X - A Tarde

22/02/1888 - Quarta-feira


-Vai fazer o que mais tarde?

- Hm, não sei bem. Talvez eu passe a tarde toda na biblioteca, ou termine de organizar algumas coisas no meu quarto... - Disse retirando a água quente do forno e a colocando no bule de chá. - e você, Mey-Rin?

- Eu tenho que terminar de encerar o chão do salão e varrer a adega inteirinha. - Ela resmungou. - Ah! Agora eu queria ter adiantado tudo ontem!

Trabalho dado é trabalho feito e por isso, ontem passei manhã, tarde e noite adiantando todo o serviço que me foi dado e o que não tinha ainda. Roupas lavadas e passadas; lençóis de cama trocados; banheiros lavados; talheres brilhando; janelas impecavelmente limpas; jardim podado; janta, almoço e desjejum feitos. Levou um bom tempo para terminar tudo, já que em paralelo eu tive de ajudar os outros três patetas que trabalham comigo várias, várias e várias vezes.

Tudo isso para que tivesse o dia todo livre para poder continuar com as "pesquisas" que comecei no sábado. Foi cansativo e irritante, mas valeu a pena.

Agora que o trabalho braçal terminou, o investigativo teria que começar.

Eu poderia reunir mais uma vez todos os jornais, arquivos e evidências que coletei, procurar por algo novo, algo que não tenha notado antes. Eu estou chegando em algum lugar, tenho certeza disso!

Além disso, faz dias que Sebastian não me perturba ou me persegue, estou tendo todo o sossego que preciso; o Conde continua satisfeito com meu trabalho, e aparentemente, confiando um pouco mais em mim.

Sem contar que agora posso começar a procurar por algum lugar para guardar as minhas pesquisas. Ficar escondendo tudo no meio das roupas me soa burrice.

Tenho a sensação de que hoje pode ser um ótimo dia!

- Cuidado, está quente.

Ergui o bule a Mey-Rin. Estávamos preparando "Assam Tea".

- S-sim, claro... - Ela pegou o bule cuidadosamente, sem deixá-lo cair. - ah, ufa! Eu tenho tanto medo de pegar coisas quentes!

- Você tem andado mais cuidadosa, percebeu?

Era estranho como Mey-Rin não quebrava nada desde quinta passada. Ela andava estranhamente cuidadosa, não que eu esteja reclamando, muito pelo contrário. Não limpar suas besteiras e acidentes definitivamente poupava muito do meu tempo.

Uma evolução. Quem sabe ela realmente tenha jeito?

- AMELIA! PRECISO FALAR COM...

- AHHH! - Mey-Rin deu um pulo! - JESUS!

Ela se assustou quando Bard surgiu ao seu lado tão de repente! Nenhum de nós pode evitar o susto, já que ele surgiu do nada! Ela ficou nervosa tentou andar para trás, rápido!

- A-AHHH! UOU! AMELIA!

Ela destrambelhou para o lado, se desequilibrou e tropeçou nos próprios cadarços, os mesmos que eu pedi que amarrasse pelo menos umas mil vezes...

CRACK!

Ela caiu e deixou que o bule voasse de suas mãos!

Ele foi lançado à parede e se quebrou, enquanto isso Mey-Rin estava com seu rosto grudado no chão.

É, ela não tem jeito, nenhum deles tem. Não sei porque criei esperanças em um dos três patetas.

- Ai! Merda! Merda - Bard correu até Mey-Rin e se jogou no chão, segurando os ombros dela. - Mey-Rin! Mey-Rin, levanta! Levanta aí!

- P-por que, por que Bard...

- O que? "Por que" o que?!

Ele parecia bem preocupado. Óbvio!

- Por que DIABOS VOCÊ GRITOU?!

SLAP!

Ela deu um forte tapa no braço dele. E, em questão de segundos, ele já não estava mais preocupadíssimo.

- AI! AH, então você só está fazendo drama?! Achei que você estivesse desmaiada!

- Drama?! Olha os meus óculos! O que eu vou fazer agora?!

Seus óculos estavam rachados, em alguns pontos já faltavam pedaços. É, talvez ela fique um tempo enxergando mal.

- Desculpa, tá?! Eu procurei a Amelia a manhã toda! Não sabia onde ela se enfiou, aí gritei!

- Por que você gritou se ela estava bem aqui, NA NOSSA FRENTE?! Agora olha só o que aconteceu! Um dos bules preferidos do Jovem Mestre quebrou e a parede ficou manchada! Eu vou ter que contar pro senhor Sebastian, ele vai ficar decepcionadíssimo!

- Lá vem você com essa coisa de "senhor Sebastian" de novo! Toda santa vez você...

- Vocês dois! Já basta!

Upsi.

Acabei me deixando levar um pouco, levantando a voz para os dois. Mas pelo menos, consegui chamar a atenção para que parassem de brigar.

- Aham, - Limpei a garganta, tentando me recompor e manter a postura. Esses dois me enlouquecem! - desculpem. Mas acontece, está bem? Foi um acidente. O Bard não fez por mal e você não quebrou o bule de propósito, mais tarde resolvemos o resto. Agora, o que você quer, Bard?

- E-eu te procurei porque o Jovem Mestre quer te ver!

- Agora? Mas acabamos de sair da reunião matinal.

- Desculpa, não tenho nem ideia do que seja.

- Tudo bem, vou ver do que ele precisa... - Fui até o armário de louças e peguei a vassoura que estava encostada nele. - ajude Mey-Rin a se levantar e limpe o bule por nós. Já varremos o chão todo antes de você chegar.

- Pode deixar.

- E você, Mey-Rin? Tudo bem?

- T-tudo. Eu só quero ficar no chão mais um pouco.

Ela ainda parecendo um pouco zonza.

- Como quiser.

Idiotas.

Sai da cozinha e atravessei o salão principal, subindo as escadas e indo em direção ao escritório do Conde. Era raro que ele nos chamasse depois da reunião matinal, ou antes das dez. O que aconteceu dessa vez?

Toc, toc!

- Jovem Mestre?

- Entre.

Girei a maçaneta lentamente e entrei. Como de costume, ele parecia atarefado.

Com o telefone sobre seu ombro, mão esquerda sobre uma pilha de papéis, escrevendo coisas e assinando documentos, enquanto a esquerda apertava nervosamente os botões de seu aritmômetro.

- Jovem Mestre, eu...

