IV - Passeio

30/01/1888 - Domingo

- Vamos! Não podemos atrasar!

- Só um minuto! Estou abotoando meu vestido!

- Por quanto tempo você vai ficar trabalhando com as suas próprias roupas? Você precisa de um uniforme que nem o meu!

- Bom, quem sabe você deva esperar o Conde me contratar, hm?

- Besteira! Eu sei que vai! Agora anda, o senhor Sebastian e o Mestre estão esperando!

- Sim, eu sei! - Fechei os últimos dois botões com pressa e saí do quarto. Como no dia anterior, eu e os outros haviam acordado cedo para a reunião matinal. - Pronto, terminei! Vamos?

- Vamos!

Dessa vez Mey-Rin veio até meu quarto no segundo andar, para me "buscar". Começamos a atravessar os corredores da mansão.

- Ah, ainda bem que é domingo! É meu dia de semana preferido!

- Preferido? Mas você trabalha todos os dias.

- Ah, eu gosto do mesmo jeito! Normalmente os domingos são os dias em que a gente tem menos trabalho, basicamente fazemos o que fica sobrando! Mas, sabe, não sei como vai ser dessa vez, já que graças a você, nós fizemos todas as coisas que estavam pendentes a tempo!

- E quando isso acontece o que vocês fazem?

- Ganhamos folga!

- Ah? Sério?

- Claro! Você não tinha dias de folga onde trabalhava?

- Bem...

Claro que não.

Os nobres de família que servi sempre foram rigorosos, tratavam os empregados como escravos, animais, sem dignidade nenhuma. Me deixava louca com isso, mas tive que me acostumar com o tempo.

E, mesmo fora dessas mansões, sempre havia algum serviço à parte, pedidos da máfia.

Não existia descanso, não existe descanso.

- Ei, gente! Bom dia!

No caminho, Finny apareceu correndo pelos corredores.

- Bom dia, Finny! - Mey-Rin começou a olhar pros lados, como se procurasse alguma coisa. - E o Bard?

- Adivinha! Atrasado de novo, né! Eu tentei acordar ele, mas não consegui!

- Ele sempre se atrasa? Pela forma que vocês contam, parece bem frequente.

- É, o Bard tem um sono bem pesado! E ele ronca muito! Quando a gente começou a dividir quarto eu ficava bem bravo. Mas já me acostumei!

- É, eu percebi. Vocês preferem esperar por ele ou...

- Que nada! Não deixamos o chefinho esperando! - O loiro agarrou a mão de Mey-Rin, animado. - Vem, vamos logo!

- Ai! C-calma ai Finny!

- Anda Amelia, você também... - Finny agarrou meu braço, como fez com Mey-Rin! Foi questão de segundos até que eu sentisse a pressão de sua força. - a gente tem que correr!

- Q-que?! Espera! M-meu punho, Finnian!






[...]






- Bom, acho que não preciso perguntar a nenhum dos três onde está Baldroy, correto?

Senhor Sebastian olhava, com a sobrancelha arqueada, para seu relógio de bolso, não tão feliz com mais um atraso do cozinheiro. Mais uma vez o Conde parecia desinteressado na conversa, com o rosto enfiado em mais um livro.

- Francamente, - O Conde levantou a cabeça e fechou o livro. - eu mesmo vou conversar com ele depois. Mas por agora, não precisamos esperar. Talvez já imaginem, mas devem agradecer a sua colega. Graças a Amelia, todas as tarefas de ontem foram feitas. E vocês já sabem o que isso significa.

- Ah, eu sei! Significa que teremos um dia de folga! N-não é?!

- É. Exatamente, Mey-Rin. E, como já faz um certo tempo que vocês não fazem algo assim, resolvi chamar uma carruagem para buscá-los daqui a uma hora. Imaginei que gostariam de passar o dia na cidade.

- Um dia em Londres?! Jura chefinho?!

Finnian já comemorava em pulinhos.

- Isso mesmo. Agora se arrumem e, óbvio, agradeçam a Amelia.

- OBRIGADA AMELIA!

Finnian se jogou em cima de mim para um abraço, quase me derrubando no chão!

- FINNY! C-CUIDADO COM ELA!

- A-ah! Desculpe, desculpe! E-eu esqueci!

- A-ai!, minha coluna...

Acho que senti toda a minha coluna estalar, acho.

- Chega de baderna. Agora andem, a carruagem chega daqui a pouco.

- Sim, Mestre!

- Sim, chefinho! Agora a gente tem que acordar o Bard! Anda, Mey-Rin, corre e enche um balde de água!

- Ah?! Ah, eu já vou! Espera!

Eles simplesmente saíram correndo pela porta. Não acredito que teria que cuidar daqueles três na cidade! Isso vai...

- Amelia...

A voz do Conde fez um forte eco ao me chamar. Recuperei minha compostura rapidamente.

- Sim, senhor?

- Bom trabalho.

Ele deu um mínimo e mísero sorriso torto.

- Muito obrigada, senhor.

O trabalho árduo valeu, pelo menos um pouco, a pena.

Estou chegando em algum lugar.






[...]






- Ah, eu adoro ir à cidade! Você gosta, Bard?

- ...

Já estávamos na carruagem a caminho da cidade, Mey-Rin com certeza era a mais ansiosa de nós. Ela fez questão de trocar de roupa e fazer com que todos trocassem também.

Tivemos um pequeno de problema antes de sair, mas especificamente, com Finnian e seus sapatos. Ou melhor, os cadarços deles.

Repito, o garoto com super força não sabia amarrar seus sapatos.

- Bard? BARD!

- AH! E-EU, e-eu! O que foi em? Que é?

- Estou falando com você!

- Ah, tá! Desculpe Mey-Rin, ainda me sinto meio bêbado de sono, com essa carruagem balançando só fica mais difícil.

- Sinceramente, o Jovem Mestre já está ficando irritado com você! Precisa dormir mais cedo, parar de se atrasar!

- Eu não tenho culpa!

- Claro que tem! Precisa parar logo com isso, estou ficando cansada de ter que te acordar.

- Pois eu não estou.

- Seu folgado!

- Ei, ei. Vamos parar de discutir, que tal?

- É, Amelia está certa. Vocês tem pego um no pé do outro o mês todinho! Podemos só nos divertir hoje? Vamos só fazer compras e nos divertir! Inclusive, andei pensando em comprar luvas de jardinagem novas!

- Ah, eu fiquei obcecada com aquele vestido que vi da última vez que saímos! Tomara que ninguém tenha comprado ainda!

- Como vocês compram essas coisas?

- Com nossos salários!

- Vocês não economizam? Afinal, uma parcela de seus salários voltam para Conde, não é?

- Que? Não! - Bard começou a procurar por alguma coisa no seu bolso. - A gente não arca com as despesas da casa.

- Ah?

