse ela, apertando seus dedos. — Lá no fundo você é bom, Damian. Posso ver isso. Odeio ter de pedir favores, mas...
Uma batida rápida na porta engoliu as palavras de Lara. Will, ainda na função de porteiro do apartamento, girou a maçaneta. Pelo olhar vidrado do amigo e sua vermelhidão, Damian sabia que ele só poderia estar em frente a uma pessoa.
Maria, a irmã mais nova de Lara, atravessou o batente mascando chiclete e usando um short jeans rasgado que deixava suas pernas bronzeadas à mostra. Will fechou a porta, seguindo-a pela sala e ficando distante apenas alguns passos, como se quisesse simplesmente existir em sua presença.
Damian nunca entendera a fascinação que Maria exercia sobre Will, que apesar de nunca ter conversado com ela, fazia de tudo para vê-la feliz há três anos. Ele enfiava cupons da Casa do Waffle por baixo da porta delas, enviava por engano a revista preferida de Maria pelo correio e forçara Damian a contratá-la como auxiliar no balcão de cópias da agência.
E o pior de tudo, pensou Damian, observando o amigo estaqueado atrás de Maria como um maldito papagaio de pirata, é que ele nunca a chamou para sair.
Como se a irmã fosse o prenúncio de uma desgraça, Lara se levantou do sofá.
— Algum problema com as meninas?
— Relaxa. Elas estão ok. — Ela fez um gesto displicente com a mão. Virando-se para ele, Maria perguntou: — E aí, vizinho, a Lara já falou com você?
Ela tinha as mãos posicionadas na cintura e as sobrancelhas erguidas. O sotaque de Maria era mais suave do que o de Lara, mas ainda assim se fazia presente, escondido sob uma camada de gírias e a postura de quem não leva desaforo para casa. Maria era alguns centímetros mais baixa do que a irmã mais velha, mas não menos ameaçadora.
— Estávamos falando sobre isso, Mimi — disse Lara, fechando a cara.
Então ela desatou a falar em italiano com a irmã mais nova, não parecendo muito feliz com a interrupção. Para entender o que se passava, Damian buscou auxílio num olhar para Will, que compreendia italiano tanto quanto um nativo, mas foi inútil. A atenção do amigo estava fixa em Maria, nas alcinhas de sua blusa que não ficavam no lugar e no coque selvagem que seus cabelos negros formavam. Porra, agora não é hora para isso, William.
— Relaxa, Lara — retrucou a moça, em inglês. — Elas estão com Amy. Só vim para ter certeza de que você falaria sobre aquilo com Damian.
— Aquilo...? — perguntou ele.
— Estamos resolvendo isso, Maria — disse Lara, resoluta. — Tenha apenas um pouco de paci...
— Lara quer uma carona até a Flórida para as meninas verem Gérard — disse Maria, revirando os olhos e cruzando os braços. Lara fulminou a irmã mais nova com os olhos. Voltando-se para Damian, ela completou: — O crápula do meu cunhado me deve uma grana alta, e a Lara não vai cobrar porque ela é mole pra caralho quando o assunto é dinheiro. Mas eu não. Quero ir junto para receber a minha grana.
Damian piscou, as palavras de Maria adquiriram sentido aos poucos. Carona para a Flórida. Crápula do meu cunhado. Quero ir junto para receber minha grana. Lara corou, baixando a cabeça e descansando as mãos na cintura. Os olhos castanhos de Maria o pressionavam por uma resposta, mas Damian não fazia ideia do que dizer. Abobalhado, ele perguntou:
— Oi?
— Cara, na boa — disse Maria, voltando seu olhar acusatório para a irmã mais velha. — Você tem vergonha de pedir o dinheiro que Gérard, como pai, deveria dar às meninas. Se eu não for, nunca mais vou ver a cor dessa grana!
— Eu vou cobrar, Maria! Que coisa! — reclamou Lara, o rosto pegando fogo. — Você só precisa ter paci...
— Paciência? Qual é! Você nunca vai cobrar a minha grana se eu não for junto. Você sabe que precisamos pra caralho de dinheiro, mas ignora a existência do stronzo incompetente que é o seu marido!
— Não fale assim dele! Também não é fácil se manter sozinho na Fló...
— Porca vacca, Lara! — Maria ralhou. — Fácil mesmo é você se desdobrar em dois empregos miseráveis pra gente viver com quinhentos paus por mês!
