Separados




WASHINGTON, 1905.


MEUS PÉS NÚS BATEM CONTRA O CHÃO FRIO, minha respiração é pesada e rápida. A camisa branca que uso está com respingos de sangue fresco.

Uma mão agarra a minha com força, ele não olha para mim enquanto corre. Ele olha para escuridão a frente.

Meu rosto está manchado de lágrimas e sangue. Uma coisa se repetia na minha mente ininterruptamente:

Eu sou um assassino, sou um assassino.

Quase não percebo quando entramos em um beco escuro, Alec me puxa contra ele. Me pressionando tão forte que sinto o frio dentro de mim se aquecer.

Vai ficar tudo bem. Ele diz isso repetidas vezes.

Ficamos escondidos ao lado da lixeira, esperando a morte nos agraciar com uma presença inevitável.

Observo uma sombra grande na parede.

Alec me puxa para mais perto dele, escondendo meu corpo.

Não tínhamos mais forças para lutar, nossa magia tinha se esgotado.

Escuto os passos se aproximando.

Seguro o rosto do meu amor e sussurro:

— Até a outra vida.

Uma sombra paira atrás de nós.

Um clarão cega meus olhos, e antes que caíssemos no esquecimento chamo por ele uma última vez.

Alec.   

****

ACORDO OFEGANTE. Meu ouvido zunindo. Os fleches do pesadelo invade minha mente: um corpo, sangue, um garoto. 

Meu pai está fritando bacon na frigideira, minha garganta ainda está dolorida por conta do pesadelo que da noite anterior. 

Encho a xícara de café, o vapor e o aroma que sobe pelo rosto me ajuda a despertar. Passo os dedos pelas minhas madeixas ruivas, demorou cerca de um ano até que o comprimento chegasse na cintura.

Os hormônios e tratamentos de crescimento deram um bom resultado. Há transição de gênero começou há dois anos, esse foi o período que fiquei sem manter uma conversa decente com meu pai.

Sei que ele ainda tem dificuldade de me reconhecer como sua filha, meu pai ainda está vivendo o luto por uma pessoa que nunca existiu.

Depois de tomar todo o café e beliscar o bacon decido dar uma volta pela vila.

A vizinhança é calma e silenciosa, estávamos há quilômetros de distância da cidade. As casas são pequenas e aterradas no lamaçal. Ao redor só existia um interminável campo, com arvores e flores.

Me distancio de casa. 

O céu está nebuloso e cai uma fina garoa. Meu tênis afunda na lama.

Para em um muro de pedra, que não vai até minha cintura, está em escombros. Passo os dedos nem um pedaço do muro e paro quando sinto uma fissura.

Pego uma pequena caixa empoeirada, dentro dela está a única coisa que consegue afastar meu tédio. Cartas.

Não sei como elas surgiram, nem como elas continuam chegando. Essa é a minha caixa mágica, minha caixa de segredos.

Me esncosto no muro e tiro um tinteiro antigo que encontrei nele. Escrevo sobre meus pesadelos, sobre o homem dos meus sonhos, sobre a dor de ser eu mesma, sobre o peso da vida...

Quando termino meus dedos estão manchados de tinta, enfio a carta de volta e fecho a caixa. Espero alguns minutos e quando abro minha letra apagou-se e uma nova surgiu.

Mordo os lábios em excitação.

Querida, Gabriella. Sinto muito pelos pesadelos, saber que o passado te atormenta deixa um gosto amargo na minha boca. A vida é realmente difícil, mas essa é uma jornada necessária, certifique-se de fazê-la valer a pena.

Lembre-se do dia que nos conhecemos, foi há tantas eras atrás, mas a memória ainda está fresca na minha mente. Quando as coisas ficam difíceis demais, penso em você, em nós. Talvez te ajude fazer o mesmo.

Eu nunca o vi pessoalmente, toda vez que tento fazer perguntas sobre o passado, ele habilmente desvia o assunto. No entanto, ele me contou uma história. A história como nos conhecemos.

Eu era mulher de um aristocrata, sua alma ocupava um corpo feminino na época, era uma das minhas damas de companhia. Passávamos noites inteiras conversando, rindo, se embebedando.

Ela era recém chegada na Inglaterra, a encontrei em uma das ruas sujas da França. Eu dizia a ela que quando nossos olhos se colidiram sabia que o universo nos ligou de forma intima, profunda e irremediável.

Às vezes, gosto de imaginar nossas noites juntas. Seus dedos passando pelo meu cabelo e acariciando meu rosto. Nossas conversas calmantes e familiares, então sou atingida por uma onda de nostalgia.