- Isso mesmo! - Mey-Rin completou. - O Jovem Mestre só quer nossos serviços, pagamos dessa forma e só! Já que podemos morar lá sem muito prejuízo, nem sempre pedimos pelo salário, usamos tão pouco que às vezes nos esquecemos, na maioria das vezes ele ou senhor Sebastian tem de nos lembrar.

Como esses três podem causar tanta destruição e não arcar com nada? Salário opcional? Nenhum tostão a menos do salário? O que esse garoto tem na cabeça?

Ah, é claro.

Eles não são simples servos, eles zelam pela vida do Conde como soldados, arriscam as próprias vidas por ele.

Além disso, não entendo porque tanta empolgação para ir a cidade. É a mesma suja, caótica, barulhenta e agitada Londres de sempre. Talvez, para eles, seja mais incomum, já que passam muito mais tempo na mansão. Queria eu poder passar tão pouco tempo nessa cidade podre, como eles.

- Gente! Acho que chegamos! Vem Amelia!

Mey-Rin saiu me puxando pelo braço, enquanto os meninos corriam atrás de nós. Dos três, ela parecia a mais empolgada.

- Mey-Rin, espera! Não precisa puxar!

- Ei, meninas! Espera aí!

- Já que é seu primeiro passeio eu vou comprar alguma coisa pra você! O que você quer?

- Para mim? Não precisa disso, eu estou bem!

- Que nada! Vai ser muita grosseria minha não te dar nada!

- Ei! E nós dois aqui? Vai nos deixar pra trás?

- Bard, abriu uma loja nova na esquina da Fleet Street. Por que não vai com o Finny? Eu e Amelia vamos fazer coisas de garotas.

- "Coisas de garotas"? Tá falando sério? Achei que a gente fosse passear junto! Tsc!

- É uma tabacaria.

Com o que Mey-Rin disse, Baldroy não pensou duas vezes em puxar Finnian pelo braço e ir na direção oposta à nossa.

- Anda, garoto! Vamos fazer coisas de homem!

- Mas, m-mas eu quero ficar com as...

- Nem começa! Hoje é o dia dos homens! Você vai fumar sue primeiro charuto! Tchau meninas!

- Tchau, tchau! Até mais tarde! - Mey-Rin acenou, enquanto eles se afastavam cada vez mais. - Pronto, agora podemos aproveitar, só nós duas.

- Sei. E aonde você gosta de ir quando vem a Londres?

- Ah, tem tantos lugares! Mas normalmente, eu sempre começo tomando um sorvete na loja da senhora Lovett! Já foi até lá?

- Não, nunca fui antes.

- Sério?! E qual sorveteria você prefere?

- Olha, na verdade, eu, b-bem, eu nunca tomei sorvete antes.

- O QUE?!

Todos em volta nos olharam espantados com o grito de Mey-Rin.

É, eu nunca tive dinheiro, tempo ou liberdade para esse tipo de coisa, eu nunca pude e nunca me deixaram provar. Os meus instrutores falavam que eu não poderia ser gorda.

- Olha, se puder, fale mais baixo.

- A-ah! Eu sei, desculpa, desculpa! É que, é um doce delicioso! E é uma pena você nunca ter provado. A gente precisa ir pra lá agora!

- Não se preocupe com isso, o dinheiro é seu e não precisa gastá-lo comigo.

- Claro que não! Você é minha mais nova amiga, quero que você prove meu doce preferido! E você definitivamente não pode continuar vivendo sem provar uma delícia delas!

- Amigas?

- É, óbvio! Lá na mansão todos nós somos! Agora me fala, você gosta de Pistache?

- Ahm, sim. Eu gosto.

- Perfeito, já temos um sabor pra você provar!

Mey-Rin entrelaçou seu braço no seu e seguimos andando juntas. Senti uma ponta de ansiedade subir ao peito, eu provaria aquele doce gelado que minha pequena "eu" sempre teve vontade de provar. Era muito gelado? Será que ardia os dentes? As pessoas dizem que congela o cérebro, será que é verdade?

E...amigas, amigas? Essa garota é mesmo meio, não sei, louca? Talvez só exagerada?

Não sei, algo entre essas duas coisas.






[...]






- Vasculhe tudo, não deixe nada passar.

Me mantive encostado no parapeito da janela enquanto Sebastian vasculhava as malas de nossa "nova inquilina".

Imaginai que manter todos fora seria a oportunidade perfeita para investigar um pouco mais a fundo, descobrir se realmente á algo de errado.

- É o que estou fazendo, mas não vejo nada demais.

- O que achou nessa gaveta? A terceira.

- Bom, ela parece ter bem poucas roupas. Só vejo alguns poucos vestidos, dois pares de sapatos, dois chapéus, um três pares de luvas e algumas roupas íntimas.

- Não é possível que ela tenha tão pouco.

- Quando Mey-Rin chegou não foi muito diferente disso, Mestre.

- É claro que foi. Essa mulher já trabalhou em outros lugares, não faz sentido ela não ter mais de três vestidos, no mínimo.

- Talvez, mas vestidos de alta costura estão mais caros nessa época do ano, afinal é inverno.

- Está procurando desculpas para ela, sendo que ficou se mordendo por causa dela ontem, o dia todo?

- Me "mordendo"?

- Você não parecia muito feliz em ver que uma humana conseguia fazer as coisas que você faz, e melhor que você.

- Só achei que meu Mestre não gostasse de legumes, aliás, tinha certeza disso.

Provavelmente ele se referia ao jantar de ontem a noite.

- E não gosto, não gosto dos seus.

Sebastian levantou as sobrancelhas e sorriu tranquilo. Não exatamente a reação que se esperava.

- Bom, sendo assim devo parar de preparar seus doces. Afinal não gosta do que cozinho.

Desgraçado.

- Tsc! Estamos fugindo do assunto! Em fim, ela vai lavar roupas como uma condenada tendo apenas isso para usar. Não é apropriado.

- Pretende fazer algo a respeito, senhor?

- Ainda não. Já verificou o quarto?

- Sim. Nenhuma tábua solta ou piso, nada embaixo da cama ou dos armários, nada a esconder.

- Nada, nada mesmo. Que coisa!

- Mestre me desculpe, mas age como se quisesse realmente encontrar algo, mas a princípio não há nada para encontrar. E mesmo que tenha, descobrirá cedo ou tarde, por mim ou talvez pelos outros.

- Óbvio que não quero encontrar algo, mas ainda me soa estranho. Ninguém pode ter tão pouco, ou saber tanto.

- Eu posso.

Exibido.

- Me poupe, ela é uma doméstica, não faz sentido que saiba de metade das coisas que sabe, independente do quão interessante ou prático for. Eu preciso saber tudo sobre ela, tudo.

