IV

CAPÍTULO 4


— Eu juro que tô sentindo milhões de elefantes pisoteando minha cabeça agora. — Sarah resmunga, escondendo a cabeça nos braços, que estão jogados na mesa.

— Quem manda ir pra uma noitada no meio da semana e beber que nem uma alcoólatra?— Riley dá de ombros, os olhos focados no celular.

— A sua voz cansa minha beleza. — Minha amiga diz, levantando a cabeça e jogando os cabelos para trás dos ombros. — E a vida é muito curta pra desperdiçar tempo. Eu vou no máximo de festas que eu conseguir, aproveitar a juventude enquanto tenho tempo e transar até não aguentar mais.

Não consigo deixar de rir. Balanço a cabeça, negando e tomo um gole do meu suco enquanto a ouço falar sobre a noite maluca que ela teve.

Conheci Sarah por meio de Riley, há um ano atrás. Eles fazem o mesmo curso, mas apesar disso não é como se eles se dêem muito bem. Nos conhecemos nesse acaso e acabamos virando amigas, criando uma intimidade, que até então eu só tinha com Riley

Não é como se eles se odiassem, mas sempre jogam farpas ou são grossos um com outro. Eles não são tecnicamente amigos, mas apesar da implicância eu sei que se gostam.

— Você poderia deixar isso para os finais de semana e estudar quando tiver aula. — Balanço os ombros. — Se divertir o tempo inteiro não vai definir o seu futuro.

— Primeiro: eu sou uma das melhores alunas e sempre faço tudo. — Sarah começa, contando nos dedos. — Segundo: me divertir vai definir uma vida feliz e que eu vou lembrar quando tiver bem velhinha. E você, sua careta, devia tentar sair mais também.

— Eu tô muito bem no quente da minha casa, muito obrigada. — Dou um sorriso leve, levando um pouco do meu almoço à boca.  Mesmo não estando realmente ensaiando e dançando em algum lugar por agora, tenho que manter minha boa alimentação, então sempre costumo comer alimentos cheios de proteínas no almoço.

— Ficar em casa lendo um livro e ouvindo música é legal, mas às vezes também tem que mudar os hábitos. — Sarah diz.

— Você não tava com a cabeça explodindo, garota?— Riley finalmente se pronuncia, olhando para ela com as sobrancelhas franzidas. — Como fala tanto?

— Quando a conversa chegar em você… — A loira levanta a sobrancelha, olhando para ele com deboche. — A gente conversa. É uma conversa de mulheres.

— Não sei se você se lembra, quando eu te contei, mas eu já fui considerada uma mulher também. — Riley cruza os braços. Sarah o ignora, voltando a falar comigo.

Riley revira os olhos, voltando os olhos ao celular. Ele é um amor de pessoa, uma das melhores que eu conheci, mas se irrita fácil demais, e isso às vezes acaba prejudicando a forma como as pessoas se relacionam com ele.

Conheci Riley na escola, éramos pré-adolescentes, e tenho certeza que não teria passado da escola sem ele. Riley não era nem um pouco parecido com o que é hoje. Seus cabelos ainda eram longos, sua voz ainda afeminada e ele ainda lidava com os problemas femininos que toda mulher enfrenta.

Acompanhei desde o começo da sua transição, quando ele me contou como se identificava e sentia, sobre como queria mudar para um corpo que ele realmente se sentia bem. Acompanhei e apoiei quando ele contou aos pais, quando pediu para começar a tratá-lo pelos pronomes masculinos. 

Desde a sua voz ficando mais grave, o seu corpo mudando e como ele ficava feliz e vibrava aos sinais da sua identidade aparecendo aos poucos. Fico contente por ele ser o homem que é hoje e sempre quis ser, e aquece ainda mais meu coração quando ele diz que eu fui muito importante para todo esse processo.

Olho para meu celular que acende em cima da mesa, e verifico, vendo a notificação da chegada de uma nova mensagem de um número desconhecido. Abro a mesma e reviro os olhos ao ler o que está escrito.

"Oi, docinho. 
Não preciso de apresentações, você sabe quem eu sou. 
Te peço com gentileza que me encontre na biblioteca nesse momento."

O único que inventa apelidos a toda hora e que de repente começa a usar palavras formais em suas falas é Ryan, então não tenho dúvidas de que é ele.

Somente ignoro a mensagem, voltando a conversar com meus amigos, mas não demora muito para uma nova notificação chegar. 

Respiro fundo, pensando seriamente em não ler, mas minha curiosidade fala mais alto e eu abro a mensagem.

"Não me ignora, linda, juro que é algo que vai te interessar."

Não pergunto o que é pois parece que ele lê a minha mente ao mandar mais uma mensagem em seguida.

"Tem a ver com uma academia de balé, muito boa por sinal. Posso te dar uma ajudinha nisso."

Assim que eu termino de ler, a proposta se torna tentadora. Não sei como ele pode ajudar em algo, mas tudo o que eu quero nesse momento é pelo menos ter a chance de entrar em uma. Já estava em uma companhia há muitos anos, mas faz um tempo que me despedi de lá por conta da distância que estava da universidade e por não conseguir mais me encaixar lá.

Poderia simplesmente estudar balé na universidade, seria mais fácil, mas seria tudo diferente pois aqui eu tecnicamente ainda iria estar aprendendo e não participando de grandes espetáculos, mesmo sabendo dos benefícios. Já tenho experiência suficiente e a formação para entrar em uma companhia de balé de verdade.

Falo com Sarah e Riley, me despedindo deles. Me levanto da mesa e em seguida saio do refeitório, seguindo para a biblioteca que Ryan indicou.