No entanto, um bocado de vezes imagino o homem do trás das cartas. A mesma pessoa por quem eu era apaixonada há tantos séculos. Traço os contornos do seu rosto em minha mente, perecendo e sendo uma tola apaixonada.

Eu o queria, mas não podia tê-lo. Ele me explicou brevemente sobre isso, algo relacionado a universos distintos e um erro.

Quando me ergo da lama, sinto uma presença pesada atrás de mim. Me viro.

Uma grande figura vestida em uma capa escura, não consigo ter um vislumbre do seu rosto por conta do capuz.

Sinto o sangue que corre pelo meu corpo congelar.

— Se... Se você chegar perto vou gritar.

Ela não se move ou fala. Eu não tinha nenhuma intenção de virar as costas para a coisa e sair correndo, ficarei vulnerável.

Então, quando estava prestes a ir contra meu lado racional e sair correndo a figura a frente fala, o som é horrível.

— Precisa voltar para o universo Um Gabriella, esse universo não pertence a você.

Leva cinco segundos para absorver suas palavras e só um para sair correndo. Não chego muito longe, consigo tropeçar no ar e caiu na lama imunda.

Quando abro a boca para grita uma sombra envolve meu corpo, roubando minha voz.

Sinto minha consciência se distanciar até ser engolida completamente pela escuridão.

****

— Vão embora crianças. Se vocês ficarem vão assustar a garota até a morte. Não queremos isso, não é?

Uma pontada atinge minha cabeça quando tento abrir os olhos. Gemo.

— Gabriella?

A luz perfura meu crânio, queimando meus olhos. Sinto dedos no meu pulso.

— Você vai ficar bem. Deu um grande susto na gente.

Vejo uma jovem enfermeira, seus lábios pintados de vermelho estão esticados em um sorriso.

— O... O que aconteceu? — Pergunto.

— Você bateu a cabeça em uma pedra... Felizmente, não causou nenhum dano irreversível.

Fico em silêncio, tentando captar fragmentos de memórias, mas tudo que consigo é aumentar a dor de cabeça.

— Meu pai. Vocês ligarem para ele?

Ela me encara com uma pontada de pena.

— Sinto muito, querida. Não foi possível ligar para ele.

Meu estômago despenca. Ele não atendeu? Ou não ouviu o telefone tocar? O sinal naquela área é quase nulo.

— Eu quero voltar para casa.

Ela não responde. Em vez disso me entrega um mingau esverdeado. Faço uma careta.

— O gosto é melhor do que a aparência. Além disso, você precisa se alimentar, faz dois dias que não come nada. Dois dias.

— Eu tenho quer ir... Meu pai está preocupado comigo. — Falo, tirando o fino cobertor de cima de mim.

— Gabi?

Me viro para o lado.

Um garoto está sentado em uma poltrona, seus olhos amigáveis me encaram. Não consigo respirar, não consigo pensar. Um choque de quebrar os ossos passa pelo meu corpo, seguido de um estralo. Algo havia se encaixado.

— Alec...

O menino dos meus pesadelos.

— Já faz tanto tempo.

Seus olhos se enchem de lágrima.

— Alec. — Repito.

— Gabi.

Aquele estranho me envolve em um abraço. Ele cheira como lar, como um lugar familiar, um lugar que estive procurando por toda a minha vida.

Meu coração grita.

— Precisamos conversar. — Seu rosto fica sério. — Você precisa fazer uma escolha, uma escolha que custará deixar algo para trás.

Uma parte de mim sabia que o que estava por mim.

— Estávamos sendo caçado na vida passada por um erro. Matamos uma pessoa, que é especial como nós. Tanto nessa, como na outra vida eles encarnaram na terra procurando por vingança. — Ele passa a mão pelo seu cabelo escuro. — Se escolher ficar aqui, estará secura. Se escolher ir, não vou poder te proteger.

Penso no meu pai. Seu rosto familiar, que amei durante toda a minha vida.

— Não posso.

Ele pega minhas mãos frias.

— Gabriella, se escolher ficar na terra irá atrair eles para sua casa, todos vão correr riscos, entende?

A ar me sufoca. Penso no meu pai morto, banhado em uma poça de sangue. Meu rosto se contorce em angustia.

— Não. Eu fico, eu fico!

— Não chore, existia tantas vezes que soube que estava chorando enquanto escrevia pelas cartas e não pude fazer nada, mas agora posso... — Ele limpa minhas lágrimas com o dedão. — Você é muito melhor pessoalmente do que na minha imaginação.