- Mas já sabemos, senhor. Ela trabalhou no orfanato London Brigde, confirmado pela dona da instituição; encontramos registros de seu trabalho no antigo hospício de Londres; e por fim Adrien Piquet e Antonieta Furquim confirmam sua passagem pela França. Além de outras cartas de recomendações. Acredito que não há mais o que descobrir. A não ser...

- A não ser?

- A não ser que queira que procure mais afundo. Sobre sua infância, talvez?

- Não, isso me interessa.

Seria inútil, não faria diferença alguma no que está acontecendo agora. Mera perda de tempo.

- Então senhor, se for aliviar sua angústia posso lhe garantir que, por ora, ela não representa nenhuma ameaça.

A não ser ao seu ego e orgulho, não é? Inferno! Ainda me sinto incomodado, mas ao mesmo tempo parece desperdício continuar correndo atrás de migalhas. Não há mais onde ou o que procurar. Vou ter que me contentar, pelo menos por enquanto.

Ela fez um trabalho competente, controlou os outros empregados e conseguiu impedir que os três colocassem a casa a baixo sem a ajuda de Sebastian, o que é um grande ponto, além de cozinhar bem.

Aceitar sem baixar a guarda.

- Que seja. Será inútil ficar correndo atrás de migalhas. Vejamos como ela vai se sair nos próximos dias. Guarde tudo, não pode parecer que estivemos aqui. E me traga aquela torta de ontem, com Earl Grey.

- Yes, my Lord.






[...]






- E então? Gostou?!

- Não gosto tanto assim de doces, mas não é ruim. Só tem uma coisa...

- O que?!

- Meus dentes estão doendo. É normal?

Fomos a tão sorveteria que Mey-Rin havia dito. Ela tinha escolhido chocolate, e eu, pistache. Na verdade, ela escolheu por mim. Eu não costumo não gostar muito de doces, mas esse não é dos piores.

- Ah, é sim! Na primeira vez pode parecer meio estranho. Mas, o importante é saborear, não é? Sempre que o Jovem Mestre vem aqui conosco ele pede as mesmas coisas, chocolate com morango! Inclusive, foi ele que me trouxe aqui pra tomar meu primeiro sorvete.

Pelo menos por enquanto Mey-Rin era a pessoa com quem mais tinha intimidade na casa. Ela fala bastante, é empolgada e de novo, fala bastante. Talvez, se eu pudesse tentar avançar um pouco mais, perguntar algo mais íntimo.

Se não arriscar vou ficar parada no mesmo lugar.

- Mey-Rin, me desculpe se parecer muito evasiva mas eu gostaria muito de saber, bem... - Me concentrei, pensando bem no que diria. - como você conheceu o Conde. Como foi?

Não sei se foi uma boa ideia.

Mey-Rin pareceu mais séria, sua cabeça se abaixou lentamente, os óculos escorregavam por seu nariz e pude, pela primeira vez ver seus olhos, que me encarando. Olhos marrom café, profundos como se pudesse, por alguns instantes, ler meus pensamentos e encontrar minhas verdadeiras intenções. Os mesmos que mataram homens a quilômetros de distância, estavam agora fixos em mim.

- Por que quer saber?

Uma, duas, cinco, oito palpitações mais rápidas em meu peito. Nervosismo?

Faz tempo que não me sinto nervosa.

Controle-se, Ayuni. Respire. Continue falando!

- Bom, eu só queria poder conhecê-lo melhor, entende? Vocês todos tem tanto carinho por ele, tanta devoção, tanto afeto. Eu queria muito poder saber como é essa sensação!

Ela seguiu me encarando por segundos que pareciam minutos, e que não demorariam muito para parecer horas. Mas, para meu alívio, ela finalmente ajeitou as lentes e seu rosto e pude voltar a encarar o vidro fosco.

- Foi a tanto tempo que às vezes esqueço algumas coisas.

- Não tem problema, - Ela parecia desconfortável. É melhor não insistir muito. - v-veja, se não quiser contar não precisa...

- Tudo bem. Algumas coisas eu apenas não quero lembrar, sabe? Eu era nova, não tinha família andava com os mesmos trapos podres por dias, não, semanas, talvez meses. Não me lembro direito. - Ela encarou sua taça, quase vazia e com alguns resquícios de chocolate, ficando quieta por alguns segundos. - Eu tentei sobreviver já que ficar nas ruas não é muito fácil, ainda mais em East End. Acabei fazendo coisas que não gosto de lembrar e de que não me orgulho, tudo pra ter o que comer. Depois de um tempo as coisas só pioraram, até que um dia eles me encontraram. Acho que resumindo, foi isso.

Preciso insistir um pouco mais.

- "Eles"?

- O senhor Sebastian e o Jovem Mestre. Pra minha sorte, eles viram em mim alguma chance, potencial, que nem eu sabia que tinha. Eles achavam que eu poderia melhorar.

Órfã, humilhação em troca de sobrevivência, esforço mínimo para, pelo menos, sobreviver. É, eu conheço essa história, o problema é que nem todos têm a sorte que Mey-Rin, supostamente, teve.

Onde entra essa bizarra habilidade com armas de fogo? Foi algum tipo de treinamento? E por que eles a tirariam das ruas sem mais nem menos? Qual seria o sentido?

Tem algo de errado nessa história.

- Eu nem imagino o quanto você deve ser grata a eles.

- Não mesmo. Eles me deram comida, banho e roupas novas. O senhor Sebastian me ensinou a ler e a escrever, enquanto o Jovem mestre me deu um presente incrível. Meus óculos. Acho que posso dizer que eles "abriram meus olhos", em todos os sentidos. Hehe! Por isso que eu gosto muito de trabalhar lá. Sinceramente, não pretendo sair daquela casa nunca.

- "Nunca" é bastante tempo. Não acha?

- Só é bastante tempo quando você odeia o lugar que você está. Quando você gosta o "nunca" passa muito rápido.

É tão estranho,mórbido. Como alguém pode massacrar um grupo inteiro de homens e mulheres sem hesitação e em paralelo ser o bom "moço", ou melhor "garoto", caridoso e amado pelos servos?

Qual o sentido? O objetivo? O motivo?

- Obrigada por me contar. É realmente admirável vindo de alguém tão jovem como ele. O mundo precisa de mais homens como o Conde.

- É verdade. Precisa mesmo. - Mey-Rin deu um longo suspiro como alguém que acaba de tirar cinco pedras das costas. Ela se levantou, arrumou seu vestido e ajeitou seu chapéu. Sua expressão mudou mais uma vez, para a animada e alegre serva de antes. - Agora, que tal irmos a alguma outra loja?

- Por mim, pode ser. - Dei de ombros e sorri. - Aonde você quer ir?

- Eu pensei em passarmos na Fortnum & Mason! Que tal?

- Você não queria ver um vestido? Além disso, a loja fica em Piccadilly Circus. Deve estar lotada a essa hora!

