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Música tema desta obra:  Star Trek "The Motion Picture", trilha sonora n. 5: "Ilia's Theme", de Jerry Goldsmith (escute no link acima).

(1325 palavras)     

   — Afinal, você crê em Deus, Gerbius? — perguntei ao amigo, enquanto conversávamos à mesa, no intervalo de nossas atividades na agência aeroespacial PkA¹.

— Depende, Gautius. Primeiro, defina "Deus".

— Ora, Deus é a Inteligência Suprema, Causa Primária de todas as coisas.

Gerbius refletiu:

— Hum... E sendo Deus um Ser inteligente, deve essa inteligência possuir propósitos, estou certo?

— Isso sem dúvida — enfatizei. — Tudo na Criação possui um propósito, ainda que não o consigamos vislumbrar.

— Certo. E por que não o conseguimos?

— Porque nos faltam capacidades.

Gerbius riu:

— Ora, se o Criador não nos capacita com recursos para o apreender, como quer que creiamos Nele?

Por que Gerbius dava sempre tantas voltas para responder?

— É aí que entra a fé, meu amigo. Conforme disse o grande mestre: "Felizes são aqueles que não viram e creram". Também é um dos propósitos divinos ser crido sem se mostrar, mas... você fugiu da pergunta inicial...

— Se acredito em Deus? — reavivou. — Sim, acredito, mas não em um Deus pessoal e providente. Creio numa força superior, impessoal, que não necessariamente a tudo provê ou determina.

— Ao menos já é alguma coisa... — ri. — Mas isso já não é quase dizer que tudo se move pela força natural das coisas?

— É, é sim. É o chamado "Determinismo Natural"...

Interrompi:

— Boas palavras para definir o ateísmo, isso sim! Um determinismo materialista, tão somente.

Gerbius não se abalou:

— No final das contas, não me parece que se diferencie tanto assim do determinismo religioso, o chamado 'destino', no qual um ser com 'propósitos' alinhavou tudo desde sempre, não acha?

— Gerbius, tenha em mente: propósito não significa destino, mas vontade. O propósito divino apenas nos conduz, ele não nos impõe. A escolha final sempre será nossa.

— Escolha? Com opções finais previamente definidas, e por exemplo, céu e inferno? Já não há aí também um determinismo? No mínimo, um tolhimento da liberdade plena.

Rebati:

— Ao menos com Deus existe alguma liberdade...

— Será? Olha, particularmente acredito que a liberdade é mera ilusão, uma vez que tudo já ficou 'escrito', desde a grande explosão. O Big Bang², no fundo, foi aquilo que a tudo escreveu — resumiu.

A conversa ia esquentando, mas logo recebeu um balde de água fria, assim que adentrou a sala, correndo e exasperado, o engenheiro aeroespacial Jormús:

— Gerbius, rápido, para a sala de controle.

Meu amigo assustou-se:

— O que houve, Jormús?

— O radar! Entrou em nossa órbita um objeto voador não identificado.

— Um Óvni? — repeti, assombrado.

Gerbius olhou-me, igualmente espantado:

— Vamos lá, agora mesmo!

Enquanto seguíamos em ritmo acelerado pelos corredores, depois subindo uma rampa em caracol em direção ao pavimento superior, perguntei, ofegante:

— Não será um asteroide?

E quando já adentrávamos a sala de controle, Gerbius respondeu:

— Um asteroide que sem mais nem menos resolve entrar em órbita? Muito improvável. — E voltou-se para Jormús: — Estranho não termos observado antes a aproximação desse objeto.

Ambos se assentaram defronte aos painéis, enquanto eu, um quase intruso, acompanhava-os da porta. Jormús elucidou:

— Apareceu aparentemente do nada, a uma velocidade de 70.000 km/h, vindo em rota de colisão com nosso planeta, quando então desacelerou para 27.600...

— A velocidade necessária para se manter orbitando... — ponderou. — Um ato inteligente? — E voltou o rosto para mim, inevitavelmente lembrando-se de outra de nossas incontáveis contendas... Naquela manhã a pergunta fora sobre Deus, mas noutra oportunidade tivera sido sobre a vida extramundana. Existiria? Como religioso, meu posicionamento era de que a vida se constitua num privilégio de nosso mundo, uma opção do Criador, nos fazer únicos, ao que ele respondera: "Não me parece lógico", e complementou: "É antes de tudo uma questão probabilística: muito improvável não haver ocorrência de vida inteligente em outro lugar, a considerar a grandeza do Cosmos" — e tinha acabado de falar: "O Universo é infinito", assertiva que ele usara como justificativa.