- Um momento. - Ele disse a mim, se afastando rapidamente do telefone e voltando logo em seguida. - Sim? Uhum. O que? Não, de forma alguma. O preço é este, não pretendo negociar. Hm, sim eu compreendo. Bom, se é assim, recomendo que o senhor me contate quando estiver com o dinheiro em mãos para me pagar. Até.

Ele desligou.

- Compradores inconvenientes. - Ele organizou seu amontoado de papeis em cima da escrivaninha. - São imbecís ao ponto de propor ofertas que não podem bancar. Sinceramente...

- Precisando de algum conselho financeiro, senhor?

- Não, eu domino bem esse tópico. - Ele ergueu uma sobrancelha e sorriu ladino - Entende de economia, por acaso?

- Que serva eu seria se não compreendesse?

- Hm. Então provavelmente está ciente da queda de quarenta por cento dos produtos Gupta.

- Queda de quarenta por cento na compra dos produtos Gupta.

Ironicamente, dissemos juntos. O Conde arqueou sua sobrancelha.

- Hm, interessante. Bom saber que anda bem informada.

- Sempre, senhor. Mas enfim, solicitou minha presença para?

- Ah, é claro. Eu preciso que vá a cidade novamente.

Como?!

Não, não! Inferno! Eu tenho planos para hoje!

- Se me permite senhor, há alguma razão específica?

- Bom, algumas na cidade ficaram pendentes, e mandar Baldroy ou Mey-Rin está fora de questão, afinal estão todos atolados de trabalho. Já você por outro lado, realizou todos os seus afazeres ontem. Certo?

De jeito nenhum! Eu lutei tanto para ter essa tarde livre!

- Sim, senhor.

Merda!

- Então, tenho certeza de que não seria um incômodo passar a tarde na cidade para mim. Certo?

Sim, sim, sim! Claro que seria, pivete!

- De forma alguma, estou à disposição, Mestre!

- Ótimo. Se prepare e espere pela carruagem, ela chega daqui a alguns minutos para pega-los.

Pirralho inconveniente!

- Sim, Mestre. Estou dispensada?

- Uhum, pode ir.

Me virei e andei apressada.

Mas que inferno! Eu tinha tanto para resolver hoje, tanto para estudar! Eu passei das duas da manhã arrumando essa maldita mansão para nada! Todo o meu trabalho por algumas horas livres jogado fora!

Tem como ser pior?!

Espere um segundo, "pegá-los"?

Parei meu caminhar e me virei novamente.

- Jovem Mestre...

- Hm?

- O senhor disse "pegá-los"?

- Ah, quase me esqueci. Sebastian vai acompanhá-la, ele está com a lista de tarefas. E não se preocupe em relação a ele. Já resolvi as coisas.

Fiquei estática, totalmente apática, não pode ser verdade.

- Ah, sim. Compreendo.

- Excelente, até mais tarde.

Que burrice, é óbvio que sempre pode ficar pior.






[...]






"Tic tac, tic tac, tic tac."


Parei de coturcar meus brincos e dei atenção ao barulho irritante do relógio.


Era esse o som que o relógio de Sebastian fazia. Normalmente eu não me importaria, mas sinto que apenas por vir de seu relógio me soava irritante. Ficou claro, desde que o conheci, seu grande afeto por essa peça. Uma vez Bard me contou que o senhor Tanaka lhe disse que apenas os mordomos oficiais da mansão Phantomhive podiam usar o relógio e o broxe que continham o brasão da família. Sebastian usava os dois todos os dias, aparentemente com bastante orgulho.

Orgulho de servir o Conde ou por ser simplesmente um metido? Não sei exatamente qual.

Apesar das coisas estarem mais em paz, continuo não gostando de sua companhia. Seu jeito e comportamento me incomodam, me tiram a paciência.

- Então, o que precisamos fazer?

Sem me responder, ele fechou seu relógio e o guardou no bolso do fraque. Em seguida, de seu outro bolso retirou um pequeno papel perfeitamente dobrado e o abriu.

- Vestes sob medida foram encomendadas na loja da senhorita Hopkins, precisamos pegá-las; iremos a Herend Store comprar novas pratarias; e por fim a feira.

- Herend Store? Não estamos precisando de prataria nova, que eu saiba.

- Tem certeza? Afinal, precisamos substituir o bule que perdemos durante a manhã.

Como ele sabe?!

- Mey-Rin te contou sobre o acidente, então?

- Não foi preciso. Um mordomo deve saber quais utensílios faltam em sua própria cozinha.

- A cozinha é do cozinheiro, que eu saiba.

- Quando ele cuida dela, sim.

Era claro que ele e Bard não se davam bem, na verdade o que ficava claro era que Bard não gostava de Sebastian, mas nunca soube se esse sentimento era mútuo. Aparentemente, pode ser que sim, ou não. Talvez Sebastian só goste de superestimar as pessoas.

Mas se ele está de um lado, eu estarei do outro. E se ele está insinuando algo sobre Baldroy, eu irei questionar.

- Está insinuando algo?

- Não. Mas, acredito que temos definições diferentes do que é ser um bom cozinheiro.

- Temos definições diferentes para muitas coisas, Sebastian.

- O que houve com "senhor"?

- Dou o devido respeito que cada um merece.

- Não sou digno de seu respeito?

- Eu disse isso?

- Então está guardando mágoas? Ora, achei que o pedido de desculpas tinha lhe agradado.

Ele disse docemente sarcástico, como se fosse me deixar levar por sua lábia estúpida, como Mey-Rin faz.

- Pedidos verdadeiros agradam. Além disso, está colocando palavras em minha boca.

- "Verdadeiros"? Então, o que está querendo dizer, senhorita Amelia?

- Não fuja do tema. O importante é que, acredito que independente de ser mordomo ou não, estamos no mesmo patamar e somos ambos empregados. Qual a lógica de chamá-lo de "senhor"?

- Cordialidade? Hierarquicamente falando, sou seu chefe.

- Hierarquicamente falando, eu sirvo ao Jovem Mestre. E cordialmente, não sou necessariamente obrigada a chamá-lo de "senhor", afinal Bard não o chama.

- Honestamente, Baldroy é um incivil, bruto. Não é o caso da senhorita, concorda?

Incivil? Bruto? Você invade meu quarto e minha privacidade, mas Bard é o bruto por não chamá-lo de senhor? Pro inferno, você e sua falsa cordialidade!

- Acho que temos definições diferentes de um homem "bruto", Sebastian.

Sua expressão simpática se desfez, acho que ele compreendeu o que quis dizer. As palavras alcançaram seu orgulho e feriram seu ego.

