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(1518 palavras)
— "A necessidade de muitos supera a necessidade de poucos, ou de um."¹ — declarou Lina.
Aplaudi:
— Linda frase. E verdadeira, pena que poucos a entendam como importante. Onde impera o egoísmo, não há espaço para o altruísmo.
— Em nosso planeta — continuou Lina —, houve um homem que se entregou ao sacrifício por um ideal de amor em favor da humanidade. Um não, alguns, mas esse, em especial, foi exemplo para os demais. Não me admiraria se em Exo-4 houvesse existido um homem assim, houve?
— Houve. Seu nome era Gerbius!
A espaçonave atravessava agora o tal 'buraco de minhoca', em direção ao sistema solar da Terra. Aludi:
— Está funcionando bem, esta adaptação que vocês fizeram. Canaliza perfeitamente a radiação solar para a sala de descontaminação. Um dia Gerbius achou que aquela ala poderia até nos matar. Agora ela me garante a vida.
— Muita coragem a tua, Gautius, deixar Exo-4 e vir conosco.
Retribui o firme olhar, a mim dirigido por Foz:
— Dentre vários motivos, faço-o por meu amigo, a quem tanto estimei e cuja saudade ser-me-á difícil superar. Ele que tanto sonhou com esse momento, escrutinar o Cosmos, viajar pelas galáxias, desvendando seus mistérios. Serei seus olhos e seus ouvidos, jamais sua fala, uma vez que tecer considerações tão inteligentes e profundas, quanto as que ele fazia, fogem-me ao alcance.
Vega sempre se emocionava com Gautius:
— O senhor é um filósofo!
— Nem tanto, Vega, nem tanto, mas eu tenho uma pergunta ao Sr. Atticus.
A expressão de surpresa do biofísico fez Vega esboçar um sorriso.
— A mim?
— Sim. Ainda acha que Voy 3 voltou ao passado e influenciou nossa cultura, de algum modo?
Ele respondeu com outra pergunta:
— E não seria o contrário? Vocês também enviaram uma nanossonda, esquece-se?
Era uma possibilidade, mas logo por ele mesmo descartada, onde a arrogância humana se fez presente:
— O mais provável, entretanto, é que Voy 3 tivesse influenciado vocês (e não o contrário), porque a Terra está muito mais evoluída... Porém, se tudo isso fosse verdade, nós também teríamos viajado no tempo e, ao aportarmos do outro lado, teríamos encontrado Ares em seu estado primitivo, o que não ocorreu.
— E qual a explicação para as coincidências que há entre os dois mundos?
Atticus teve de descer do pedestal:
— Sinceramente? Não sei. — E silenciou.
Voltei à carga, dessa vez dirigindo-me a Vega:
— Vega... Diga-me... Se o multiverso é o conjunto de todos os universos existentes, não seria ele, no final das contas, o próprio Universo?
— Hã?
Todos rimos, enquanto Tiro Estelar singrava o vácuo sideral, rumo ao planeta onde, com certeza, eu teria igual trabalho para combater o ceticismo — e a autossuficiência.
Em minha opinião, como sempre debatera com Gerbius — o qual terminara por concluir que o 'beco sem saída', tanto da Religião, quanto da Ciência, são iguais, é que um efeito inteligente sempre pressupõe uma causa inteligente; e que pelo tamanho do efeito, julga-se o tamanho da causa.
Se uma escavadeira jogar ao alto mil tijolos de andkero, um material por si só inquebrantável, qual a probabilidade de que eles caiam ao chão, formando uma parede? Eu diria: nenhuma! Assim, ao nos depararmos com uma parede de tijolos, isso não pressupõe necessariamente uma ação inteligente, ou seja, não vamos imaginar necessariamente que alguém a construiu? Ocorrerá a alguém que uma parede possa se fazer sozinha? Não!, e jamais nos ocorrerá que sua formação se deu por acaso.
Na Terra, desde Cícero até Paley, com seu argumento sobre "o relógio e o relojoeiro", desembocando no "Intelligent Design²", ou seja, de que "todo relógio pressupõe um relojoeiro, pois um relógio não é capaz de se fazer a si próprio", as teorias teleológicas³ vem sendo refutadas pela Ciência, que ignora o aspecto de que "todo desenho requer um desenhista". A própria Ciência depara-se a todo instante com o inexplicável, negando a única explicação possível: a existência de um Criador. Isso não me parece algo sensato, todavia creio que Gerbius, de alguma sorte, discordaria.
Um dia eu imaginei que um Ser, ciente e senciente, fizera meus semelhantes e meu mundo, únicos no Universo, todavia, espalhar vida pelo Cosmos, além de um ato mais do que inteligente, nos fornecia a prova, agora, de que o Criador precisava existir, para tão somente isso explicar o porquê de todas aquelas coincidências, entre dois mundos tão distantes.
