Relâmpago
Não sei dizer quantas vezes a palavra idiota já passou pela minha cabeça. Esse maldito orgulho sem valor, que me faz tomar decisões duvidosas, ainda vai me matar.
Era para ser um fim de semana diferente. Quando sugeri, para o seleto e incrível grupo de amigas que tinha, subir uma montanha e comemorar os 10 longos anos de amizade, a resposta foi positiva. Devia saber que na semana anterior ao evento, de repente iriam surgir compromissos de todos os tipos as impedindo de comparecer.
Por um certo ponto até compreendo, quem iria levar a sério uma promessa firmada com três garrafas de vinho no organismo e uma súbita dose de aventura? Aparentemente, apenas eu. Que apesar de protestos e pedidos para que não fosse, insisti em fazer a trilha sozinha. Na minha mente fantasiosa e tola voltaria com uma incrível história que as faria se arrepender de não ser minha companhia nessa jornada.
Uma revelação dos céus, um momento etéreo e inexplicável no monte que quase tocava as nuvens. Ao contrário do sonho, o que veio de encontro a mim foi uma tempestade.
Um trovão, alto e poderoso me fez encolher os ombros, os galhos acima da minha cabeça se agitaram fortemente junto vento, fazendo cair gravetos e folhas soltas. Molhada até praticamente os ossos, posso garantir que o lamento é inteiramente meu.
Um choque de dor corria a minha panturrilha a cada passo, subia do calcanhar me fazendo ter vontade de parar ali no meio do caminho, aguardar a chuva passar e pedir socorro.
Mas é claro que não ia acontecer, não é a melhor ideia usar um aparelho eletrônico na chuva, e também, não daria ainda mais assunto para que minhas amigas pegarem no meu pé.
No topo da montanha havia um restaurante, um dos motivos de escolher esse local em específico, assim que chegasse lá poderia recuperar a dignidade e continuar a minha história de superação.
— Nem mesmo o vento cortante ou a lama que impede os passos de avançar foram o suficiente para me derrubar — disse para mim mesma, apoiando numa árvore e parando de andar por um instante para recuperar meu fôlego. Falando com o mais completo nada como se fosse um conselheiro — Se eu montar uma história com isso, as garotas podem até se emocionar. Quem não se identifica com uma personagem cheia de dificuldades? É uma pena que o meu poder de protagonismo dessa vez parece inexistente.
Do alto, algo soou, um grasnar agudo que me fez levantar a cabeça imediatamente. Nos galhos mais baixos da árvore em que estava apoiada havia uma águia imponente, a cabeça repleta de penas alvas e o restante do corpo escuro como se tivesse mergulhado em tinta nanquim.
Os olhos dourados miravam os meus, engoli seco quando vi o animal abaixar a cabeça e as garras se movimentarem no galho na minha direção. As íris ferozes da ave pareciam furar todas minhas defesas, julgando com intensidade as camadas de personalidade que juntas formam um ser humano.
Magnífica, e, ao mesmo tempo, assustadora.
Mais uma vez o bico se abriu, acompanhando um raio poderoso que pareceu cair naquela mesma montanha. O barulho foi estrondoso e o clarão vindo do relâmpago iluminou por um segundo toda área.
A cada momento que se passa, a situação parece ficar ainda mais perigosa. Respirei fundo mantendo as mãos nos ouvidos por alguns segundos, acalmando meu coração e também recobrando meus objetivos.
Mesmo que tivesse presenciado a força da natureza a ave não se mexeu, ainda de peito estufado tinha uma postura quase orgulhosa. Foi então que vi que em uma de suas asas havia um graveto preso, entre as penas, quase atravessando.
— Ugh, isso deve doer — comentei em voz alta, sem estar esperando uma resposta. Por alguns minutos ficamos nos olhando, a chuva ainda caía torrencialmente. Se a águia não demonstrou nenhuma intenção de me atacar, podia tentar ajudar.
Torci os cabelos e ajustei os fios grudados no meu rosto para trás antes de erguer a mão na direção da ave. O movimento fez com que se mexesse, as asas abrindo um pouco como se quisesse parecer mais intimidadora. Recolhi a mão instintivamente.
— Estou tentando te ajudar, um de nós preso na montanha já é o suficiente — ralhei esfregando as pontas dos dedos juntos e estiquei o braço mais uma vez a fim de pegar a ponta presa à asa.
Se tinha a habilidade de compreender minha boa intenção? Não sei, mas consegui tirar o graveto e manter todos os dedos da mão. Ao menos essa vitória posso chamar de minha.
Um clarão surgiu novamente, em seguida o barulho violento, esse pareceu ser ainda mais próximo que o anterior, pois senti o chão embaixo dos meus pés tremer. Cobri as orelhas e pressionei os olhos me encolhendo no tronco em seguida buscando uma proteção inexistente.