Não brinque comigo, mordomo.

- Certamente temos, senhorita Amelia.

Essa tarde será um inferno!



[...]



- Obrigada mais uma vez, senhorita Hopkins.

- De nada, querida! Fico feliz que tenha vindo buscar a encomenda, afinal sabe como é, não suporto atender pessoas mal educadas.

Ela disse lançando um olhar assassino a Sebastian, que pegava as encomendas com as assistentes da mulher.

- E o que tem achado dos vestidos, querida? O uniforme lhe serviu bem, tenho certeza!

- Ah, sim! São todos lindos e confortáveis, o uniforme tem servido muito bem, claro.

- Eu sabia! E disse que verde combinava com você... - Sem mais nem menos agarrou meu braço e me girou pela loja, como se dançássemos - veja só como está linda!

E realmente, todas as roupas produzidas por ela foram o suficiente para preencher todo o meu armário.

- Obrigada, senhorita Ho...

- Querida, me chame de Nina! Não existem mais barreiras depois de vê-la de roupas íntimas! Hahaha!

O tanto que é genial é o mesmo tanto que é louca.

- Bom, obrigada pelas roupas, senhorita Nina. Estou muito satisfeita.

- Ótimo querida! E volte mais vezes, está bem? Você tem sido um de meus manequins preferidos! Bom, agora se me der licença, preciso ir aos fundos da loja pegar a última encomenda que o Conde fez. Volto em um instante!

Ela saiu apressada para os fundos da loja. Eu continuei parada no mesmo lugar, esperando que ela voltasse.

Aproveitei para admirar um pouco mais da loja, de novo. Os manequins estavam com peças novas, diferentes das que vi quando vim aqui pela última vez; novos rolos de tecido haviam chegado e estavam espalhados pelo lugar; um novo bengaleiro no canto da loja guardava uma coleção de grande e bizarros chapéus; o balcão tinha novos pares de luvas dobrados e...

E Sebastian me encarava?

Ao olhar rapidamente para o balcão, meus olhos o encontraram, já que ele estava bem ao lado. Ele me encarava. Eu não sabia a quanto tempo, seu olhar era profundo e parecia me analisar meticulosamente e lentamente. Isso até perceber que eu observava. Ele desviou, rápido e sutilmente, aparentando não dar a mínima importância para o encontro de nossos olhos.

Estranho.

- Estou de volta... - senhorita Hopkins colocou a caixa sobre o balcão. - meninas, embrulhem bem para o mordomo, não quero que ele volte aqui para reclamar de nossas embalagens.

- Talvez devesse comprar algo com mais qualidade para que as embalagens não se soltem, como da última vez.

- Talvez devesse gastar menos tempo se preocupando com a qualidade de meus produtos, mas sim com seus cabelos. Que tipo de homem usa penteados longos hoje em dia?

- Eu opto pelo clássico, a senhorita não entenderia.  Afinal a vulgaridade é seu forte, correto?

- Moderno, mas você não saberia o que significa. Afinal, ultrapassado é seu forte, correto?

Sinceramente, o que há com esses dois?!

Suas empregadas terminaram de embalar o pacote e o entregaram a Sebastian.

- Acho que terminamos nossos negócios, por hoje.

-Foi um prazer fazer negócios com a senhorita mais uma vez.

Ele disse "prazer" com um gritante, porém sutil sarcasmo.

Sebastian deixou a quantia em dinheiro que devíamos na mesa e saiu da loja. Eu me despedi às pressas e segui logo atrás dele, que aguardava do lado de fora.

- Francamente.

Ele cuspia a palavra, como se estivesse colocando para fora um pouco do que gostaria de dizer sobre senhorita Hopkins.

- Você gosta bastante de fazer visitas a senhorita Hopkins, não?

Debochei, apenas por diversão.

- Não há nenhuma tarefa que não faça de bom grado para meu Mestre.

- É? Você não parecia muito feliz lá dentro.

- Imagine, eu estava radiante.

Se "radiante" significasse o mesmo que "impaciente", então sim, ele estava radiante.

- Sim, eu percebi.

- Agora... - Ele equilibrou todas as caixas em uma única mão, e com a outra pegou seu relógio. - são quase nove horas. Devemos ir a Herend Store, antes que fique movimentada. Vamos.

E assim caminhávamos pelas ruas pouco movimentadas, seguindo para a loja. Não era fácil acompanhar Sebastian, ele era alto e suas pernas eram longas, seus passos eram extensos, rápidos, e nada fáceis de acompanhar, principalmente quando se está de saltos.

O silêncio se fez presente durante todo o percurso. Sebastian não falava, não esboçava qualquer emoção que fosse, qualquer desconforto ou algo parecido, ele parecia indiferente.

Sebastian não era um homem tão simples de ler como assumi, era mais difícil. Ora andava por aí com sua postura elegante e sorriso discreto, escondendo seu orgulho e cinismo, mas às vezes, externava seus verdadeiros traços, de maneira branda, ou não.

Acho que nunca o vi ser tão ousado quanto no dia em que estava prestes a me descobrir, bem no meu quarto. As coisas foram tão agitadas em seguida, que mal tive tempo para pensar sobre isso.

Ele chegou tão perto com tão pouco, juntou as peças muito rápido, foi ousado, inteligente, perspicaz, seu único erro foi, talvez, a inconsequência.

Não, não foi inconsequência, foi sorte, minha sorte.

Sorte porque não tinha nada demais escrito em meu caderno, sorte porque consegui me controlar e me manter na personagem de "Amelia" e fingir até o fim, porque as provas que ele possuía eram escassas, desconexas.

Eu fui salva por sorte, afinal? Faz anos que não sou salva por isso...

Mas que vexame.


[...]


- Obrigado pela compra, e volte sempre! Ah, e onde eu poderia deixar o...

- Em cima das caixas, por favor.

Sebastian insistia em levar todas as compras, e por isso estava carregando três grandes caixas com as encomendas da senhorita Hopkins, além de que insistia que o vendedor colocasse a bolsa, com o novo bule, sobre elas.

Qual o problema dele? Vim aqui apenas para assisti-lo? Porque até agora, sinto ter perdido tempo à toa, o seguindo para lá e cá como se fosse um cachorro!

- Tem certeza, senhor?

- Sem dúvida.

Mesmo receoso, o homem colocou a bolsa sobre as caixas. Parecia bambo, não me cheirava bem, mas apesar disso, ao contrário do vendedor e de mim mesma, Sebastian não parecia nem um pouco preocupado.