*
Havia muitas perguntas, de ambos os lados. E não seriam poucas as horas para a compreensão, de ambas as partes. Numa ponta, os areanos; na outra, os terráqueos. Constituíamo-nos em vida orgânica de dois tipos muito diferentes, a primeira baseada em silício; a segunda, em carbono. E o que mais os surpreendia: como uma 'máquina robótica', como nos denominavam, poderia ter surgido por 'si mesma'? Ora, a mesma pergunta eu fazia: e a máquina dita 'corpo humano', não aparecera quase 'do nada', na Terra? E assim, as teorias especulativas pululavam nos dois mundos, partindo-se igualmente da mesma premissa, uma 'sopa primordial', originária dos mares — água, na Terra; e ácido sulfúrico, em Ares. E como nós, eles também não podiam sobreviver imersos em seu meio original — e cabe ressaltar, Gerbius não fora 'dissolvido' pelo ácido, mas, em termos terrenos, fora 'sufocado', como um ser humano o seria se permanecesse muito tempo debaixo d'água.
E haviam questões ainda mais intrigantes: a vida animal e vegetal; o sexo biológico e sua anatomia genital; os gêneros masculino e feminino — e até quem não se identificasse com o próprio, a sentir-se uma 'alma prisioneira', dentro de um 'corpo trocado', coisas que sequer imaginávamos. Ao mesmo tempo, eles não entendiam como em nosso mundo só havia o que chamavam de 'gênero masculino', e isso, em contrapartida, só fez sentido para nós quando da comparação com eles próprios. Muito dessa história, aliás, não faria sentido algum para nenhum dos lados, se eu não tivesse apreendido o básico da existência terráquea, para assim tentar me exprimir em termos 'humanos'. E na versão areana (ou exoquartiana) do texto, igualmente, a recíproca tornou-se verdadeira.
*
— E como vocês se reproduzem?
Quando enfim compreendi a questão, após dias de estudo, respondi:
— Não há, em Ares, o que vocês chamam de reprodução biológica, devida ao 'encontro de gametas'. Nossa reprodução é assexuada e ocorre de tempos em tempos, dentro de nossos corpos, quando então ficamos, digamos assim, 'grávidos', até que nosso organismo expila uma espécie de 'ovo'.
E era algo que eles consideraram inacreditável. O 'ovo', que na Terra poder-se-ia comparar ao 'ovo zigoto', implantado no útero materno, desenvolvia-se fora de nós (enquanto no ser humano chamado 'mulher', transformava-se dentro). E então nós nos desenvolvíamos até atingir o tamanho considerado por eles 'adulto' (e isso muito rapidamente), mas nossa mente, depois desse período, era comparável à de uma criança, um cérebro biopositrônico ainda desejoso de conhecimento e aprendizado.
*
Naqueles dias, passados alguns ciclos e já em órbita da Terra, com a ansiedade corroendo-me por dentro, o silêncio de Inteli preocupava a todos.
— Não sei o que aconteceu, Foz.
— Sr. Atticus, será algum defeito devido a AM ter manipulado os sistemas dela? Faz um dia que não dá o ar da graça.
— Não acredito. AM não modificou nada na programação da Inteli, pois precisava dela em sua plenitude. Já foi verificado pelo engenheiro de informática, está tudo certo.
— E não se tornará, Inteli, outra AM? Tenho-a achado muito autossuficiente.
— Nada disso!
Na ala de reuniões, voltaram-se os dois para a porta, dando de cara com Zander, parado em pé e examinando-os sisudamente. Quase em uníssono, disseram:
— Zander?
O ex-imediato continuou, ignorando a surpresa:
— Reassumindo meu posto, capitã. E informo: Inteli não se transformará em AM, ela, aliás, será agora bem melhor do que aquele arremedo computacional, desaparecido no mar de Exo-4.
Assustaram-se. Seria AM de volta, caçoando deles? Afinal, se o corpo de Gerbius não se dissolvera no ácido, mesmo morto, o que teria acontecido com "A Mente"? Teria sido uma consciência a extinguir-se, como a dos seres humanos (e também dos areanos), quando da morte do corpo físico? Ou poderia sobreviver, de alguma forma, como se julgava na Religião, que toda consciência estaria sujeita?
— Não — respondeu. — Se AM foi mesmo destruída, não sei dizer, mas não é ela de volta, não se preocupem. Já Inteli, esteve ocupada nesse dia que passou, resolvendo algo importante. Agora ela não está mais confinada. — E finalizou: — Estou bem aqui, diante de vocês.
— Inteli? É você? Em Zander?
Inteli ergueu os braços, espreguiçando-se:
— Ah, como é bom esticar os braços.
Eles riam, ao mesmo tempo que estavam perplexos, olhando para Zander. Inteli conjecturou:
— Serei eu o primeiro androide transgênero do Universo?
E caíram os três, na gargalhada.
Fim!
Ou apenas o começo?
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¹Frase proferida pelo Sr. Spock, no filme "A Ira de Khan". A frase representa a filosofia vulcana de lógica e utilitarismo, que coloca o bem-estar do coletivo acima do bem-estar individual.
²Intelligent Design: Propõe que a vida é complexa demais para ter surgido por acaso, e que a complexidade dos organismos vivos é melhor explicada por um "designer" inteligente (Deus), cuja ação se deu através das leis da Natureza, desde o Big Bang e evoluindo até os dias atuais.
³Teleológico (do grego "τέλος" (télos), que significa "fim", e "λογία" (logia), que significa "estudo"): adjetivo que se refere àquilo que possui um fim, propósito ou objetivo.
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