Escrevia pelas cartas...

Ergo os olhos.

— É você... Minha alma gêmea.

Ele sorri, seus olhos cintilam com meu reconhecimento.

— Aqui estará segura e será feliz.

Fico em silêncio por um tempo, olhando minhas mãos.

— Posso vê-lo uma última vez?

Durmo mais uma vez, com a promessa de voltar para terra para uma despedida.

Quando acordo o homem que parece a morte, na qual eles chamam de O transportador, nos leva.

A viajem demorou alguns segundos, mas vi luzes coloridas passar ao meu redor. O aperto de Alec nos meus dedos me impediu em mergulhar em desespero.

Sinto o ar fresco entrar pelas minhas narinas, a visão da pequena vila me traz um sentimento de paz. Ela foi um bom refugiu, apesar de solitário, sentiria falta disso.

— Voltarei em 20 minutos. — Ele diz com a voz fria e rouca. — Sem atrasos.

Desço a pequena colina e quando vou adentrar minha porta Alec me impede.

— Antes de ir, preciso de disser uma coisa. — Ele não me encara. — O tempo passa de forma diferente em cada universo. Um dia que você passou no nosso universo foi... Dez anos no seu.

— O que?

— Sinto muito. Deveria ter dito isso antes, mas você já tinha muita coisa para digerir. 

Uma onda de raiva me atinge. Empurro sua mão.

— Eu vou ver meu pai. Ele está esperando por mim.

Abro a porta. Uma grande TV está ligada em um programa culinário, vejo uma cabeleira branca no sofá, de costas para mim.

Pressiono minha mão no peito, tentando conter a dor.

— Pai... — O chamo.

Olhos idênticos aos meus me encaram.

— Gabriella... Você voltou. — Ele se move na minha direção com rapidez. — Eu sabia que ia voltar querida, eu disse para eles.

Seu abraço morno me envolve. Meu coração estava ao ponto de ruptura.

— Você continua a mesma.

Gabriella. Aquela tinha sido a primeira vez que ele me chamou pelo nome, antes era sempre Gabriel.

— Venha, vamos tomar café. Fiz os bacons e ovos que você gosta de comer.

Ele me leva para mesma mesa de madeira, mas agora está degastada. Há dois pratos postos. 

Sento e mordisco o bacon, está crocante. Abro a boca para dizer algo, mas um estrondo faz a mesa tremular.

A porta é arrancada e colide com a parede.

— Gabi, está nos encontraram! — Alec grita. 

Sinto meu sangue gelar.

Pego uma faca de manteiga com as mãos tremulas.

— Fique aqui. Por favor... — Imploro, e só fico satisfeita quando ele dá um pequeno aceno com os olhos arregalados.

Alec está caído no chão, ele esfrega a testa suja de sangue. Então, na varanda está um homem que reconheci instantaneamente.

Seu rosto inchado e o bigode, a fúria familiar estampada em seu rosto.

Matamos a sua esposa.

Fleches de sangue nas minhas mãos surgem na minha cabeça. Eu matei.

— Eu nunca quis machucá-la. Sinto muito. — Consigo dizer.

Ele ri.

— Sinto muito? Você matou minha alma gêmea, tem ideia de como me sinto por nunca mais vê-la novamente?

Franzo o cenho.

— Você tem essa vida. Eu não a matei nessa.

— Seu namoradinho não te disse? Infelizmente, pertencemos a uma mesma espécie, não somos humanos. E adivinha? Só a uma maneira de nos matar, não nosso corpo, mas a alma. — Ele aperta a mão em um punho. Uma massa de energia começa a surgir. — Quando um de nós mata o outro, dissipa qualquer chance de reencarnação, pois a alma é extinta.

Dou um passo para trás, como se um golpe tivesse me atingido.

— Gabi, se não fizéssemos isso seria nosso sangue escorrendo. — Alec intervém. — Ele ia nos matar, nos protegemos. Nunca pensamos que sua parceira ia entrar na frente...

— Mas nós voltamos, você matou a gente. — Falo, com a voz tremula. 

— O universo parece ter seus favoritos, de alguma forma vocês acabaram sobrevivendo, mas isso teve um preço. Acabaram caindo em universos diferentes. 

Em um piscar de olhos sou atingida por uma bofetada de energia. Minha cabeça colide com a parede.

— Quando bati os olhos em você garota... Eu sabia que você tinha que morrer.

Alec o tinge com uma bola de energia, mas isso nem o afeta.