- Obrigada pelo seu tempo e... - E mais uma vez ele teve a maldita atitude de equilibrar as compras em uma única mão! Com sua mão livre, pegou uma certa quantia em seu bolso e pagou o vendedor. - até a próxima.

Ele é louco! Essas coisas poderiam cair e se espatifar no chão a qualquer hora! E como pôde carregar tanto peso em uma única mão?

Mais uma vez me apressei para alcançar seus passos largos, e enquanto saíamos da loja as pessoas em volta ficavam o encarando.

- Você pretende mesmo carregar tudo isso até irmos embora?

- Que tipo de mordomo Phantomhive eu seria se...

- Ora, faça-me um favor... - Sem muita paciência para a sua ladainha, me inclinei e alcancei a bolsa no topo das caixas, a que levava guardava o bule. - prefiro evitar o acidente.

Não tão surpreso, mas não tão indiferente, ele me encarou arqueando uma sobrancelha.

- Eu não deveria permitir que uma dama carregasse peso.

- Sou perfeitamente capaz de carregar um bule. Além disso, não é questão de força, é prevenção. Não quero me envolver em mais problemas por sua causa, ainda mais se tratando de objetos do Conde.

- Por "minha causa", a senhorita diz?

- Exatamente.

- Ferirá meus sentimentos dessa forma. Quanta frieza.

Ele debochou e ainda sorriu, cinicamente.

Como alguém consegue ser tão irritante com tão pouco?! A pior parte é que ele sabe como fazer, sabe como incomodar. Que irritante!



[...]



- Nossa...

Funtom Store, essa foi nossa próxima parada. Uma das lojas da grande marca do Conde Phantomhive. Eu já havia ouvido falar antes, visto rumores sobre as lojas e suas mercadorias, mas nunca entrei em uma das lojas. Nunca a vi antes, afinal lojas como essa nunca abriram em East End.

Era grandiosa. Brinquedos e mais brinquedos de todos os tipos e tamanhos espalhados pelas lojas; grandes prateleiras cheias de barras de chocolate, pirulitos, balas, chicletes, tortas embaladas e tudo mais.

Algumas crianças de uniforme corriam pela loja, colocando doces nas suas sacolas e entregando aos seus pais, outras reclamavam e choramingavam pelos brinquedos.

Risos e gritos infantis dominavam o lugar.

- Impressionada?

- Ah?

Perdi o foco quando a voz grave de Sebastian surgiu.

- Nunca havia visitado uma das lojas antes?

- Sinceramente, não.

- Posso perguntar a razão?

- Não sou mais uma criança. Por tanto, por que viria aqui?

- Seus olhos estão brilhando, como se fosse uma.

- Impressão sua.

- Ah, é?

- É. Agora, podemos fazer o que viemos fazer?

- É claro... - Sebastian deu uma breve olhada em volta, como se procurasse por algo específico. E então, suas sobrancelhas se ergueram e aquele brando sorriso se fez presente mais uma vez, do nada. - na verdade, venha comigo.

Ele estendeu sua mão a mim.

- Como é? De jeito nenhum.

- Por favor, eu não mordo.

- Não sei se confio cem por cento nessa sua afirmação.

- Ah... - Ele suspirou, soando cansado de minha persistência. - que tal me dar esta oportunidade, pelo menos uma vez?

- E por que deveria?

- Porque acredito que não vá se arrepender.

Ele insistia em manter sua mão estendida para mim, com aquela mesma expressão confiante, como se tivesse total certeza de que me agradaria com o que quer que fosse mostrar.

Qualquer movimento suspeito ou brusco, e eu não responderei por "Amelia", muito menos por mim mesma.

- Seja breve.

- Perfeito... - Ele manteve a mão estendida, como se esperasse por algo. - vamos?

- O que está esperando?

- Um cavalheiro deve guiar uma dama.

- Quando concordamos que você era um cavalheiro?

E então ele abaixou sua mão lentamente, ainda mantendo a expressão simpática no rosto. Posso estar errada, mas de duas em uma, ou ele está borbulhando de raiva ou pouco se importa com minhas alfinetadas.

Espero que seja a primeira, sinceramente.

- Me acompanhe, por favor.

Ele caminhou pela loja, a atravessando e passando por prateleiras, balcões e estantes de doces e brinquedos, até chegarmos a uma específica estante, a mesma repleta de grandes potes de vidro, todos possuindo tampas com cores diferentes, com o símbolo da empresa estampado em cada.

- E então?

- "Então" o quê?

- O que achou?

- Me trouxe aqui para ver bombons?

Sem responder, colocou as compras no chão cuidadosamente e com suas duas mãos livres pegou um dos potes na estante.

- O que está fazendo?! Não pode pegar coisas assim!

- Acalme-se... - Ele abriu o pote de tampa amarela, e dele retirou um dos bombons, coberto por uma embalagem da mesma cor. - prove um.

- É apenas um bombom, o que tem de tão diferente? Além disso, não sou chegada a doces.

- Acho que deveria dar uma chance a este. Vamos, não irá engordar por causa de um bombom.

- Meu peso não é minha preocupação.

- Então prove, que mal fará?

Ele insistia, ainda com o bombom em mãos. Por alguns segundos tentei lê-lo, entender o motivo para aquela besteira. Por que o trabalho de me trazer até esse lugar, me importunar para comer um doce? Ele parecia apático a poucos minutos atrás, mas agora estava desse jeito.

Ele é tão esquisito.

Peguei o bombom de suas mãos e abri a embalagem, a própria "bola" de chocolate tinha pequenos retalhos e desenhos. Olhei para ele mais uma vez, ainda desconfiada.

- Prove.

Insistiu mais uma vez, ainda sorrindo.

E sem hesitar muito, coloquei o doce na boca. Mastiguei e algo pareceu sair dali, um líquido. O gosto doce do chocolate ao leite ainda era muito presente, mas em poucos segundos outro sabor ganhou destaque, parecia mais amargo, frutado e refrescante, se parecia com...

- Champagne?

- A nova proposta do Jovem Mestre, doces para adultos. Essas pequenas bolas de cacau ao leite normalmente chamam mais a atenção das crianças. Mas, e se as recheássemos com algo mais... - Ele estendeu sua mão mais uma vez a prateleira, desta vez retirando o doce de um vidro de tampa vermelha. - "interessante" para os adultos?

Ele tirou um lenço do bolso e colocou o doce sobre ele, o desembalou e com a ajuda do pano, gentilmente o abriu no meio, deixando que um líquido escorresse pelo tecido. Provavelmente o fez para não sujar suas luvas.