Preciso chegar ao topo da montanha o quanto antes.
A águia não estava mais no galho, deve ter se assustado e com a asa livre, voou. Esfreguei as mãos na roupa molhada, e me levantei de uma vez. Se for para morrer com um raio na cabeça, que seja com honra.
Em momentos como esse gostaria de ser um pouco como as personagens que escrevo, que apesar das grandes dificuldades e empecilhos sempre conseguem atravessar suas atribulações. Fortes, fazendo seu próprio destino, conquistando seu espaço. Sem precisar se preocupar em mudar apenas para ser aceita por um estranho.
O mercado editorial é mais cruel do que se pode imaginar, sem perceber estava escrevendo para agradar outras pessoas e não o que realmente queria.
Comecei como uma saída pessoal, evolui, minha motivação sendo os sorrisos que vinham com as linhas tortas que contam histórias. Quando vi, humildemente estreava no mercado com um romance, nem um grande sucesso e nem um completo desconhecido, mas uma história de amor que fez as pessoas continuarem a olhar meu trabalho.
Só que as tendências mudam, é necessário travar os dentes quando dizem que deve apenas desistir e continuar.
Consegui manter o nível nas publicações posteriores, mas dessa vez o que estão me cobrando é a criação de algo que mais ninguém pode fazer. Antigamente poderia considerar ser um incentivo, um voto de confiança, porém hoje, já não tenho bravura o suficiente para sonhar dessa maneira.
Arrependimento existe, não posso ousar dizer que não. Contudo, mais do que lamentar pelo que não posso mudar, prefiro acreditar que dessa vez posso criar algo realmente valioso. Sem me preocupar com o dinheiro, glória, ou a maldita editora sanguessuga que só se importa com a quantidade de vendas.
Subir a montanha devia ser o meu primeiro passo da mudança, antes de passar meses mergulhada numa nova história.
Um passo torto e acabei escorregando por conta do caminho lamacento, os joelhos batendo com força no chão e as mãos apoiando sobre as pequenas pedras impedindo que caísse de rosto na sujeira. A chuva gelada batia nas minhas costas, o cabelo preso se soltou fazendo as pontas completamente encharcadas se misturarem com a terra.
Frio, mal sentia as pontas dos dedos. Sob a tempestade meu corpo tremia e o único calor vinha das lágrimas que caíam dos meus olhos.
— Parece que nem essa pequena felicidade me é permitida.
— Precisa de ajuda?
Primeiro vi o par de tênis na minha frente, surpresa por ter uma segunda pessoa na montanha levantei o rosto. Foi nesse instante que um novo raio atingiu o chão, iluminando as costas da silhueta, trovão vindo logo em seguida. Da sombra escura apenas dois olhos amarelos permaneceram brilhantes, um calafrio percorrendo a minha espinha e medo impedindo qualquer movimento.
— Desculpe, mas ficar no chão numa tempestade como essa não é seguro — a voz grossa tinha um tom leve e animado por trás que pareceu cortar até mesmo o som da chuva. Suas mãos se ergueram para a cabeça puxando o capuz revelando cabelos acinzentados que variam de tons. Não muito mais velho, ou mais novo que eu. O homem se ajoelhou sem se importar com o lamaceiro ou suas roupas.
— Está ferida? — perguntou olhando para meu corpo. — Você está congelando.
Ele tirou a mochila das costas e em seguida a jaqueta, a colocando sobre os meus ombros.
Minha consciência pareceu voltar — Estou bem, só tropecei. Pode ficar com a sua jaqueta.
— Essa blusa é térmica — explicou com um sorriso, indicando a veste escura que protegia do pescoço até os pulsos. — Parece precisar dela mais do que eu.
O tecido era impermeabilizante, parar de ter a chuva caindo nos ombros já foi um alívio e tanto.
— Obrigada — aceitei sua ajuda para levantar.
— Essa tempestade pegou todo mundo desprevenido — disse, ajeitando os cabelos já molhados —, tem uma cabana aqui perto. Estava indo me abrigar lá quando vi você.
— Cabana? Ainda estamos longe do topo.
— Aquele é o restaurante, essa, os antigos guardas florestais costumavam usar de base. Faz alguns anos que venho fazer trilha aqui, então conheço a montanha como a palma da minha mão.
Fiquei um pouco incerta sobre sua fala, porém não parecia ter nenhuma má intenção em sua voz, ou qualquer gesto que me deixasse em alerta.
— Não é muito, mas melhor do que ficar na chuva não acha?
— Sim — respondi ainda com desconfiança e olhando para céu de nuvens escuras —, parece que não vai parar tão cedo.
— É perto, consegue andar até lá? — o tom de preocupação se fez presente, seu rosto muito expressivo validou o sentimento. Pois suas sobrancelhas caíram e o meio de sua testa franziu.
