IX

❥ CAPÍTULO 9

Existem dois tipos de pessoas más: aquelas que deixam bem evidentes que já são ruins, sem nenhum traço de piedade, e aquelas que se escondem por trás da máscara de bom cidadão, que se esforçam em fingir que são uma pessoa boa ao invés de simplesmente ser.

Confiar na pessoa que não esconde que é má é mais fácil, porque você sabe que ela não é boa e te deixa mais preparado para o que quer que seja. Agora a que finge ser boa te pega desprevenido, pode te apunhalar pelas costas, na frente dos outros ser a melhor pessoa do mundo, mas ao ficarem sozinhos é o seu maior pesadelo. É mais difícil, pois ninguém acreditaria que uma pessoa tão boa faria algo tão ruim para alguém.

Eu aprendi, no meu curto tempo de vida, que independente da situação que esteja, não pode mostrar sua invulnerabilidade e nem seus pontos fracos. Que não é em todo mundo que se pode confiar para contar segredos, e que nunca deve ficar desatento com alguém que não conhece o suficiente.

Aprendi tudo isso após ser completamente apunhalado pelas costas e decepcionado pela pessoa que eu já jurei que amava. Meu próprio sangue.

A pessoa que deveria me proteger de tudo e todos foi a que mais me machucou, não só a mim, mas também a única mulher que eu já amei na minha vida.

A culpa não é completamente dela, mas meus pais foram as pessoas que mais me destruíram nessa vida, então é meio irônico o fato de eu ainda continuar fazendo a vontade do meu progenitor e visitando ele quando me chama.

— Você demorou. — Francis anuncia quando me vê passando pela porta de entrada da casa velha.

— Eu tenho minha própria vida pra cuidar. — Falo, jogando uma sacola com alguns remédios ao seu lado no sofá. — E a universidade não é tão perto daqui.

— E esses remédios? — Meu pai coloca a garrafa de cerveja, que estava segurando antes, no chão aos seus pés e abre a sacola observando o conteúdo dentro.

— São remédios pra dor de cabeça e pra você conseguir dormir, já que com a quantidade de álcool que você consome nem deve tá raciocinando direito. — Me encosto na parede perto da porta, me mantendo longe dele.

Não deveria nem sequer pensar no seu bem estar, não quando ele nem se importava comigo, mas não consigo deixar ele de lado. É o meu pai, e o por mais que eu o odeie por tudo que ele fez a mim e a minha mãe, Francis sempre me deu um teto para morar e comida para comer.

Tomou conta de mim de um jeito errado, muito errado, mas por algum motivo não consigo ver ninguém, nem ele, de algum jeito se sentindo mal. Ele é um fodido que arruinou a minha vida, e eu me odeio por ainda continuar me importando.

— O que você queria pra me chamar aqui? — Pergunto, querendo sair dessa maldita casa logo.

— Senta aqui. — Ele dá um tapa no sofá, dizendo para me sentar ao seu lado. — Quero conversar com você.

— Não vou sentar. — Nego. — Tô com pressa. Fala logo.

— Pra que tanta grosseria? Eu tô sendo educado. — Ele franze as sobrancelhas, os olhos escuros bem atentos em mim. Diferente de mim, seus cabelos são curtos e ralos, sua pele agora está pálida por conta da falta de contato com o sol e ele está com um cheiro horrível de cerveja. Constato que ele não toma banho há um tempo.

A única coisa que herdei de Francis foi o físico do seu corpo, pois meu rosto é muito parecido com o da minha mãe. E não sei se sou agradecido ou amaldiçoado por isso.

— Só fala o que você quer. — Respiro fundo, sem olhar nos seus olhos. — Eu desmarquei coisas importantes pra estar aqui agora.

— Soube que o time tá entrando nas nacionais. — Ele comenta, voltando a beber da cerveja, mas ainda sem tirar os olhos de mim. Somente afirmo com a cabeça. — Tá treinando bem?