— Sou uma alma antiga garoto. Percorri essa terra antes mesmo da primeira chama romper a escuridão.

Seu punho atinge o rosto de Alec repetidas vezes, mesmo depois do sangue escorrer pela sua pele.

Tento me mover, mas uma força invisível me prendia contra a parede. Fiz a única coisa que podia: gritei.

Precisava chamar sua atenção. Precisava que ele parasse de machucar Alec.

Sangue pinga do seu punho quando ele se vira para mim de novo.

O ar para de chegar no meu pulmão, o meu pescoço estica para cima com a força invisível.

— Prolonguei esse momento por tempo demais. — Ele diz.

Quando estava prestes a fazer um movimento com a mão, provavelmente para quebrar meu pescoço, uma longa faca é cravada no seu pescoço. Seus olhos esbugalham e depois o corpo cai em um baque.

Despenco da parede. Lá estava meu pai pálido olhando para o homem morto a sua frente.

— Ele ia te matar... — É a única coisa que sai de sua boca.

Alec acorda minutos após o ataque, desorientado. Os vinte minutos estavam chegando ao fim, sem dúvidas virá outros para vingar a morte daquele homem. Além disso, o transportador estava a nossa espera.

— Precisamos ir... Ele virá conosco. Está decidido.

Não posso deixar meu pai aqui, principalmente depois dele me implorar para vir comigo. Precisava recuperar o tempo perdido.

Alec abre a boca para contestar, mas algo em meus olhos furiosos o fez se conter.

Chegamos ao topo da colina, sangue manchava minhas roupas e minha mente parecia estranhamente distante.

Fizemos a travessia silenciosamente, sou expelida em um mundo inexplorado. O céu é rosa escuro, a um matagal ao redor.

Um grupo de crianças surgem do mato e se atiram em nossos braços. Eles possuíam os olhos violetas e o cabelo colorido.

— Eles esperam muito tempo para encontrar você. — Alec diz, sorrindo.

Eles possuem orelhas pontudas, como de elfos ou fadas. Além disso, são leves como uma pena. Uma daquelas criaturinhas fofas se acomodam no meu colo.

— Você é tão bonita como nas histórias de Alec. — A garotinha diz, segurando meu rosto.

— Você parece um anjo.

Os cachinhos dourados dela caem em seu rosto.

Meu pai foi entretido pelas crianças enquanto adentrávamos uma das casas.

— O que elas são?

Ele tira o cabelo que cobria sua orelha e então percebo o mesmo formado pontiagudo dos outros.

— Nós fomos elfos.

Um sorriso escapa dos meus lábios. Nunca pensei que elfos usavam moletom.

— Não sabia que os elfos eram criaturas mentirosas.

Ele suspira.

— Sinto muito. A verdade parecia dura demais para você.

Aperto o maxilar.

— Não sou uma garotinha delicada, sou uma mulher. Passei por muita coisa por ser quem sou, acha mesmo que não posso ouvir a verdade?!

— Sinto muito. — Ele repete. — Só fiz o que eu pensei que seria o melhor.

— Não sei se posso confiar em você.

O lábio dele treme.

— Gabi, sei que precisa de tempo, e vou te dar. — Ela olha para janela. — Estarei aqui para quando estiver pronta para me perdoar. Vou partir para uma viajem em outro universo, voltarei em alguns meses.

Meu peito está em chamas, mas um tempo distante do outro é essencial para restaurar a rachadura que se formou entre nós.

Sem conseguir evitar passo meus braços ao seu redor e inspiro profundamente. Depois disso corro para fora e vou ao encontro do meu pai.

— Sinto muito ter terminado assim... — Falo para ele.

— Você é minha filha Gabriella, desde que você esteja aqui estou feliz. — Ele sorri olhando para as crianças. — Aqui parece ser um bom lugar, estou digerindo tudo isso melhor do que pensei.

— Eu também, eu também.

Quatro meses se passaram rapidamente, felizmente nos ajustamos rapidamente a nova vida. Conhece pessoas incríveis, e com poderes!

No entanto, havia aquele vazio silencioso no meu peito. Olhei para janela toda noite, na esperança de encontra-lo do outro lado.

Em uma noite, quando as estrelas pontilhavam o céu e a lua estava tão perto que quase podia toca-la, ele apareceu no ar em um estralo.

Nossas almas ficaram separadas pela última vez nessa vida, Alec carregava um ar mais sério, maduro.

— Senti sua falta. — Ele sussurra no meu ouvido.

Enterro o rosto em seu pescoço.

— Eu senti mais.

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