Lara retrucou, mas as palavras não chegavam mais aos ouvidos de Damian. As duas batiam boca em sua sala de estar, que mais parecia um daqueles programas populares onde as famílias iam lavar a roupa suja na televisão. Quando foi que a minha vida virou a porra do Show do Dr. Bill? Enquanto as duas discutiam, alternando entre o italiano e o inglês numa velocidade alucinante, Damian cerrou os punhos e gritou:
— Chega!
O silêncio inundou o apartamento. Damian queria estrangular as duas, então manteve os olhos cerrados até que a vontade passasse.
Sua vida entrara em franca derrocada desde a sexta-feira, e ele não tinha mais paciência para gritos, pedidos e recriminações. Irina queria atitudes adultas, a garota maldita queria ir à Flórida, Lara queria uma carona e Maria queria dinheiro. Todas elas queriam algo, e ele, que só queria paz e silêncio, tinha de ouvir e agir de acordo com as vontades de todas aquelas pessoas. Meu Deus, eu vou entrar em colapso.
— Sentimos muito — disse Lara, a voz doce abrindo seus olhos. As bochechas vermelhas dela o deixaram sem graça. — Não queríamos causar problemas, Sr. Harris, mas...
— Pare com essa palhaçada de me chamar de Sr. Harris — retrucou ele. — Eu levo você e as crianças, Lara, e levaria você, Maria — continuou ele, voltando-se para a irmã da vizinha, que o encarava de braços cruzados —, mas não tenho espaço no meu carro. Já estamos em cinco pessoas.
— Minha mãe tem uma minivan de sete lugares que ela usa para levar as escoteiras para passear e vender biscoitos. Podemos ir todos juntos à Flórida.
Damian virou a cabeça lentamente para Will. Como sempre, havia se esquecido de que o amigo estava ali, observando a cena que se desenrolava como uma sombra. Damian encarou Will, que sorriu.
Uma minivan. Uma viagem de mais de vinte horas numa minivan que não possuía nem metade da potência de seu carro. Controlando o impulso de quebrar o longo pescoço de Will, Damian perguntou:
— Uma minivan?
— Isso. Uma Toyota Verso com multimídia touch-screen e sistema integrado de localização global que informa as rotas mais acessíveis e encontra locais de estacionamento e postos de gasolina mais baratos — respondeu Will, rígido debaixo do olhar confuso de Maria. Sem graça, ele se virou para Lara. — Isso sem falar da segurança do carro e da versatilidade dos assentos.
Todos ficaram em silêncio. Damian fechou a cara.
— Você está sendo pago para fazer essa merda? — retrucou ele. Antes que o amigo pudesse responder, Damian grunhiu. — Sem chance. Não vou dirigir uma minivan até a Flórida. Pode esquecer. Sinto muito, Maria, mas...
— Eu deixo você ficar com meu Nintendo 64.
A voz controlada de Will e seu semblante pétreo calaram Damian. Nenhum músculo de seu rosto rosado se moveu, e ele soube que o amigo, que amava videogames mais do que tudo, falava sério. Will sempre falava sério.
Os dois se avaliaram, e como Will não manifestou arrependimento, Damian decidiu barganhar. No fundo, ele sabia que Will só estava oferecendo a minivan para que Maria pudesse ir junto, para que ele pudesse viajar com ela. Damian encarou o amigo e perguntou:
— Com todos os cartuchos que eu quiser?
Will amava aquele videogame desde que dividiram um quarto na faculdade. Quando estudavam juntos, Will pegara trabalhos de meio período só para comprar os cartuchos, para escavar as antiguidades da Nintendo em qualquer lojinha de gibi e leilão da internet. Era jogo baixo, mas Damian não ligava. Queria ver até onde Will seria capaz de ir por Maria.
Ele não aceitaria. Até aquilo era demais para Will.
O amigo comprimiu os lábios exatamente como Irina fazia quando Damian sugeria para que transassem no sofá e balançou a cabeça, anuindo de maneira contrariada.
Além de deixar a garota com a avó, Damian conseguiria o Nintendo 64 de Will com todos os cartuchos que quisesse. O videogame ficaria lindo em sua sala de estar. Talvez aquela viagem de merda não seria tão ruim assim, afinal.
Sorrindo, ele assentiu para Lara e Maria, enfiando as mãos nos bolsos.
— Estejam prontos amanhã bem cedo. Flórida, aí vamos nós.
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