- Nada disso! A essa hora e em pleno domingo muitos estão na igreja! Vamos aproveitar enquanto as ruas estão tranquilas, anda! Ah, e além disso eu queria ver os jogos de chá que andam vendendo por lá. As coleções de inverno são sempre lindas!

Seguimos juntas até Picadilly Circus, estávamos a poucas ruas de distância, então foi um trajeto bem curto. Enquanto caminhávamos Mey-Rin tagarelava sobre a última vez que havia ido a loja, sobre os chocolates deliciosos que comprou por lá, as velas aromatizadas, o champanhe saboroso que o conde havia dado a ela de natal e outras coisas que soavam bem inúteis.

Seu jeito de viver, as tão poucas preocupações, os luxos que tinha mesmo sendo só uma serva. Coisas que poucos tinham.

Mey-Rin não parecia ser uma pessoa ruim, não mesmo. Mas me despertava algo, parecia raiva, mesmo que não fosse. Eu não quero sentir raiva dela, ela não fez nada, ela é só um peão que preciso usar, e na verdade ela tem sido muito útil. Não tenho motivos para ter raiva dela...

Talvez inveja.

Inveja de sua sorte, vida tranquila e falta de preocupações?

Pode ser.

Que sentimento mais inútil.

- Amelia? Amelia!

- A-ah! Desculpa! Disse alguma coisa?

- Nós chegamos! Te chamei três vezes, mas você não ouviu. Está se sentindo bem?

Ela tentou colocar suas mãos em minha testa para sentir minha temperatura.

- Não se preocupe, eu só me distraí, só isso! Vamos entrar?

Dei uma rápida olhada para a frente da loja, parecia mais chique que as pequenas lojas que frequentei em East End. Com as paredes perfeitamente pintadas de branco, com arranjos de flores e arbustos podados em volta, com a placa perfeitamente polida e as letras de "Fortnum & Mason" escritas em dourado. Com certeza não tenho um centavo para gastar nesse lugar.

- Ah, se é assim, então tudo bem. Mas se não estiver bem, pode me contar!

- Obrigada, mas garanto que não é nada. Agora me diga, o que tem de tão bom por aqui?

- Ainda bem que perguntou!

Mey-Rin pegou em minha mão mais uma vez e me puxou para dentro da loja, que parecia maior ainda por dentro.

Prateleiras e mais prateleiras, mostruários e mais deles para todos os lados. Tantos produtos, tantas coisas, muitas informações.

- Olá! As duas senhoritas estariam procurando por algo?

Uma moça gentil de cabelos loiros e vestido azul nos abordou.

- Bom dia! Obrigada, mas eu e minha amiga estamos apenas a passeio!

- Ah, claro! Mas, caso precisem de algo podem me chamar. Afinal nosso estoque está cheio este mês! Temos jogos de chá, doces, geleias, velas, perfumes e...

- Perfumes?! Oh, eu estava esperando que chegassem! Da ultima vez que vim todos já tinham se esgotado.

- É um artigo que vende bastante em nossa loja. Mas para sua sorte uma nova remeça acaba de chegar. Gostaria de dar uma olhada?

- Sim, com certeza! Amelia, vamos?

- Ahm, p-pode ser.

Mey-Rin ficou durante vinte minutos experimentando pequenas fragrâncias de perfume, sei disso porque passei todo esse tempo olhando fixamente para o relógio da loja. Depois de conversas avulsas com a vendedora, mais fragrâncias e cheiros enjoativos de florais e cítricos ela finalmente escolheu algo e dei graça a deus por isso. Só nesses minutos espirrei mais de dez vezes.

- Satisfeita com a sua escolha, senhorita?

- Sim! Muito obrigada pela ajuda, não teria conseguido escolher sozinha.

Sim Mey-Rin, todos percebemos.

- Não há de quê. Mas, se me permite, a outra senhorita não teria interesse em nada?

- Ah? Eu?

- Sim Amelia! Mal te vi olhar pras estantes. Tem certeza de que não vai querer nada?

- Absoluta. Não precisam se preocupar comigo! Agora, vamos pagar seu perfume?

Tentei responder na maior simpatia que pude, para não deixar que percebessem o quão impaciente eu já me sentia. Nariz coçando, espirros, olhos coçando, só quero sair desse lugar.

Fomos ao balcão pagar a compra de Mey-Rin.

- Quinhentos e trinta libras, senhorita! Gostaria de uma embalagem?

Quinhentos e trinta libras em um perfume. É o fim da picada.

- Sim, por favor! Enquanto isso vou pegar o dinheiro! Com licença.

Mey-Rin abriu sua bolsa de mão e começou a procurar a quantia com certa dificuldade, demoraria um pouco. Me rendi e resolvi pelo menos passar meus olhos um pouco mais pelo ambiente, então...

- Moça, com licença. Estes diários atrás de você estão à venda?

Atrás da mulher haviam vários pequenos cadernos enfileirados. Perguntei por pura curiosidade.

- Ah, isto? São pequenas lembranças para viajantes, algumas pessoas que vêm de longe gostam de comprá-los. Mas sim, estão à venda.

- E quanto custam?

- Cinquenta e seis libras.

- Cinquenta e seis libras em um diário pequeno? O preço não está exagerado?

A mulher fechou a cara, não pareceu muito feliz com meu comentário.

- Não sou eu quem escolhe os preços senhorita, sinto muito. Além do mais esta é uma loja de alta categoria, se não tiver dinheiro para pagar teria recomendado que não entrasse. Se preferir, existem algumas opções que podem vender por mais barato, em East End.

Ela falou em um tom de desdém, superioridade. Mulher arrogante! No que ela está pensando?!

Normalmente eu responderia a altura, mas Mey-Rin pode se assustar e...

- Não acha que é grosseria da sua parte tratar clientes dessa forma?

- Mey-Rin?!

Ela passou em minha frente ignorando totalmente minha voz, seguiu andando até estar pressionada contra o balcão, olho a olho com a mulher.

- Eu frequento esta loja há dois anos e em momento nenhum imaginei que estava sendo atendida por pessoas tão baixas.

- B-baixas?! Quem a senhorita acha que...

- Eu acho que se a Fortnum & Mason caiu tanto em seu nível de atendimento, então nenhum servo Phantomhive deveria voltar a frequentá-la. Afinal mancharia a imagem de nosso patrão, pessoa que vocês com certeza não estão prontos para servir.

- D-disse "Phantomhive"?! M-mil perdões! Eu não imaginei que as senhoritas, d-digo ela o-ou...

- Não precisamos de perdão. Apenas adicione o diário a minha compra e aumente o preço, depois disso podemos ir embora.

Sem falar uma palavra a mulher fez o instruído por Mey-Rin. Pegou uma das cadernetas e adicionou a embalagem.

- Quinhentos e oitenta e se-seis, senhoritas.

Mey-Rin tirou a quantia de sua bolsa e deixou no balcão.