Minha vontade é de sair por essa porta e nunca mais voltar aqui, sinto que se ficar aqui por muito tempo é capaz de eu enlouquecer junto com ele.

— Você me chamou aqui pra perguntar como tá indo o time?— Não deixo a minha irritação se esconder. — Isso é sério?

— Eu não posso mais me importar com o que meu filho anda fazendo? — Ele cruza os braços, se levantando do sofá. Arrumo minha postura, me desencostando da parede. Meu corpo fica em alerta automaticamente. — Eu tenho o direito de saber o que você faz, como pai.

— Não me chama de filho. — Balanço a cabeça. — Você não merece esse título de pai. E eu sou adulto, posso muito bem cuidar da minha vida sem sua supervisão.

— Você tá atrevido. — Ele ri, descontente.

— Eu só não sou a mesma criança de antes que deixava você fazer o que tinha vontade comigo. — Observo seus passos lentos caminhando até mim. — Eu nem sei porque continuo vindo aqui, mas saiba que se você acha que ainda pode mandar em mim de algum jeito tá muito enganado. Pode me ameaçar e tentar me assustar do jeito que quiser.

— Fala assim comigo de novo e você vai ver o quão ruim eu posso ser. — Francis segura minha mandíbula, me forçando a olhar em seus olhos. Consigo sentir seu hálito capaz de espantar uma onça bem de perto. Me seguro para não fazer careta.

Não me afeto. Já conheço bem esse seu lado ruim.

— Me toca de novo e eu te mando pra porra de um hospital. — Tiro sua mão de mim, me afastando dele.

— Tá me ameaçando?— Ele semicerra os olhos, passando a mão pela barba rala.

— Só tô avisando. — Falo entredentes, antes de passar por aquela porta e fechá-la atrás de mim com força.

Ele estragou a merda dos meus dias que estavam sendo razoavelmente bons.

— Eu ainda não terminei de falar com você. — Ele aparece na porta, furioso.

Vejo nos seus olhos a mesma fúria que aparecia quando eu era menor. Quando algo não saía do seu agrado, quando eu tirava notas baixas ou arrumava confusão na escola, e principalmente quando me saia mal em algum jogo. Basicamente qualquer coisa que eu fazia não era do seu agrado e era motivo para uma fúria fora do comum da parte dele e hematomas pelo meu corpo em consequência disso.

Ele me odeia por eu ser malditamente parecido com a minha mãe, e eu o odeio por estragar nossas vidas.

— Mas eu terminei. — Falo enquanto o olho com repulsa. — E eu espero que você vá pra casa do caralho e esqueça de mim, porque eu juro que tô quase jogando toda essa merda de respeito que você não tem e nunca teve por mim, pelo ar e te mandando pro inferno.

Ele sorri, um sorriso de lado que faz meus pelos se eriçarem.

— Foi assim que eu te criei. — Ele diz. Uno as sobrancelhas, olhando para ele com indignação. Me seguro o máximo para não ir até ele e desgraçar seu rosto. Fecho os punhos com força. — Para enfrentar seus demônios sem medo, e ser esse cara que não tem medo. Que tem raiva. Eu te criei pra ser homem, e você finalmente tá aprendendo a ser.

— Vai pro inferno. — Não espero ele falar mais nada, giro nos calcanhares e subo na minha moto rapidamente, com a respiração desregulada.

Saio dali em disparada, pilotando pelas ruas limpas e bem cuidadas. Com árvores bonitas e casas grandes e milionárias. Francis tem uma quantia enorme de dinheiro, herdou um império de hotéis de luxo espalhados pelo mundo. Ao contrário da minha mãe, ele nasceu em um berço de ouro e mesmo sendo rico pra caralho não deixa de fazer um inferno na vida das outras pessoas.

Depois que estou bem longe dali e de olhos curiosos, estaciono a moto de qualquer jeito em um estacionamento abandonado de uma antiga loja antes de causar um acidente e me encosto na parede, respirando fundo.