Meu amigo era um gentleman, afinal, não havia agora em sua expressão qualquer ironia, devido ao fato de eu sempre afirmar inexistir vida inteligente além de nossas fronteiras atmosféricas. Contudo, diante daquele fato, era provável, outrossim, que dali a pouco eu tivesse de oferecer a mão à palmatória. Talvez não só a mão, quem sabe o pé também. Por outra, vi em seu olhar uma real inquietação, talvez a preocupação com uma iminente invasão alienígena. Indaguei:

— Alguma possibilidade de nos atacarem, Gerbius?

Ele analisou as informações em uma tela:

— Não sei, Gautius, talvez não. Temeria mais se fosse uma frota, mas parece ser apenas uma espaçonave. E não é grande.

Rebati:

— Que importam a quantidade e o tamanho, se tiverem à bordo um artefato nuclear? Ademais, esta pode ser tão somente a primeira a chegar.

Jormús estava assustado, num misto de empolgação:

— Seja quem for, sabe o que faz. Mantém órbita a 39.000 km de altitude, sem qualquer risco de colisão com nossos satélites artificiais.

Ocorreu-me, num relance, o risco que nossos astronautas poderiam estar correndo, à bordo da estação espacial Khorus.

— De colisão, nenhum. A Khorus orbita em baixa altitude, a apenas 400 km — informou-me Jormús.

Senti-me aliviado, porém, não por muito tempo. Gerbius empurrou sua cadeira para trás, fazendo-a deslizar sobre o chão de aço, ao mesmo tempo girando o corpo para acessar um terminal do outro lado da sala:

— Meus amigos, a nave mudou seu curso e velocidade. Baixou para 30.000 km de altitude; e reduziu para 24.000 km/h.

Jormús arfou:

— Kýrie mou³! Abaixo de 27.000 km/h irá cair, não vai conseguir manter a órbita, a menos que possua foguetes sobressalentes.

— Ou vai queimar na entrada — aludi.

Gerbius permanecia sereno, incólume:

— Nem uma coisa, nem outra. Nem vai cair, tampouco queimar. Está de fato adentrando nosso espaço aéreo. Finalidade: desconhecida! E me pergunto: que tipo de combustível usa? Como consegue essas manobras?

Assustamo-nos, pois urgia definir: adentrando ou invadindo? Ele prosseguiu:

— Possuem energia para seguir ou parar, conforme lhes aprouve. E não há rastro de queima de combustível, assim, não há foguetes ou retrofoguetes, não na forma como conhecemos. Devem também contar com um excelente sistema de proteção térmica, algum tipo de escudo, com material altamente resistente ao calor, pois mantém sua velocidade sem aparente perda da integridade do casco. Ah!, agora estão diminuindo para... O quê? Somente 20.000 km/h? Com certeza uma tecnologia que ainda não possuímos.

"E que muito nos ajudaria em viagens ao espaço", certamente ele pensara. Havia questões que afetavam diretamente o setor de finanças, onde eu trabalhava, e por isso mesmo eu tinha conhecimento dos grandes entraves pecuniários aos voos espaciais: inicialmente, a propulsão!

Para se atingir a órbita e desprender-se da gravidade planetária, demandar-se-iam grandes foguetes e enormes quantidades de nitrazina (e também tetróxido de nitrogênio), consequentemente, enormes tanques de combustível. E quando da reentrada, uma nave, desde que reutilizável, teria que adentrar a atmosfera valendo-se do próprio atrito com o ar como método de frenagem, haja vista ser inviável ter retrofoguetes, tão grandes, pesados e potentes quanto os que se utilizaria para subir. Porém, a fuselagem de uma nave que utilizasse como freio o próprio ar, estaria sujeita a temperaturas superiores a seis mil graus e ainda não tínhamos tecnologia para escudos térmicos tão eficientes, capazes de evitar que elas se transformassem em enormes bolas de fogo, tal qual estrelas cadentes.

Isso posto, era inegável o interesse científico de Gerbius, que sobrepujava qualquer receio da parte dele com nossos visitantes. Ou seriam invasores? A maneira de classificar seria dada conforme seus atos, se amistosos ou não, ao que ele ponderou:

— Evolução tecnológica não implica necessariamente em ética e nobre conduta.

Nossas preocupações, no entanto, estavam só começando. A espaçonave traçava um curso direto para a PkA, o que fez soar o alerta vermelho em toda a corporação.

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¹PkA - Praktoreíon Aerodiastimikís (Πρακτορείον Αεροδιαστημικής): Agência Aeroespacial, em grego transliterado.

²Big Bang (Grande Explosão): Teoria que descreve a origem do Universo a partir da expansão violenta de uma partícula muito densa, primordial, tendo ocorrido a há 13,8 bilhões de anos.

³Kýrie mou (Κύριε μου): Meu Senhor ou Meu Deus, em grego transliterado.


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