- Tome. Obrigada pelo seu tempo. - Ela entrelaçou seu braço ao meu. Ainda me sinto espantada. - Vamos, Amelia.

- Por favor, p-perdoem minha inconveniência.

- Não precisa se desculpar. Garanto que nunca mais precisará nos ver, aliás, não precisará ver nenhum Phatomhive novamente! Boas vendas!

Mey-Rin deu seu sorriso mais simpático e grudada a mim saiu da loja.

- Nossa! Eu não suporto pessoas mal educadas! É insuportável, né?!

- É, a-acho sim.

- Algum problema?

- Não, nenhum. Olha, m-muito obrigada por isso, foi bem gentil da sua parte ter feito aquilo.

- Ah, não se preocupe. Eu teria feito o mesmo com qualquer pessoa! Odeio esses tipos de situação, me dá nos nervos! Nunca mais vamos voltar nessa loja, existem outras muito melhores!

As mudanças repentinas de humor de Mey-Rin me espantaram desde o início da manhã. Nunca imaginei que ela agiria daquela forma, me defendendo sem mais nem menos.

Foi gentil de sua parte.






[...]






- Nossa, minhas pernas estão doendo.

Reclamei, com vontade de tirar os sapatos e jogá-los para fora da carruagem. Passamos a manhã toda nas ruas visitando lojas e fazendo compras. Fizemos uma pausa à tarde para almoçar, fomos ao porto observar os navios e depois tive o resto das horas gastas com Mey-Rin me apresentando mais algumas de suas lojas preferidas como a Harrods Store, onde gastou mais da metade de seu dinheiro.

Já perto das cinco nos encontramos com Baldroy e Finnian na Flet Street, eles também tinham feito suas compras. E juntos fomos ao ponto de encontro com nossa carruagem, para finalmente ir embora.

- As minhas também, eu deveria evitar essa coisa de usar saltos, eu sempre preferi botas.

- Justo você, Mey-Rin?

- É, acho saltos pouco práticos, nem sei porque insisto!

- Dá pra ver que vocês duas se divertiram bastante, hein?

- Demais! E vocês? O que compraram?

- Eu comprei minhas luvas novas!

Finnian tirou de sua embalagem um par de luvas vermelhas e quadriculadas, que se não me engano pareciam combinar com sua bermuda.

- E eu comprei um cinzeiro! Ele é demais... - De dentro da mesma bolsa que Finny, Baldroy retirou um cinzeiro de prata. - bonitão, não é?

- Ah, finalmente! Eu não aguento mais varrer as cinzas que seu cigarro espalhadas por aí!

Mey-Rin reclamou. Ela e Baldroy pareciam estar quase sempre se desentendendo.

- Ah, por Deus! Não é minha culpa!

- Claro que é! Você vive com esse cigarro pendurado na boca por aí, na maioria das vezes você nem fuma! Só fica mordiscando e espalhando sujeira!

Finnian revirou os olhos e fez uma cara de enjoo, como alguém que já deve ter visto aquela cena mais de mil vezes.

- Eu já disse que o chato do Sebastian não me deixa fumar na cozinha!

- Não o chame assim! E é óbvio que ele não quer que fume na cozinha, vai empestear tudo! Além disso, você sabe que o Jovem Mestre tem asma!

Asma? Não sabia disso. Uma informação a mais.

Eu não quis esse caderno simplesmente pela marca ou pelo fato de ser bonito. Quis porque em casos como esse vale a pena anotar cada ponto de minha experiência. Talvez alguns lembretes como a asma do Conde; a arma embaixo do travesseiro; os tiques de Baldroy com o cigarro; a hipermetropia de Mey-Rin; os benefícios estranhos dos empregados; suas histórias de vida e coisas desse tipo.

Nada pode passar em branco. Nada.

- Você é louca, mulher!

- Como você ousa!

- Ei, vocês dois! Parem de brigar ou eu, a-aAHH!

A carruagem passou por um buraco e Finnian quase caiu para fora do banco e Mey-Rin continuou discutindo com Baldroy, tentando arrancar o cigarro de sua boca enquanto ele continuava a ignorando, brincando com seu cinzeiro.

Pelo menos eles são um pouco divertidos, apesar de idiotas. Francamente, o que há com as pessoas dessa casa? Quanta dualidade.






[...]






- Quatro de Julho, é?

- Isso mesmo. É quando comemoramos a independência do meu país. É sempre uma grande festa com música, dança, comida e muita bebida!

Havíamos chegado mais tarde do que o esperado em casa. Uma das rodas da carruagem quebrou no percurso e nada se tornou mais fácil quando Finnian simplesmente quebrou um pedaço da roda tentando ajudar o cocheiro.

Chegamos tarde da noite e não ouvimos um barulho sequer. O mordomo não apareceu e o conde provavelmente já estava recolhido em seu quarto. Mey-Rin e Finnian pareciam dez vezes mais exaustos e optaram por dormir mais cedo, por outro lado eu e Baldroy chegamos mortos de fome, por isso resolvemos lanchar alguma coisa e conversar um pouco.

Preciso ter afinidade com todos.

- Hahaha, parece divertido! Você não sente falta de lá?

- As vezes, mas eu gosto daqui. Londres é bacana, os ingleses que são meio chatos as vezes! Sem ofensas.

Eu sequer sou inglesa.

- Imagina! Mas realmente, já conheci ingleses da alta nobreza extremamente arrogantes.

- Deve ter vindo pra cá ansiosa então, com medo de ser algo ruim. Né?

- Bem, não posso mentir e dizer que não. Mas fico feliz que aqui as coisas sejam diferentes, estou gostando bastante.

- Que bom! Mey-Rin está bem feliz com você aqui, ela sempre quis ter uma amiga na casa.

- Nenhuma outra mulher trabalhou aqui antes?

- Não que saibamos. Somos os mesmos desde que conhecemos o Jovem Mestre. Dá pra dizer que você tem bastante sorte!

- É, eu imagino! Mas fico feliz por termos nos dado bem, ela é uma boa moça.

- É mesmo, haha! Ela é adorável, às vezes é um pouco desajeitada, mas não tem más intenções. Ela se esforça bastante o tempo todo.

- Vocês dois brigam bastante, não?

- Ah, n-não é nada demais! São só discussões bobas, você sabe, coisas da convivência. Mas agora que você está aqui pode ser que ela pegue menos no meu pé!

- Haha, é, nós temos nos distraído bastante. Mas avisei a ela que não criasse expectativas, afinal nem sei se o Conde vai realmente me contratar.

- Não pense assim, ele com certeza vai. Parece bem satisfeito com o seu trabalho.

- Mey-Rin estava contando sobre ele hoje. Ela parece gostar bastante de trabalhar para o Conde.

