02. contato pós-desastre

AMY

Amy estava certa de duas coisas quando deixara a Escócia: a primeira era que atravessar a fronteira dos Estados Unidos pelo Canadá seria uma grande e absoluta merda. A segunda, e muito mais assustadora, era que precisava de um pai que não conhecia para ajudá-la a cruzar o país.

Por mais incrível que parecesse, a parte da fronteira não fora difícil. A pior parte, de longe, fora pisar numa cidade estranha, sem conhecer ninguém e sem ter onde comer ou dormir. Que Deus me ajude, foi tudo o que Amy pensou quando chegou a Nova York com um nome e um endereço copiados da internet, procurando por um cara que não a queria como filha. De certa forma, o apelo divino ajudou. Não exatamente da maneira como ela esperava, mas já era um começo.

Parada no corredor de Lara, Amy sustentou o olhar apavorado dele com um nó na garganta. Damian era um homem alto, de ombros largos, rosto quadrado como os daqueles bonecos de ação que dão errado na hora da fabricação, cabelos castanhos eriçados de um lado e olhos azuis profundos.

Que merda, pensou ela, avaliando aquele rosto mal barbeado e lembrando-se do bêbado miserável que encontrara noite passada. Tenho os olhos desse filho da puta.

— De onde você conhece Diane? — perguntou ele de um fôlego só.

— Acho melhor eu deixar vocês... — começou Lara, saindo pelo canto.

— Não. — Ele ergueu a mão direita, os olhos arregalados. Amy trincou a mandíbula. — Não quero ficar sozinho com essa... essa coisa. Fique aqui antes que eu pule no pescoço dela.

A garota fechou a cara para Damian e, por um breve momento, sentiu raiva da mãe por ter escolhido aquele gorila imbecil para ser pai. Nas raras vezes em que o assunto surgira entre elas, a mãe sempre se referira a Damian como O Americano Idiota e nada mais. Agora, mais do nunca, Amy entendia o que a mãe queria dizer.

— Vamos, menina — ordenou ele. — De onde você conhece Diane?

— Ela é minha mãe e você é meu pai.

Um silêncio medonho, embalado pelo anúncio da nova Barbie Veterinária na televisão, instalou-se no pequeno apartamento bagunçado de Lara. As risadinhas das meninas vieram do quarto, mas nenhum deles foi contagiado pela alegria das crianças. O olhar fixo de Damian sobre ela era similar ao do antropólogo do século XIX que vê, pela primeira vez, um aborígene. Ele piscou antes de explodir.

— Quem é você? — Damian avançou, derrubando algumas revistas de fofoca no chão. Amy não recuou. Por sorte, Lara se colocou entre eles. — Que merda você quer, menina?!

— Acho bom você se controlar — repreendeu Lara, erguendo as mãos. — Você não tem o direi...

— Como você deixou essa... essa desconhecida dormir na sua casa?! — Ele se afastou com um grunhido, passando a mão nos cabelos. — Porra, você nem sabe o que essa garota quer!

— A casa é minha. Coloco para dentro quem eu quiser e pelo o tempo que eu quiser.

Damian rosnou, e Amy quis abraçar Lara, aquele anjo disfarçado de ser humano. Se não fosse por seus olhos verdes bondosos e sorrisos maternais, ela teria passado a noite na rua e de barriga vazia.

Ele se sentou no sofá puído, o olhar perdido e a cabeça nas mãos. Uma estranha que não possuía nenhum laço com ela fora mais receptiva e amorosa do que seu pai, o cara programado biologicamente para amá-la. Essa relação vai ser uma maravilha, ela pensou, observando-o com desprezo.

Amy puxou a fotografia que trazia no bolso traseiro do jeans, atirando-a sobre a mesinha. Numa voz dura, perguntou:

— É você?

Era óbvio que era ele. Damian, assim como sua mãe, havia mudado muito pouco.

A fotografia era uma polaroid dos dois num gramado, com a luz do sol contra eles. O cara passava um dos braços sobre os ombros de uma moça loira de nariz arrebitado e olhos castanhos brincalhões, que usava macacão jeans e uma faixa colorida nos cabelos. Os dois sorriam para a câmera como se nada no mundo pudesse interromper aquela alegria boba de gente apaixonada.

Fora uma das poucas fotografias que Amy encontrara na caixa de lembranças da mãe e que mostrava os dois juntos. Desde a Escócia a garota se perguntara qual seria a reação do cara sorridente ao vê-la. Não tão boa quanto imaginei.

Damian olhava a fotografia com a boca aberta, parecendo o idiota que realmente era. Tremendo, ele devolveu o retrato à mesinha e apertou os olhos com a mão direita. Amy cruzou os braços. A verdade é que havia odiado o cara desde que o vira bêbado na noite anterior, sendo grosseiro e fedendo a cerveja e uísque. Ela havia atravessado um oceano e ultrapassado uma fronteira para descobrir que o pai, realmente, não passava de um Americano Idiota. Consumida por aquele silêncio e pelos anúncios de brinquedo na televisão, Amy disse:

— Minha mãe engravidou na faculdade e você não quis.

Ele ergueu o rosto, suas sobrancelhas castanhas se unindo de uma maneira engraçada. Lara arregalou os olhos, cobrindo a boca com uma das mãos. O clima pesou num estalar de dedos.

A mãe nunca dissera aquilo com todas as letras, mas Amy não era burra. O mundo, aparentemente, era assim; mulheres engravidavam e os caras fugiam da responsabilidade como o Conde Drácula fugia da sopa de alho. Não era preciso entender física quântica para saber o que havia rolado. Damian engravidara a estudante escocesa e não quisera a criança. Simples e rápido.