Levantei a mão para a alça da mochila a apertando assentindo positivamente, a jaqueta dele era tão grande que me cobria por inteiro mesmo com o peso extra nas costas.
A chuva fria e impiedosa que havia nos castigado até aquele momento, também não cessou, pelo contrário pareceu ficar ainda mais intensa. O homem estava certo quando disse estar perto, após passar alguns metros de trilha horizontal no meio das árvores apareceu uma cabana de madeira.
Avermelhada, e visivelmente abandonada. Se não fosse o desconhecido que apareceu, nunca ficaria sabendo daquele lugar. E quem sabe o que poderia acontecer na minha caminhada até o restaurante no topo.
— Parece trancada — anunciou assim que subimos a varanda, as madeiras rangeram pelo nosso peso, parecia em melhores condições do que imaginei.
O homem abaixou e abriu a própria mochila, tirando de dentro um equipamento de montanhismo que se assemelhava a uma garra, tinha o cabo curto e torto ajustado para o formato da mão e na ponta se abria um aparente bico serrilhado.
— Você vai arrombar? — perguntei apertando o tecido da jaqueta entre os dedos, repentinamente surpresa por sua ação. Posicionado ao lado da porta ele de alguma maneira conseguiu inserir a ponta da ferramenta no vão.
— Posso me resolver com o pessoal depois, não podemos ficar no frio — com o ombro pressionado na madeira e um movimento de alavanca a fechadura cedeu com um estalo abafado. Quando a porta abriu ele se desequilibrou um pouco para dentro, se não fosse seus reflexos, teria caído de uma maneira fenomenal.
— Foi mais fácil do que pensei — limpou a garganta o rosto ficando levemente corado de vergonha.
Poeira e coisas velhas, mas sem goteiras, apesar da umidade estar presente por conta do material da cabana, o interior estava seco. Sem esperar muito o homem já começou a rumar pelo local, não que houvesse muito para ver. Era um grande cômodo, uma lareira no centro e uma porta que provavelmente levava para um banheiro ao lado de uma segunda que até então tinha seu interior desconhecido.
— Pelo menos madeira é o que não falta — minha companhia comentou agachado na frente da lareira. De novo ele tirou algo da mochila, conseguindo acender um fogo intenso não muito depois.
— Você parece ter de tudo dentro dessa bolsa — comentei olhando com mais cuidado a sua forma agora iluminada.
Ele era alto, ombros largos e músculos bem definidos. Com a roupa térmica colada em seu corpo era como observar uma estátua feita de obsidiana.
Seus olhos dourados desceram e subiram a minha figura — É a sua primeira vez? É um pouco de loucura subir sem estar apropriadamente vestido, principalmente na trilha profissional.
Então algo clicou na minha cabeça, quando cheguei eu devia ter visitado a entrada e recebido orientação dos guias. Mas ainda irritada por estar ali sozinha, ignorei. Esse é o motivo de terem dois caminhos.
Abaixei a cabeça — Sou uma idiota.
— Por favor, não foi isso que eu quis dizer! — exasperado ele balançou as mãos — Acontece, eu mesmo já fiz muita besteira até aprender.
Respirei fundo voltando a sentir as lágrimas queimar o canto dos meus olhos — Se eu não fosse tão teimosa, nada disso teria acontecido.
— Posso ouvir sua história se quiser me contar, mas tem algo que precisa fazer antes.
— O quê? — sequei o rosto com as costas da mão.
— Tirar a roupa.
Todos os livros e documentários de crimes que li ou assisti na vida, vieram à mente. Teria eu andado direto para um assassino?
O coração acelerou e eu dei um passo para trás, o martelo de montanhista estava no chão e longe do meu alcance. Ele seguiu meu olhar e de repente deu um pulo para trás.
— Não é isso! Está completamente molhada, a temperatura vai cair, se não se secar pode ficar seriamente doente. Olha só — e então ele puxou a barra da blusa térmica a arrancando de uma vez, revelando o torso atlético. Os músculos do abdômen bem definidos e o peito firme me saltando os olhos.
Senti o rosto ficar vermelho — Você é um pervertido ou o quê?
— Estou falando a verdade — ele se abaixou e pegou o martelo empurrando na minha direção —, pode ficar com isso se te fizer ficar mais segura.
Até agora, não tinha nenhum motivo para desconfiar de suas ações, mas ser extremamente persuasivo é uma característica da maioria dos assassinos em série. Essa conversa doce que acaricia os ouvidos e consegue tudo o que deseja.
Peguei a ferramenta do chão — Não vou pensar duas vezes em te acertar com isso.
— Aposto que não — concordou levantando as duas mãos no alto —, mas de verdade, você devia tirar a roupa.
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