- Todos nós. No início nós três éramos "pessoas sem terra", sem ter para onde ir ou o que fazer, mas ele deu um rumo a todos nós. Somos muito gratos. Acho que falo por todos quando digo que somos bem felizes. Às vezes até penso que se somos gratos a ele, Sebastian deve ser dez vezes mais.

Finalmente algo que vale a pena ouvir, informações. De longe o mordomo era a peça mais interessante dessa casa, um total poço de mistérios.

O que o Conde fez por ele? De onde ele veio? Por que está aqui? Quem é Sebastian Michaelis?

- Como assim?

- Ah, não sei. Meio que Sebastian se importa muito com o Mestre, muito mesmo. É fiel como um cachorro. Mas nem sei o motivo, na verdade nenhum de nós sabe direito. Mas independente disso, todos nós gostamos e o respeitamos da mesma maneira. Talvez pra mim nem tanto, sempre o achei meio metido, mas não posso ser ingrato e dizer que ele nunca fez nada por mim, até porque ele já fez até demais.

Então a um padrão. O Conde escolhe a dedo seus escudeiros, pessoas que estão totalmente perdidas e que possam ter algum potencial a mais, os conquista com boas ações, na verdade imensas boas ações e então faz com que eles se tornem devotados e fiéis servos. É isso?

Mais eficaz que o medo, apenas o respeito. É isso, esses servos o respeitam.

Mas se esse é seu padrão, por que ele me contrataria? Arg! Chega por hoje. Ainda preciso tentar dormir.

- Está ficando tarde, preciso me deitar.

- Boa noite! Durma bem!

- Ah, outra coisa, sugiro que tome um chá de camomila. Acho que o senhor Sebastian não está gostando muito dos seus atrasos.

- Tsc! Novidade! Mas vou tentar mesmo assim, obrigado.

- De nada, boa noite.

Subi as escadas e voltei ao meu quarto, o qual finalmente decorei o caminho para chegar. Abri a porta do cômodo, tudo em ordem e exatamente como havia deixado.

Mey-Rin havia me feito o favor de deixar meu presente em minha cama. Me sentei no colchão macio e comecei a desembrulha-lo.

Um caderno um pouco maior que minha mão, provavelmente umas duzentas páginas, a capa vermelha tinha uma textura que se assemelhava com couro e uma pequena fita estava costurada a ele, provavelmente para marcar as páginas.

A questão é, onde eu guardaria essa coisa? Ter algo assim para anotações tão específicas é um perigo em potencial, um motivo de suspeita. Armário? Muito fácil. Embaixo do travesseiro? Muito suspeito. Em baixo da cama? Pior ainda.

É melhor não escrever por enquanto.

Estou exausta, quero me deitar.

Deixei o caderno em cima do criado e fui até minhas malas para trocar minhas roupas, me sentia sufocada.

Mey-Rin insistiu desde o início da manhã para que pudesse escolher minhas roupas e com tanta insistência ela ganhou, me vendeu no cansaço.

Meias compridas de algodão, pantalettes, espartilho, anáguas e saltos fechados. Isso apenas por baixo. Por cima um de meus poucos vestidos, verde escuro com mangas compridas; luvas de algodão, cachecol de lã e uma capa em volta dos ombros para proteger-me contra o frio incômodo de Londres.

Sem dúvida o inverno era uma das épocas que eu mais odiava. Sempre que precisava sair me sentia usando mais de vinte quilos de tecido, pouco prático e irritante para alguém como eu.

Roupas assim me sufocavam.

Soltei um longo e prazeroso suspiro de alívio ao sentir o espartilho afrouxar em minha cintura, a capa ser jogada longe e o cachecol arrancado de meu pescoço, perdi metade do peso que carreguei no corpo durante horas a fio.

Desfiz meu penteado e soltei meus cabelos pela primeira vez no dia. Uma doméstica não anda por aí com cabelos soltos, não é profissional.

E, eu não gosto.

Já com o corpo nu e liberto de tanto peso corri atrás de meu pijama, estava frio demais para simplesmente não usar nada.

Vesti minha camisola de algodão, prendendo botão por botão, minha pequena manta de veludo, antiga e meio surrada, enfim, fui ao banheiro realizar minha higiene. Escovei os dentes, penteei meus cabelos e os prendi em uma trança.

E novamente, coloquei a cadeira embaixo da maçaneta.

Finalmente teria um pouco de descanso.






[...]






- Anda, putinha! Levanta!

- E-eu, eu não...

Ele desferiu mais um chute.

- EU MANDEI VOCÊ LEVANTAR! Ou você quer que eu faça com você do mesmo jeito que fiz com os velhotes, hm?

- N-não! Por, p-por favor...

- A é. O jeito que eles gritavam, que imploravam. Você lembra?

- Não, não, n-não! Arg! Cof, cof!

- Ah, mas eu acho bom lembrar. Por que se você não obedecer, agarrar aquela maldita arma e acertar a desgraça do alvo, eu vou fazer com você do mesmo jeito que fiz com eles. Devagar, doloroso e cheio de...

- AHHH! NÃO! CALA A BOCA! P-PARA! EU, e-eu...

Pulei para frente aos gritos. Meu coração estava acelerado, era difícil de respirar e meu corpo balançava violentamente, de um lado pro outro. Olhei em volta, a cama confortável, as velas acesas, o papel de parede bege claro e o lustre, estou na mansão Phantomhive.

Foi só um pesadelo. Eu não deveria ter gritado tão alto.

Apesar de estar dormindo, eu me sentia cansada. Meu corpo suado, visão embaçada, mãos trêmulas e cabelos completamente desgrenhados.

Meu coração batia tão acelerado, tão forte que poderia doer. Eu preciso me acalmar, preciso de algo que me faça relaxar, algo que me coloque na cama de novo.

Leite quente.

Sai da cama, olhei para minha manta jogada no chão, devo tê-la tirado durante o pesadelo. A peguei e cobri meu corpo novamente, olhei para a cômoda ao lado da cama e peguei o candelabro, com as velas que ainda choravam acesas e assim sai.

Olhei para um lado, depois o outro. Escuridão total. Sempre odiei a forma como a escuridão me incomodava. Não há nada nela, nada.

Usando o único caminho que sabia encontrei as escadas e desci ao primeiro andar. Atravessei o salão e ao chegar à sala de jantar pude ver uma luz distante vindas de frestas da porta da cozinha, ainda tinha algo aceso.

Entrei e não havia ninguém.

Eu não tive tempo de explorar melhor a cozinha desde que cheguei e por isso não sabia onde estavam muitas coisas, normalmente Baldroy estava por perto para ajudar.

Que tal a prateleira ao lado da pia?

A abri, mas não vi nada demais além de temperos e ervas.

Os armários presos a parede, do lado esquerdo. Quem sabe?

Nada de novo, só açúcar, algumas comidas conservadas em potes de vidro e um vidro de...

- Precisa de ajuda?

-A-AH! O que, q-que...