- Venha, sinta o cheiro.

Ainda mastigando o outro em minha boca, me aproximei do pano e inalei o cheiro do doce ali aberto. Notas de malte, cereja e algo que se parecia com canela.

- Whisky?

- Uma entendedora de bebidas a senhorita, não?

- Não acha que soa escandaloso? Uma marca majoritariamente infantil vendendo produtos com álcool?

- Todos os funcionários foram orientados a não permitir que crianças comprem destes vidros. Além disso, confio no julgamento de meu Mestre. Por fim, o que achou?

- Se é assim, acho uma boa ideia então, inovador.

- Me referia ao doce.

- A-ah, sim. Achei, ahm, interessante.

Estava procurando por uma palavra.

- Quer dizer que gostou, não quer?

- Já disse, interessante.

- Considerarei como um "sim". Vamos prosseguir?

Mais uma vez, ele pegou as compras e as pôs no braço, indo para o outro lado da loja conversar com um atendente. Eu estava logo atrás.

Eu gostei, só não queria dizer a ele, não me parecia uma boa ideia dizer.



[...]



- E por que, exatamente, precisávamos levar isso?

Disse enquanto carregava um grande coelho de pelúcia em meus braços, junto ao bule embrulhado. Insisti que Sebastian não carregasse mais nada, se não pareceria um equilibrista  louco pelas ruas, andando com três caixas, um bule e uma pelúcia nos braços, seria ridículo.

- O Jovem Mestre anda um pouco desconfiado sobre a qualidade da costura dos produtos, insistiu em olhar mais de perto.

Para mim, isso soa como uma desculpa para ter uma pelúcia na cama.

- Compreendo. Agora, só precisamos ir ao mercado, certo?

- Feira.

- Perdão?

- À uma feira em Regent Street todas as quartas, temos um vendedor de confiança que está sempre por lá.

- E por que comprar em uma feira se pode pagar por algo de qualidade em lugares muito mais caros?

- Qualidade e preço não são palavras que, necessariamente, estão sempre juntas.

Caminhamos por mais alguns minutos até chegarmos a grande feira. Senhoras repletas de sacolas e ambulantes escandalosos andavam de um lado para o outro, o movimento era tanto que se assemelhava ao movimento de pico que Londres alcançava sempre que o relógio batia as uma da tarde.

Por que tantas pessoas tão cedo?

Sebastian caminhou até uma pequena barraca específica, aonde um velho senhor andava de um lado para o outro, arrumando as comidas expostas em sua barraca.

- Senhor Brown?

- Oh! Senhor Michaelis! Que prazer revê-lo... - O senhor de cabelos grisalhos e bigode engraçado estendeu a mão para cumprimentar Sebastian. - como tem passado?

Sebastian apertou sua mão.

- Bem, obrigado. E o senhor?

- Ah, você sabe! Se o comércio não para, eu não paro! E graças a deus os fregueses não param de chegar! Hahaha! E quem é essa bela senhorita com você, em? Finalmente arranjou uma noiva? Já era hora!


Noiva?!


Só de imaginar sinto calafrios. Repugnante!


- Aprecio seu senso de humor, mas não. Esta é a senhorita Amelia, nova serva da mansão.

- Oh, não imaginei que o Conde estivesse à procura de novos servos!

- Felizmente, a procura durou pouco tempo. Mas enfim, vim a pedido de meu Mestre... - Sebastian pôs a mão em seu bolso mais uma vez e tirou um pedaço de papel. - preciso desses itens.

O idoso pegou a lista e retirou pequenos e velhos óculos de grau de seu bolso, os colocando no rosto.

- Hm, aham, sim, sim! Tenho tudo que precisa, bom, quase tudo. Na verdade, eu já não vendo mais esses dois últimos temperos da lista, mas posso te fornecer todo o resto!

- Esplêndido.

- Só para confirmar, aqui são "cinco" ou "seis" maçãs? Meus olhos já não são mais os mesmos, sabe disso! Haha!

- Não se preocupe, são seis. E, inclusive, sabe de alguém que possa fornecer esses temperos?

- Claro, claro. Cinco barracas depois da minha, o nome dele é Tom. Esse cara tem todos os temperos que você pode imaginar.

- Que conveniente. Se importa de aguardar aqui, senhorita Amelia?

- Não, fique à vontade.

- Certo, não vou demorar.

Sebastian saiu, sumindo no meio da multidão.

- E então... - O tal senhor Brown começou a andar de um lado para o outro dentro de sua barraca enquanto lia a lista de Sebastian repetidas vezes. - a senhorita está gostando de trabalhar para o Conde?

- Sim! Ele é um ótimo patrão.

- Quem diria, não é? Um garoto daquela idade dirigindo uma equipe de empregados, Jesus, dirigindo uma empresa inteira! Conhece a Funtom... - Ele pegou as seis maçãs que Sebastian pediu e colocou em uma saco de papel. - não conhece?

- É claro, sem dúvida uma grande empresa.

- Sabe, eu nem chamaria de empresa... - Ele pegou duas cebolas roxas e as colocou no saco. - pra mim, aquilo é um império!

- Sim, sem dúvidas.

Ele não vai parar de falar?

- E o senhor Michaelis?

- Sim, o que tem ele?

- Sério? As comerciantes aqui da feira o acham um ótimo partido para jovens como você... - Ele fechou o saco e logo pegou outro, colocando dois repolhos dentro. - não concorda?

- Ahm, eu não, bom, não acho que seja a hora para me relacionar com alguém.

"Não casaria com um homem como ele, nem mesmo se me pagasse.", é o que gostaria de dizer a ele.

- Não precisa se envergonhar! Só estou perguntando por curiosidade! Até porque... - Ele colocou três cachos de uva no saco. - Sebastian nunca vem aqui acompanhado, a não ser do Conde. Por isso perguntei! Ah, mas enfim, vou parar de te encher! Até porque, não posso errar a conta dessas coisas! Você deve saber, o Conde é meio, como é a palavra mesmo? Ah! Acho que é "sistemático"! Haha!

Esse senhor não parece ser alguém ruim, só fala demais.

Mas, algo que ele disse me chamou a atenção. Sebastian nunca vem acompanhado, a não ser do Conde. Se ele sempre manda Sebastian vir aqui sozinho, e se ele é tão capaz de fazer tudo sozinho, por que me mandou vir junto?

Qual o sentido de...


- Ai!


Senti algo ou alguém bater em meu ombro.


- Ei, olha por onde anda!