É sempre assim. Ele me chama, reclama bastante para mim e me menospreza para no fim agir como o pai do ano. E toda a vez eu volto mais fodido da cabeça.

O pior de tudo é que eu acabo indo sempre que ele me chama, porque meu coração idiota não aceita que o Francis é um merda que merece aprodecer sozinho e infeliz até o fim daquela vida miserável.

Hoje eu poderia estar estudando, tentando melhorar minhas notas e me esforçando para continuar no time, poderia ter ficado com Evie por um período de tempo ao invés de encontrar com meu pai. Apesar de tudo, é milhões de vezes melhor ficar com ela. Mesmo com suas falas nada agradáveis direcionadas a mim, ela consegue me arrancar risadas.

Eu só preciso de um pouco de calma.

E é o que eu resolvo procurar quando volto a moto, depois de me acalmar, e me conduzo até a universidade.

Não faz muito que eu vim de lá. Minhas aulas são durante a manhã e já que hoje não tivemos treino, pois o treinador dá um dia de descanso para o time e logo depois mata a todos com um treino pesado a semana inteira, eu fiquei relaxando durante a tarde antes de ir encontrar com Francis e arruinar meu dia.

Me encosto no batente do portão de entrada do auditório. Meus ouvidos são preenchidos com a melodia de Chandelier, da cantora Sia, olho para o palco e vejo uma figura feminina dançando ao som da música.

É uma dança contemporânea, que transmite qualquer que seja o sentimento que ela quer expressar. Reconheço Evie pelos fios ruivos presos em um coque no alto da cabeça.

Ela faz uma sequência de piruetas, saltos e movimentos que eu não conheço, mas observo até ela acabar a dança. Evie é boa dançando, não tem como negar, ela tem leveza e confiança. Além da impressionante flexibilidade.

Se ela não for selecionada na companhia da minha tia, eu vou duvidar do faro deles para reconhecer talentos.

— Impressionante. — Falo, quando vejo Evie parar a dança e respirar fundo. Minha voz ecoa como um eco pelo auditório.

Ela olha para mim, não parecendo muito surpresa, e vai até o canto do palco, pegando uma garrafa de água e bebendo.

Observo sua roupa. Um collant preto que se ajusta firme em seu corpo e uma saia que tem um tecido fino quase transparente da mesma cor da peça de cima.

— Tá fazendo o que aqui?— Ela pergunta, se sentando no chão. Dou de ombros, andando em direção ao palco.

— Tava andando por aí e te encontrei por acaso. — Me sento na beirada do palco, próximo a ela, olhando bem seu rosto corado.

— Você sempre me encontra por acaso. — Ela aponta após beber mais alguns goles da água, e fecha a garrafa.

— É o destino. — Sorrio, observando ela revirar os olhos.

Seu peito sobe e desce em uma respiração ofegante, que se acalma aos poucos, e seu rosto está levemente corado por conta do calor. O ar condicionado está ligado, trazendo um clima fresco para o ambiente, mas acredito que dançar como ela estava dançando deixa o corpo mais quente.

Evie respira fundo, jogando o corpo para trás e deitando no chão frio, esticando os braços ao seu lado. Franzo as sobrancelhas, olhando para ela.

— O que você tá fazendo?— Pergunto, sem tirar os olhos dela. — Vai dormir aqui? Sério, sua casa nem é tão longe.

— Me deixa respirar. — Ela não parece estar tão cansada assim, mas mesmo assim fica parada olhando para o teto em silêncio.

Resolvo fazer o mesmo que ela, me deitando ao seu lado e também abrindo os braços ao lado do meu corpo e olhando para o teto escuro. Respiro fundo, deixando meu corpo relaxar.

— Agora, o que você tá fazendo? — Evie pergunta.

— Nada. — Balanço a cabeça, antes de olhar para ela. — Só relaxando.

Evie olha para mim também, com uma sobrancelha arqueada. Os seus olhos azuis se fixam nos meus, me encarando profundamente.

— Por que você não vai pra casa? Tá tarde. — Ela diz, depois de alguns segundos em silêncio, sem deixar de me olhar.