Amy cruzou os braços, cravando as unhas pintadas de preto nas palmas das mãos.

— Como é que... — começou Damian com a expressão atormentada. — Sua... Diane foi embora antes que eu pudesse... ela voltou para a Escócia de uma hora para outra, como é que eu ia saber? Como você chegou até aqui e me... me achou?

Amy semicerrou os olhos. Ele estava abobalhado, e tudo o que ela não queria era consolar o imbecil que a recebera com mil pedras na mão sem ao menos conhecê-la. O cara que, sabendo ou não, deixara sua mãe grávida e sozinha.

Amy trincou a mandíbula e preferiu ir direto ao assunto. Estava ali por um objetivo e corria contra o tempo para atingi-lo. A supresa do idiota poderia esperar.

— Preciso de ajuda para ir à Flórida ver minha avó. — Um calafrio percorreu seu corpo ao perceber os olhos azuis dele, tão iguais aos seus, piscarem. — Preciso que ela assine uma... uns documentos para mim.

— E o que você quer que eu faça? — ele retrucou após um breve silêncio. — Quer que eu te carregue nas costas até lá?

— Preciso que você me leve.

Damian riu e lançou um olhar incrédulo a Lara, que esfregava a medalhinha no pescoço e tinha a expressão preocupada. Amy não sorriu. Um novo episódio de Bob Esponja começou antes que Damian entendesse que ela não estava brincando. Quem dera eu estivesse, cara.

— Não vou fazer nada antes de realizarmos o teste de DNA, menina — disse ele. — Posso pagar a porcaria da passagem de avião para a Flórida, mas mais do que isso, pode esquecer.

Se Amy tivesse tempo, se estivesse na cidade à lazer, procurando pelo pai para saciar uma curiosidade antiga, teria esperado pelo exame de bom grado. O problema era que Amy não tinha tempo. Cada segundo fora da estrada era um segundo perdido, um segundo que se esvaía por entre seus dedos. Tão calmamente quanto conseguiu, disse:

— Não posso viajar de avião. Entrei no país pelo Canadá.

Outro silêncio cresceu. Damian franziu tanto o cenho que Amy pensou que seu rosto quadrado de boneco de ação fosse virar do avesso como um daqueles Pikachus japoneses que se transformam em Pokébolas e vice-versa. Abobalhado, ele perguntou:

— Oi?

— Peguei um avião de Edimburgo para o Canadá, e de lá... — Amy fez uma pausa e cruzou os braços. Ela e a mãe tinham aquela viagem marcada para Toronto há meses. A única diferença foi o objetivo final. Amy adotou a atitude blasé. — O que importa? Preciso ir de carro até a Flórida porque, tecnicamente, sou imigrante ilegal.

Damian Harris, seu pai, ergueu-se do sofá. Ela não recuou, levantando o queixo para ele. Trocaram um olhar pesado antes de o cara estender a mão. Amy franziu o nariz.

— Me dê o telefone da sua mãe, garota. Vou ligar para Diane e acabar agora mesmo com essa piada.

Amy teria rido, mas ela atravessara um oceano e uma fronteira para estar ali. As piadas perdiam a graça depois de um tempo, depois de tantas milhas vencidas. Encarando o fundo dos olhos azuis de Damian com nada além de desprezo, Amy disse:

— Minha mãe está morta, cara.

Damian manteve a mão estendida, mas sua expressão era abobalhada, similar à de quem recebe um tapa na orelha. Lara parou de esfregar a medalhinha.

Outro episódio de Bob Esponja terminou quando a porta foi escancarada. Os três se viraram. Uma moça com cara de ressaca e forte semelhança com Lara sorriu preguiçosamente, jogando as chaves num cestinho ao lado da porta.

— Que noite, sorella! — A recém-chegada riu. Seus olhos castanhos alternaram entre Amy e o cara. — Ei, eu não sabia que você estava com visitas. Bom-dia. Tudo certo depois de ontem, vizinho?

Nenhum deles respondeu. A moça, que tinha os cabelos presos num coque frouxo e usava uma blusa negra, repleta de lantejoulas, riu. Sua maquiagem estava um pouquinho borrada, mas nada apagou o sorriso brincalhão de seu rosto.

Amy deduziu, pelo o que ouvira Lara contar na noite passada, que aquela deveria ser Maria, sua irmã mais nova. Ela ajudara Lara a arrastar o cara para dentro do apartamento ontem à noite, antes de sair para uma festa qualquer no centro da cidade. Ainda na porta, Maria tirou os saltos e se espreguiçou.

— Vou tomar uma ducha e dormir um pouquinho, ok, Lara? — Já no corredor, Maria se voltou. A expressão brincalhona dela encheu tudo de alegria. — E melhorem essas caras! Parece que alguém morreu aqui, galera.

Assim que Maria se fechou no banheiro, cantarolando uma música italiana, Damian saiu, batendo a porta da frente. Parada no centro da sala de Lara, ouvindo a televisão rugir novamente o anúncio da Barbie Veterinária e a cantoria de Maria encher o apartamento, Amy amaldiçoou a ideia idiota de cruzar o oceano para vir atrás de um cara que não se importava nem um pouquinho. E o tempo está passando, pensou ela. Você precisa ir à Flórida.

A mão quente de Lara pressionou seu ombro com carinho. Amy levantou a cabeça, encontrando o sorriso bondoso e os olhos verdes com manchinhas castanhas da mulher que, até agora, agira como seu anjo da guarda.

— Vamos lá — disse Lara, sorrindo como sua mãe teria feito. — Acho que você precisa das minhas panquecas mais do que nunca, querida.

Amy sorriu. Um bom prato de panquecas não resolveria nada, mas já era um começo.

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