O maldito mordomo. Ele estava ao lado do fogão, com uma caixa em mãos. A mesma figura impecável, polida e estranha com suas luvas, o mesmo fraque sob medida, relógio pendurado no bolso, calças de alfaiataria e gravata perfeitamente reta.

Será que assustar pessoas era algum tipo de passatempo seu?!

- Por que está acordado?

Perguntei tentando esconder o desconforto e a hesitação em trocar qualquer palavra com ele.

- Bom, talvez eu deva lhe perguntar o mesmo... - Ele deixou a caixa, aparentemente pesada, em cima da mesa a sua frente e retirou seu relógio do bolso. - são três e cinco da manhã. Sinto lhe informar mas o toque de recolher foi a algumas horas atrás. O que a senhorita faz acordada?

Três e cinco da manhã e o homem ainda está de uniforme?

- Leite. Não consigo voltar a dormir, preciso beber algo.

- Pesadelos?

Sim, mas não o contaría.

- Não. Só acordei e não consigo pregar os olhos de novo. E você?

- Trabalhando.

- As três da madrugada?

- O trabalho de um mordomo nunca, realmente, termina. Sempre há algo para ser feito.

- Entendi.

Que desculpa ridícula, que homem esquisito.

- Bom... - O mordomo virou de costas e alcançou, sem dificuldade, a leiteira que estive procurando, deixada em uma das prateleiras altas da cozinha. - creio que seria grosseria minha não lhe oferecer uma xícara de leite com mel depois desse pequeno susto. O que acha?

- Agradeço, mas não me assustou.

- Não há necessidade de se envergonhar. Todos sentimos medo... - Ele colocou a porcelana sobre uma das bocas do fogão, e a acendeu. - é algo natural, humano.

Declarou em um ar de superioridade, como se não fizesse parte dos mencionados. Que ridículo.

Acho que vou perguntar algo arriscado.

- Acha que as pessoas tenham medo de você?

- De mim? - Ele levantou uma única sobrancelha e seguiu sorrindo, como se aquela pergunta fosse recorrente. - Não, claro que não. Afinal... - Ele passou ao meu lado, com os olhos divagando de um lado para o outro, como se falasse sozinho, como se eu não estivesse ali, como se minha presença fosse igual ao vento. - eu sou apenas um mordomo e tanto.

Passando por mim chegou até um dos grandes armários de prataria. Cuidadosamente pegou uma bandeja e nela depositou todas as peças de um jogo de chá. A xícara, pires, chaleira, açucareiro e bule para leite.

Não seria mais fácil pegar apenas uma xícaras? Que homem metódico.

Enquanto cantarolava calmamente, colocou a bandeja em cima da bancada de mármore de pia e conferiu a bebida que fervia no fogão.

"London Bridge is Falling Down". Era a música que cantarolava.

- Está pronto.

Com um pano dobrado em mãos ele segura o cabo da leiteira e despeja o líquido quente no bule. Com tranquilidade transfere o líquido do bule para a xícara.

Fiquei tão concentrada em cada um de seus movimentos que se quer me atentei a sentar à mesa.

- Vai beber de pé?

Ele perguntou, de pé em frente a mesa com a bandeja perfeitamente equilibrada em mãos.

- A-ah, perdão... - Puxei uma das cadeiras e me sentei. O mordomo serviu a bandeja à minha frente, com a bebida já posta. - obrigada.

Antes que pudesse levar a xícara a minha boca, o mordomo colocou um pequeno vidro de mel à minha frente.

- Já estava se esquecendo.

E realmente, estava tão avoada que havia esquecido do mel.

- Obrigada.

Peguei o vidro e despejei um pouco do doce líquido viscoso no leite. Bebi, era quente, doce, relaxante.

O mordomo não disse nada, apenas sorriu e foi para trás de mim mais uma vez. E apesar de continuar degustando minha bebida e sentir minhas pálpebras pesadas, me concentrei no sons de seus movimentos em minhas costas.

Passos, sons de ranger, talheres ou talvez um prato? Ele provavelmente estava no armário da direita. O que tinha mesmo lá? Que me lembre, apenas jogos de chá.

Passos voltando, se aproximando. Até...

- Se incomoda se... - Ele estava de pé em minha frente, se quer pude o ver caminhando em minha visão periférica. Em três piscadas ele simplesmente apareceu ali, de pé, com uma xícara azul escura, sobre um pires da mesma cor. - me juntar a você?

Perguntou calmo, com o mesmo sorriso fechado porém simpático e costumeiro. Era uma das poucas feições que o via fazer. Se não fosse seu sorriso artificial, era uma cara séria, fechada, de alguém com poucas simpatias e muito menos palavras.

- Não. Fique à vontade.

Ofereci, enquanto soprava minha bebida quente,próxima de minha boca.

Bebi mais um pouco.

Puxou a cadeira a minha frente e pairou a xícara na mesa. Em um ato de educação, peguei o bule por seu cabo e despejei a bebida na porcelana do homem.

- Mel?

- Não, muito obrigado.

- Não há de que.

Ele levou a xícara para bem perto de sua boca, mas quando pareceu estar prestes a colocá-la nos lábios a afastou, olhou diretamente para mim.

- Algo errado?

Questionei.

- De maneira alguma. Me dei conta de algo, nada demais.

Será que devo arriscar?

- Posso perguntar o que seria?

Levei a porcelana aos meus lábios mais uma vez. Precisava de mais mel.

- É cômico. Normalmente sou eu quem serve as pessoas. Entende?

- A-ah, sim. Compreendo.

Peguei o vidro e despejei um pouco mais na xícara. Onde estava a colher?

- Pois então, servos não são acostumados a serem servidos.

- Realmente.

- E, já que mencionei, o que tem achado?

- Sobre?

- Bom, sobre os outros servos, as tarefas. Certamente teve bastante trabalho no outro dia. Pude perceber.

Está curioso, mordomo? Que caminho vai traçar com suas perguntas?

- Estou satisfeita, não é algo cansativo como imaginei. Mey-Rin e os outros empregados são bons colegas. Além disso... - Me perdi em minha fala por alguns segundos quando me vi cutucando meu brinco. Deveria parar com isso. - é, como estava dizendo, acredito que todos parecem gostar bastante de seu patrão. Acredito que se sinta como eles.

Tirei os dedos da joia em minha orelha.

Ele soltou uma, quase, imperceptível risada nasal.

- De fato, Jovem Mestre é um Mestre de bom coração.

- É perceptível, ele parece ter feito algo por todos aqui.

- De fato, fez. Condizente com a conduta de um homem Phantomhive, honrável.

Não encontrei a colher, então bebi um pouco mais da xícara da maneira que estava. Será que valerá a pena arriscar?

Quero algo, nem que sejam migalhas. Quero um pouco sobre quem, de fato, era o misterioso mordomo Sebastian Michaelis.