Quando entro na mesma não vejo Ryan de primeira, mas sigo minha intuição e vou para o lugar onde o vi pela última vez quando estava na biblioteca, e com isso o acho. 

No segundo andar, em uma mesa mais afastada, com os olhos em um livro e sentado em uma cadeira que se inclina para trás, sendo sustentada somente pelo seu pé. Se eu não tivesse olhando bem não o teria visto, levando em conta as enormes prateleiras que quase cobrem minha visão. 

— Eu tô torcendo tanto pra você cair pra trás nessa cadeira. — Falo, quando me aproximo dele. Cruzo os braços e encosto na mesa, olhando para Ryan.

— Porque tão malvada?— Ele sorri, ainda com os olhos no livro que está lendo. — Eu não vou cair, linda, não se preocupa.

— Agora me diz, o que você quer?— Pergunto, me sentando na cadeira à sua frente. Ryan finalmente me olha, sentando do jeito certo na cadeira e fechando o livro.

— Eu tenho uma proposta. — Ele começa dizendo. Somente balanço a cabeça para ele continuar. — Vai ser uma troca de favores.

—  Eu tô ouvindo.

— Como você deve saber, a universidade tem algumas condições pra quem faz parte de um dos times daqui. — Ryan fala, cauteloso. — E uma delas é que as notas em todas as matérias do curso tem que estar na média, pelo menos. Então uma nota ruim em uma das matérias não é bem aceito.

— Vai direto pro final. — Suspiro, já tendo uma ideia da onde ele quer chegar.

— Tá bom. Eu preciso melhorar a minha nota em uma matéria se eu quiser continuar no time. — Ele explica. — Eles recomendaram um grupo de estudos, mas eu não consigo aprender com muita gente junta e não me concentro, então também tenho a opção de pedir ajuda a algum aluno que esteja a vontade para ajudar a estudar.

— Me deixa adivinhar… — Respiro fundo. — Você quer minha ajuda?

— Bingo. — Ele afirma.

— E sobre a tal companhia de balé?— Resolvo logo tocar no assunto, é por isso que estou aqui.

— Minha tia é dona de uma ótima companhia de dança. Você pode me ajudar estudando e eu arrumo uma vaga pra você fazer uma audição lá. — Ele dá de ombros, dizendo a proposta. — Nós dois saímos ganhando.

— Qual o nome?

Andersen Dance Academy. — Assim que ele diz uma luz se acende na minha cabeça e minha boca forma um O de surpresa, me surpreendo por não ter pensado nisso antes.

É claro. Ryan tem o mesmo sobrenome que uma das melhores bailarinas do século XX. O sobrenome igual poderia ser uma coincidência já que é comum, mas nunca nem passou na minha cabeça algo assim.

— Marie Andersen é sua tia? 

— Sim. — Ele assente, com um sorriso de lado. — Legal, né?

Definitivamente, muito legal. Marie Andersen sempre foi uma das minhas maiores inspirações na dança, ela é simplesmente incrível. Está aposentada há alguns anos, mas criou uma academia de dança e agora além de dar aulas, também comanda tudo por lá. Mesmo assim, nunca deixou de ser uma das melhores.

Já pensei em tentar entrar lá, mas fiquei com medo de ficar nervosa demais por conta de sua presença e dar uma de fã maluca, ou simplesmente não conseguir entrar por insegurança. Mas estou disposta a tentar, e se eu conseguir vai ser uma das minhas maiores realizações pessoais.

— Você sabe que se eu conseguir entrar, eu mal vou ter tempo de fazer alguma coisa, pouco do meu tempo vai ser pra estudar. — Balanço a cabeça. — Se eu começar a te ajudar nem sempre eu vou ter tempo.

— Eu faço parte do time de futebol, estamos em época de campeonato, eu também vou ficar bem ocupado. — Ryan diz. — A gente cria uma agenda, com dias que nós dois estamos livres, não precisa ser todos os dias, só o suficiente pra alguma coisa entrar na minha cabeça.

Jogo a cabeça para trás, fechando os olhos por alguns instantes e respiro fundo, tomando uma decisão.

— Por que você quer a minha ajuda e não a de alguém que realmente se voluntariou pra ajudar?

— Apesar de tudo eu não me dou bem com desconhecidos, ia ser difícil aprender algo com alguém que nunca falei. — Ele dá de ombros, evitando meu olhar. — E independente de qualquer coisa eu te conheço, é muito mais fácil. Além do que, é uma forma de compensar o estrago no seu notebook, já que eu destruí sua inscrição.

— Tá bom. — Suspiro, balançando a cabeça. — Mas você não pode ficar com esses joguinhos de provocações, se não eu juro que desisto de tudo.

— Não prometo nada. — Ryan sorri. Reviro os olhos, me levantando. — Falo com minha tia hoje, aviso sobre amanhã.

É impossível não me sentir agradecida por isso. Ele pode ter feito o que fez antes, mas isso foi legal da parte dele, só não admito em voz alta, foi ele quem causou isso. E eu também estou o ajudando.

— Tá. — Antes de me virar para sair, olho para seu livro em cima da mesa e em seguida volto a olhar para Ryan. Sorrio. — O verdadeiro vilão é o babaca loiro, e ela morre.

— Que?— Ele arregala os olhos, me olhando com raiva.

— Aproveita a leitura. — Pisco um olho, sorrindo. Rapidamente me viro e saio dali, tentando não rir de sua reação.

Já li e reli duas vezes a saga de livros que ele está lendo, não é uma verdade completa, mas tecnicamente não é uma mentira o que eu contei. A protagonista do livro que ele lê realmente morre em um momento do livro, só não precisei citar o fato de que ela volta.

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