Um homem rabugento gritava comigo, ele parecia bêbado.

- Perdão? Eu estou parada aqui, foi o senhor quem esbarrou em mim.

- Como é?! Ficou maluca, mulher?!

É, ele definitivamente estava bêbado.

- Não precisa levantar a voz para mim, não disse nada demais ao senhor.

- Sua mãe não te ensinou a respeitar os homens, ô criatura?!

Sebastian estava longe e o senhor Brown estava totalmente distraído. Eu poderia responder esse canalha da maneira que quisesse, do meu jeito.


- Homens? Para mim você parece apenas um vagabundo e mal educado. Quem anda esbarrando pelos cantos de tão bêbado e gritando com mulheres, não é um homem. Entende?

E, de uma hora para a outra ele pareceu ainda mais agitado. Irritado!

- AH?! ESCUTA AQUI SUA VAGABUNDA! EU VOU...


- "Vai" o que, senhor?


De repente senti o impacto de uma voz grave se fazendo presente atrás de mim, ela parecia abafar todos os sons agitados em volta, de tão presente. Ao mesmo tempo, pude perceber uma sombra crescente atrás de mim, e um vento frio passar por minha nuca, causando arrepios.

Era Sebastian, logo atrás de mim.

- É sua mulher?! Controle essa peste!

Mulher dele! Isso já é demais! Eu vou te socar, desgraçado!

- Controlá-la? Ela parece perfeitamente bem para mim. Na verdade... - Em um movimento rápido, que se quer pude ver acontecer, Sebastian ficou frente a frente com o homem, com sua única mão livre bem presa a gola da blusa daquele bêbado. - o único que me parece estar causando alvoroço por aqui é o senhor, gritando com uma mulher dessa forma. Quanta petulância.

Ele falava e se comportava de forma que presenciei poucas vezes. Ele parecia mais alto, eu senti aquela mesma aura sombria se fazer presente, aquela familiar, como senti poucas vezes em sua presença. Totalmente sério, com seus olhos vermelhos fixos nos do homem, como se pudesse ler seus pensamentos. Sua expressão não me passava nada, medo, raiva, cinismo ou felicidade, não havia nada ali, e talvez essa fosse a parte que mais assustasse as pessoas.

Ele não parecia muito simpático, nada simpático.

Sem muito esforço, Sebastian empurrou o homem para longe, ele parece ter feito pouco esforço, mas esse "pouco" foi o suficiente para fazer com que o homem fosse "atirado" contra uma das barracas e desmaiasse com o impacto.

O que diabos foi isso?!

- Ah, eu não suporto tumultos... - Aquele semblante sombrio sumiu de seu rosto em questão de um segundo, voltando totalmente ao normal, o habitual mordomo de sempre. Ele ajeitou o fraque e apertou a gravata no pescoço. - você está bem?

Ele falava tranquilo, tranquilo como se toda a multidão à nossa volta não tivesse parado para assistir toda a cena, espantados.

- Sim...

Tentei me conter, me controlando para não gaguejar ou esboçar qualquer choque. Deveria manter minha postura.

Ele seguiu me encarando por mais alguns segundos, como se quisesse dizer algo, ou como se esperasse algo de mim. Mas no fim...

- Perfeito. Bom, onde estávamos, senhor Brown?

Senhor Brown parecia tão espantado quanto eu, mas ajeitou os óculos no rosto e tentou prosseguir com o trabalho como se nada tivesse acontecido.

Esse homem, tem algo de muito estranho, não, não é estranho a palavra, tem algo de errado com ele, tão errado que não soa natural...

Nada natural.



[...]



A manhã estava chegando ao fim, eram quase uma da tarde e em pouco tempo as embarcações chegariam aos portos, as locomotivas as suas estações e as lojas e restaurantes ficariam mais cheios. O frio não pretendia diminuir, bem pelo contrário na verdade.

Enquanto eu sentia minhas orelhas congelando pelo frio, meus pés imploravam por ajuda nos saltos e a cada passo que eles davam, eu me lembrava de Mey-Rin com ódio, "Não use coturno pelas ruas, somos damas!". Que maldita! Sem falar das compras que levava em meus braços, o bendito coelho de pelúcia, um bule, dois sacos com maçãs, uvas, morangos e duas benditas caixas de Earl Grey e Darfeeling!

Inferno, eu só quero que isso acabe logo.

Ao menos o silêncio reinava e eu poderia andar tranquila, sem ter que ouvir o falatório irritante de Sebastian.

Espere, Sebastian?

Olhei para os lados, para a frente e trás. Onde ele se meteu?!

- Sebastian? Sebastian aonde você foi?!

Era só o que me faltava!

Continuei e procura-lo por todos os lados, o chamava como uma demente pelas ruas enquanto as pessoas olhavam para mim, nunca foi comum ver uma mulher fazendo "escândalos" nas ruas e gritando por ai. Ah! Ele me paga, que maldito!

Quando eu encontrá-lo eu juro que...

- Ah?

Foi quando parei para reparar com mais calma, que percebi as grandes caixas com o símbolo da loja da senhorita Hopkins deixadas em um canto, perto de uma rua estreita.

Algo não está certo.

As pessoas caminhavam por lá normalmente, afinal não parecia haver nada de errado. Mas, se não soava suspeito, por que as encomendas estavam largadas ali? Sebastian não aparentava ser descuidado a tal ponto.

Adentrei a estreita rua e olhando para os lados, não parecia ser nada demais, as pessoas caminhavam calmamente pelos cantos apertados, algumas lojas abertas e pequenos restaurantes também estavam ali, os postes estavam apagados e os bancos de rua estavam quase todos vazi...

- O que?!

- Oh, você está aí.

Sebastian estava sentado em um dos bancos, sorrindo de forma doce como nunca vi antes. Em seu colo algo se mexia e fazia barulho, um gato.

Só pode ser uma brincadeira.

- O que pensa que está fazendo, sumindo desse jeito e me largando na multidão? Por acaso está...

- Shiu... - Ele colocou o indicador sobre os lábios, com calma. - assim vai assustá-lo.

O gato ronronava e roçava em Sebastian.

- E-eu... - Era quase impossível de se acreditar na cena. Mal sabia o que dizer. - ah por Deus, não acredito que você está fazendo isso, principalmente agora!

- Gostaria de participar?

- Só pode estar brincando comigo.

- Não, não estou... - O gato em seu colo miou e estendeu as patas para mim. - acho que ele também não.