- É, o que ele teria feito por você?

O mordomo levou a xícara ao pires, se antes estava apenas um pouco distante de levá-la aos lábios, agora estava bem longe disso.

Manteve o mesmo sorriso no rosto, mas agora com um olhar mais profundo, assombroso.

Me parecia algo sadista. Eu, sem dúvida, havia cometido um erro.

Senti como se o ar estivesse mais denso, o ambiente parecia mais sombrio e mais uma vez pude sentir meu coração batendo forte e rápido em meu peito, a euforia e excitação, se fazendo rapidamente presentes.

Era a adrenalina?

Agarrei a xícara com força, preparada para quebrá-la na metade e usar como arma se fosse necessário; o leite estava quente, poderia jogar em seu rosto e atacá-lo enquanto se debatesse; poderia agarrar o bule e quebrá-lo em sua cabeça; e se por fim ele fosse mais rápido teria de lutar corpo a corpo.

Se não me engano sua altura deveria estar entre um e oitenta e seis à um e noventa. Com certeza maior e mais forte. Mas ainda posso enfrentar.

- Um propósito de vida.

De repente todo aquele clima pesado, aquela sensação de que algo estava prestes a acontecer ou de que algo explodiria, simplesmente foi embora.

Sumiu e se esvaiu com a branda voz do mordomo.

- Como?

- Jovem mestre me deu um propósito de vida. Pessoas como eu vivem de algo assim. Um propósito.

Me recompus para continuar a conversa, precisava parecer menos alarmada.

- É algo bem nobre.

- Acha?

- Claro. Todos precisamos de um propósito.

- Certamente, é motivador. E se me permite, qual seria o propósito da senhorita?

Me envolvi em uma zona na qual não deveria. Com aquela pergunta idiota criei meu próprio beco sem saída, um aval para que ele perguntasse o que bem entendesse depois de uma pergunta tão intima.

Foi uma gota de intimidade dada, um pequeno aval, um risco em potencial.

Que eu deveria estar preparada para enfrentar.

- Bom, no momento eu gostaria de viver uma vida mais quieta, tranquila, simples. Longe da agitação londrina. Nada demais.

- Uma pena.

- C-como?

- Se me permite dizer, esse propósito não combina com a senhorita. Me parece alguém muito interessante para querer passar tão despercebida.

Descarado! Que tipo de comentário é esse? Preciso me manter!

- Sinto decepcioná-lo, senhor Sebastian, mas as aparências podem enganar. Não sou interessante, sou apenas uma serva.

- Certamente, as aparências realmente enganam.

Levei minha xícara aos lábios mais uma vez, mas dali nada saiu.

Estava vazia.

Aproveitei a oportunidade para uma fuga.

- Obrigada pela bebida. Muito gentil de sua parte, senhor Sebastian.

- Eu que agradeço a agradável companhia noturna. Boa noite, senhorita Amelia.

A entonação e a sonoridade de sua voz proferindo meu nome causou-me arrepios, apesar de não ser esse meu nome.

O tipo de arrepios que se sente ao ouvir um ranger desconhecido, uma cena perturbadora ou sussurros vindos do nada.

Soava sobrenatural.



























*

Mais um capitulo pra conta! Sete mil palavras, do jeitinho que os leitores esfomeados gostam! Não sei vocês, mas eu estou gostando bastante do desenvolvimento da amizade desses quatro, e vocês?

Bora bater um papo sobre o capítulo!

Primeiramente, eu queria falar sobre o vocabulário dos personagens. Acho que vocês perceberam que o vocabulário do Ciel, Sebastian e Amelia é mais "polido" que o de Mey-Rin, Finnian e Baldroy.

Eu tomei essa decisão, porque achei que faria mais sentido. No mangá, Mey-Rin e Finnian chegaram na mansão sem saber ler ou escrever, Sebastian teve que ensinar essas coisas a eles, enquanto Baldroy era apenas um fazendeiro que de hora pra outra virou um grande soldado. Então concordamos que nenhum deles estava em um ambiente de vocabulário muito "ampliado", né? Por isso dei a liberdade para que eles falassem de maneira um pouco mais "preguiçosa", ou melhor, com palavras mais simples e mais casuais que formais. Como usar "pra" e tá" ao invés de "para e está", parece pouca coisa, mas faz diferença. Achei que dessa forma, seria até mais fácil identificar qual personagem está falando o que! Espero que tenham achado essa ideia interessante.

Segunda coisa! Desde que comecei a imaginar a Fanfic, eu já tinha em mente que Mey-Rin seria um dos primeiros contatos mais fortes da protagonista! Isso pelo fato das duas serem as únicas mulheres na casa, e admito que entre os meus "headcanons", Mey-Rin ficaria super feliz se existisse outra empregada na casa, além dela. Por isso eu tentei criar um laço entre as duas mais cedo que com os outros empregados.

As duas são pessoas bem diferentes e isso é bem visível, mas ainda assim podem se dar bem. Ayuni precisa descobrir coisas, entender a logística daquela casa e saber o motivo pelos servos serem soldados tão fiéis à Ciel.

Acho que ficou perceptível pra todos que em alguns momentos nossa protagonista ficou incomodada com Mey-Rin. Incomodada com seu jeito, suas atitudes, talvez com sua vida.

Neste capítulo nossa protagonista experimentou um sentimento interessante. Inveja.

Ayuni a enxerga com outros olhos. Vê Mey-Rin como alguém que esta sempre falando sobre "coisas bobas", tem poucas preocupações como serva e tem muitos luxos, mesmo sendo apenas uma serva.

Ela vê Mey-Rin como alguém que passou por algo semelhante a ela, mas que teve muito mais sorte que ela. E isso, ah isso a incomoda.

Mas ela sabe o quanto esse sentimento é inútil e sabe que sentir isso ou não, não fará com que as coisas melhorem ou que ela recupere o que perdeu.

Não esqueça de deixar seu voto "⭐️" e comentário!

*

Senhora Lovett: Uma pequena referência posta por mim (autora) a Sra.Lovett do musical "Sweeney Todd, O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet".

Fortnum & Mason: Loja de departamentos de luxo em Piccadilly, Londres. Uma das lojas mais tradicionais da cidade, sendo fornecedores da família real e nobres há mais de 150 anos.

Piccadilly Circus: Uma praça de Londres, onde se cruzam as seguintes ruas "Regent Street", "Shaftesbury Avenue", "Piccadilly" e "Haymarket". É uma das zonas mais movimentadas da capital britânica

Harrods Store: Uma das mais famosas lojas de departamentos do mundo, em Londres. Seus preços são bastante elevados em geral.

Flet Street: Uma rua em Londres, Inglaterra, batizada em homenagem ao rio Fleet. Foi a sede da imprensa britânica até à década de 1980. Também muito famosa pelo musical de "Sweeney Todd"

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