— Digo o mesmo a você. — Dou um sorriso de lado. — Tá preocupada comigo?

— Eu não me preocuparia desse jeito com você nem se sua vida dependesse disso.

— Eu admiro sua sinceridade. — Admiro de verdade. Falar a verdade, mesmo que seja algo que eu não queira ouvir, é muito melhor do que uma mentira somente para me agradar no momento. A sinceridade para mim é uma das éticas que eu mais prezo.

— Acho que é melhor eu realmente ir pra casa. — Evie suspira, se levantando. Me sento, passando a mão no rosto.

Vejo ela soltando os cabelos do coque, que caem em cascata pelos seus ombros e costas, e logo em seguida retirando as sapatilhas dos seus pés e trocando por chinelos confortáveis. Evie pega sua bolsa e eu me levanto, a seguindo enquanto ela sai.

— Você é um pé no saco. — Ela faz uma careta quando me vê andando junto com ela. Dou uma risada.

— Vou te acompanhar até seu carro. Qual o problema?

— Por que você vai me acompanhar até meu carro?— Ela me olha, sem deixar de andar.

— É perigoso para uma moça andar sozinha, principalmente à noite. Sua mãe não te ensinou isso? — Ela dá uma risada sarcástica balançando a cabeça.

O campus não é perigoso e tem seguranças, mas sempre vai haver algum maluco por aí esperando qualquer brecha para atacar. Já ocorreram casos de assalto aqui dentro há alguns anos atrás, pelo que eu soube, todos durante a noite.

— Aprecio a generosidade. — Vejo um pequeno sorriso, quase imperceptível, se formando em seus lábios.

— Eu sou uma pessoa muito generosa. — Sorrio, dando de ombros.

Evie balança a cabeça, sem dizer nada, e depois de mais alguns passos paramos de andar ao chegarmos onde o carro estava.

— Acho que tenho que dizer obrigada por me acompanhar. — Ela diz, abrindo a porta do carro e colocando a bolsa lá dentro, parecendo bem mais humorada do que costuma ser comigo. — Te vejo amanhã pra estudar.

— Eu tô começando a gostar desses tempos sozinho com você. — Me aproximo um pouco mais dela, ao mesmo tempo que ela vai para tras e encosta as costas no carro. Evie cruza os braços.

— Para com isso, Ryan. — Ela balança a cabeça. — Nada vai acontecer entre a gente. Chegou a hora de desistir.

— Você acabou de insinuar isso, eu nunca disse o que queria. — Ando mais dois passos para frente, a olhando nos olhos. É impossível não acompanhar com o olhar quando ela passa a língua nos lábios, respirando fundo. — Só disse que tô começando a gostar. Você é engraçada, é divertido falar com você.

— Você se diverte me irritando. — Ela levanta as sobrancelhas, se desencostando do carro. Nos aproximamos, nossos corpos ficam muito próximos.

— Você fica fofa. — Dou um sorriso, não tirando o olhar de seu rosto perto de mim. É impagável ver seu semblante sério, tentando se mostrar irritada. — Não é minha culpa.

— Ryan...— Evie respira fundo. Levanto as sobrancelhas, esperando ela continuar. — Até amanhã.

Ela entra no carro rapidamente e fecha a porta logo em seguida. Pouso um antebraço na janela, olhando para ela.

— Toma cuidado na estrada. — Falo. Ela não olha para mim, mas concorda com a cabeça. — Até amanhã, Moranguinho.

— Esse apelido é ridículo. — Ela me olha com uma cara de entediada. Dou de ombros. — E digo o mesmo a você.

Sorrio de lado, me afastando do carro quando ela gira a chave na ignição e da partida, saindo em pouco tempo da minha visão.

Quando não tenho mais sinal de seu carro, dou a volta, indo em direção a minha moto para ir para casa e tomar um banho gelado e, pelo menos, tentar dormir.

Me sinto mais relaxado do que estava a algum tempo atrás.

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