Encarei o gato, ainda irritada. Seu olhar inocente continuava a me chamar, afinal ele não tinha ideia do que estava acontecendo ali, só sabia que estava gostando das carícias que estava ganhando. Meus pés doíam, meu corpo estava com frio, meus braços cansados de carregar peso, talvez eu estivesse estressada demais.

Talvez, precisasse me acalmar.

- Certo... - Deixei as compras sobre as caixas e caminhei até o banco, me sentando ao seu lado, em uma distância confortável para mim. - ah, meus pés.

- Foi uma longa manhã, todos merecemos um descanso. Não é, pequenina?

Ele dizia enquanto acariciava com delicadeza as orelhas do animal, que ronronava e pedia por mais. "Pequenina", então era uma fêmea.

- Essas orelhas, essas patas macias e felpudas, oh que beleza.

- Não imaginei que você gostasse de gatos, de animais na verdade.

- De todos os animais que já vi, esses pequenos são os únicos que ainda não consigo compreender, são tão adoráveis!

Seus dedos agora acariciavam o pequenino pescoço da gata, que levantava sua cabeça pedindo por mais. Porém, suas mãos desciam lentamente pelo peito do animal.

- Ah, um conselho, evite tocar na ba...


- MEOW!


A gata se contorceu nos braços de Sebastian quando ele tocou sua barriga, pôs suas garras para fora e arranhou a bochecha do homem, em seguida pulou no meu colo.

- Diabos! Você está bem?

- Sinto muito pobrezinha. Eu a feri?

Ele perguntou, soando chateado enquanto sua bochecha sangrava. É sério que essa era sua principal preocupação agora?!

- Sebastian, seu rosto.

Ele tocou sua bochecha, da qual escorria um pingo de sangue, encarou como se não fosse nada, como se nem estivesse ali.

- Eu estou bem... - Retirou seu lenço do bolso do fraque e tocou a ferida, que pouco depois parou de sangrar, ficando apenas avermelhada. Nunca vi um corte parar de sangrar tão rápido. - e ela?

Olhei para meu colo, onde ela havia se deitado, ronronando mais uma vez e esfregando seu rabo em meus seios, parecia ótima.

- Como eu disse, não se deve acariciar a barriga dos gatos.

- Não?

- Não sabia disso? Bom, as "partes" mais sensíveis de seu corpo ficam na barriga.

- E como sabe disso?

- Eu li, certa vez. Veja, eles gostam de carinho nas costas... - Passei meus dedos lentamente por suas costas, que logo se empinaram. - desse jeito, e também gostam entre as orelhinhas, como estava fazendo antes... - Esfreguei entres suas orelhas, a fazendo ronronar. - e em seu queixo. - Ela miou mais uma vez, aprovando quando acariciei o lugar com o dedo indicador. - devo admitir, eu sempre gostei de gatos.

- É mesmo?

- Sim, sempre apreciei a independência deles, sua inteligência.

- Eu também.

Sebastian tentou se aproximar lentamente, levando sua mão ao queixo da pequena gata, que ronronou em resposta.

- Oh, então você realmente gosta disso? Como é esperta... - Levou suas mãos às costas da felina e a acariciou, a fazendo miar e se empinar mais uma vez. - uma pena não poder lhe trazer comigo.

- É mesmo, Mey-Rin me disse que o Jovem Mestre é alérgico a gatos.

- Uma grande pena, são ótimas companhias. Não é, pequenina? Sim, você é.

Ele continuava vidrado nos movimentos do animal, nunca o tinha visto tão vidrado e distraído com algo, digo no bom sentido.

Essa era uma parte do mordomo que eu não havia conhecido ainda, uma parte menos esnobada ou misteriosa, mais amistosa, flexível, receptiva.

Não era tão ruim quanto as outras.

- Veja, eu certa vez trabalhei em uma mansão que possuía cinco gatos.

- Cinco?

- O filho do Conde e sua esposa tinha dificuldade para fazer amigos na escola, e por isso eles adotaram cinco gatos para que o garoto não ficasse sozinho. Às vezes, quando tinha tempo, gostava de fazer companhia a ele e brincar com seus gatos.

- Uma condição invejável.

Era mentira. Toby sentia pena dos gatos de rua em East End e sempre os recolhia das ruas quando chovia, os trazendo sempre para nosso apartamento. Eu ficava com raiva dele, já que era sempre eu quem tinha que deixar tudo limpo e cuidar de todos, mas no fim, eu nunca os expulsava.

Acabávamos brincando com eles e os deixando dentro de casa até a chuva passar.

- Devo dizer, senhorita Amelia, tirando os pequenos "problemas" nos quais se envolveu mais cedo, sua companhia tem sido minimamente agradável.

- "Problemas"? Que eu saiba, foi você quem socou aquele homem.

- Eu tive minhas razões.

- Ah, é? E quais seriam.

- E fora do meu código de conduta permitir que uma dama seja agredida. É bom, não demoraria muito para que acontecesse com a senhorita.

- Honestamente, você é sempre tão formal assim?

- Perdão?

- Toda essa questão de "senhorita", "senhorita Amelia" o tempo todo.

- Bom, devo seguir o código de conduta dos mordomos Phantomhive 's. Vai me condenar por isso, também?

- Não estou condenando, apenas pontuando.

- Pontuando o que, exatamente?

- Você não chama a Mey-Rin de senhorita, por exemplo.

- É isso que lhe incomoda? Por Mey-rin?

- Que? Q-quer dizer, não! Deus, não é o que quis dizer.

- Então, poderia me explicar melhor, por favor?

- Está se fazendo de bobo para me constranger?

- Quem sabe.

- Ah, Deus! Esqueça o que eu disse.

- Sinto lhe desapontar, mas "esquecer" não é bem meu forte.

- Então tente.

- Como quiser, senhorita.

Ele fez de propósito.

- Às vezes você é mesmo inconvi...

Fiquei quieta por segundos. Outra coisa chamou minha atenção.

- Não vai terminar sua ofensa?

- Sebastian, - Apontei para baixo. - olhe.

Sebastian olhou para baixo, e com tantas distrações mal percebemos que a gata havia deitado de barriga para cima no colo do mesmo, ele demorou perceber que sua mão estava sobre a barriga do animal, que aceitava as carícias de bom grado.

Acho que talvez, apenas talvez, hoje não tenha sido um dia tão ruim como pensei.



[...]




- Ah, com o tempo você se acostuma. Também achei que ele tinha uma certa cara de marica no início, mas ele é bem forte. Às vezes, até mais que eu... - Bard bebericou um pouco mais de seu café. - e isso me irrita.

- Mas foi muito estranho! Ele parecia forte como Finny quando empurrou aquele homem, e ele nem parecia ter feito tanta força assim! Por Deus, eu o presenciei desmaiando um homem com um mísero empurrão! Não é qualquer coisa.

- Ah, isso não é nada diferente do que o Finny faria qualquer dia desses. Não se preocupa com isso aí.

- É diferente, se você estivesse lá iria se espantar também.

- Eu me espantaria só com a ideia de passar uma manhã toda grudado nele. Acho que eu ia ficar maluco.

- Foi esquisito, mas não foi tão ruim quanto eu imaginei que seria.

- Ou ele estava de bom humor, ou você que tá ficando biruta. Ele é um pé no saco!

- De onde você tira essas palavras?

- Ah, isso não importa muito. Ah! Mudando de assunto, eu tenho uma coisa pra você!

- Pra mim?

- Uhum! Só um segundo! - Bard levantou apressado e correu até seu quarto, de longe pude ouvir o barulho de coisas caindo e gavetas abrindo e fechando. Poucos minutos depois ele voltou com algo nas mãos. - Tá-dá! - Animado, ele pôs na mesa uma caixa de madeira com alguns entalhos de flores, uma fechadura de ferro e ao lado uma pequena chave dourada. - É um baú! Olha, de uns tempos pra cá eu queria testar um novo passatempo. Eu fico meio entediado às vezes, sabe? Então resolvi testar a tal da marcenaria. Gostou?

- Nossa, é lindo! Foi você mesmo que fez?

- Uhum!

- Os entalhos também?

- Pode apostar! Ah e... - Ele pegou a chave dourada e estendeu a minhas mãos. - não sei exatamente o que aconteceu com você "naquele dia" e se não quiser contar eu não ligo, mas se for algum problema com um certo "alguém" tentando bisbilhotar suas coisas, pode guardar no baú. Só tem uma chave, essa.

Ele provavelmente se referia ao dia que Sebastian invadiu meu quarto. Como ele sabe?

Ha! Que pergunta besta, óbvio que ele sabia. Nossos quartos ficam perto da cozinha, não tinha como não escutar o alvoroço.

De qualquer forma, foi gentil de sua parte.

- Por que não deu ele a Mey-Rin?

- Bom, Mey-Rin ia perder e Finny ia quebrar em dois minutos, acho que mal ou bem, você é a menos "destrutiva" entre todo mundo aqui, hehe... - Ele me entregou a caixa e a chave. - espero que seja útil pra você.

- Você leva jeito para marcenaria. Sabia? 

Baldroy mostrou seu sorriso largo e começou a passar as mãos pelos cabelos, como sempre fazia quando ficava sem jeito.

- Que nada, não sei nem o básico, ainda! Mas eu chego lá!

- Seu presente vai ser muito útil para mim.

- Sério mesmo?

- Sim, sério mesmo.

Finalmente um lugar onde eu possa guardar meus pequenos segredinhos. Meu diário.

Realmente, o dia não foi exatamente como imaginei, mas não posso dizer que não ganhei nada no fim.










*

Oi gente! Tudo bem? Espero que tenham gostado desse capítulo! Preciso admitir que, ao mesmo tempo que me diverti escrevendo, também me deu um certo trabalho, já que minha cabeça fez bagunça, e por isso mudei algumas coisas milhares de vezes! Kkkkk (rindo de desespero).

Mas enfim, me digam o que vocês acharam! Agora, vamos falar um pouco sobre o capítulo?

Vamos deixar claro que meu objetivo principal com esse capítulo foi: Mostrar a dinâmica e a relação de Ayuni e Sebastian, e a mínima evolução dessa relação.

Uma das coisas que eu quis passar nesse capítulo foi a falta de paciência que Ayuni tem com Sebastian. Podemos perceber que ela nunca se afetou pelas provocações chulas de seus colegas da máfia, nunca se importou com as ofensas, palavras nojentas e etc. Mas, com Sebastian parece diferente, não acham?

Meu objetivo foi reforçar que: Sebastian é o tipo de pessoa com os tipos de atitudes que Ayuni menos simpatiza, e isso se reforça quando percebemos a sutilidade com a qual ele expõe seu "jeito". Devemos lembrar que, independente do qual fino e educado Sebastian seja, ele ainda é um demônio, um orgulhoso, cínico, egocêntrico, capaz de manipular e um tanto abusado quando quer.

Ayuni está tão imersa nos pontos negativos de Sebastian, que o próprio precisa de muito pouco para irritá-la! E detalhe, óbvio que vez ou outra é de propósito (quase todas as vezes é).

Outro ponto muito importante que eu quis tocar no capítulo, mesmo que de maneira bem suave: A dificuldade que Ayuni tem de aceitar quando as coisas não saem como planejou, ou quando sente que cometeu um erro. Os traumas (não revelados) da personagem a privam de aceitar que as coisas não saiam da maneira que ela quer ou que cometa erros, sempre que algo assim acontecia, punições a aguardavam, e por isso ocorridos como o contratempos como os deste capítulo mexem com a personagem! Não é atoa que ela vai a Londres completamente contrariada.

Mas, o importante é perceber que com o passar das horas, ela foi capaz de acalmar um pouco sua angústia, sendo minimamente flexível a relaxar quando aceita a companhia o mordomo para brincar com a gata, vemos até uma certa melhora na convivência com Sebastian. Seria esse um avanço?

Outra coisa que eu gostaria de falar sobre: O bendito sorriso do Sebastian que eu menciono sempre! Bom, eu acho que uma das coisas no personagem, que sempre me marcou, foi o sorriso. Eu simplesmente ADORAVA quando Sebastian fazia alguma coisa incrível, ou completamente desprezível com aquele sorrisinho "debochado" e simples no rosto, como se não fosse nada. Gente, pra mim é o auge do charme, apesar de eu ser suspeita de falar, já que amo ele! KKKKK! Mas, eu achei que seria interessante deixar alguns exemplos desse sorriso maravilhoso para vocês, então aí está!

Não esqueça de deixar seu voto "⭐️" e comentário!

*

Aritmômetro: Foi a primeira calculadora mecânica digital forte e confiável o suficiente para ser usada diariamente em um ambiente de escritório.

Herend Store: Grande fábrica de porcelana, conhecida por seus porcelanatos serem todos pintados a mão.

Regent Street: Uma das maiores ruas comerciais de Londres localizada em West End. Foi construída entre 1811 e 1825.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top