Primeira e Última vez
(4778 palavras)
Um homem caminha por um corredor frio e sinuoso, sem fim. Suas botas negras batem no chão metálico em um ritmo apressado, sentia que se demorasse mais um segundo a foice dessa vez acertaria em seu crânio.
DROGA de Captor.
Ele suga o ar entre os dentes, outra onda de dor se alastra pelo seu ombro direito, enfaixado e ainda um pouco ensanguentado.
Era só ter se abaixado, ele não tinha alcance na área de proteção!
Jean remói a memória daquele momento, uma situação que era determinada apenas por uma ação instintiva, uma reação a um vulto vindo em sua direção; muitos teriam tido a cabeça partida em dois naquele instante, mas ele sempre pôde se gabar pela sua destreza.
Mas dessa vez não foi suficiente.
Sua mão enluvada se direciona a um local específico na parede do corredor, pressionando seus dedos contra a superfície com força. O silêncio ensurdecedor do espaço é interrompido pelas maquinarias de uma entrada oculta se abrindo.
Lentamente, a porta revela um quarto escuro, repleto de figuras nas prateleiras e no chão, escondidas pelas sombras.
Seus olhos fitam o cômodo centímetro por centímetro, ao mesmo tempo que seus dedos pairavam sobre a sua arma. Um cubículo 4x4 pequeno, mas grande o suficiente para guardar todas as tralhas que não eram importantes para se levar para o estabelecimento principal.
Ele quase conseguia ver uma aberração no canto da parede; uma silhueta monstruosa e cadavérica com um eterno sorriso, repleto de fileiras de agulhas, brilhando como uma luminária para ele.
Porém, os dados presentes em seu visor se mantém inalterados, e para confirmar suas dúvidas, nada acontece. Ele acende a luz e entra no espaço.
A porta se fecha, o doce oxigênio se concentra na sala, dando liberdade para o homem retirar seu apertado capacete e jogá-lo no chão.
Enfim, ele podia respirar.
Até um chiado explodir da sua cintura tentando retirar qualquer pensamento racional de sua mente. Gradualmente, o som perturbador ganha sentido, formando uma única frase.
— 31, na escuta? Quem fala é o 22.
Ele alivia a força que fazia no cabo da arma. Com sua mão trêmula, pega o walkie-talkie.
— 31 aqui, o que houve, 22?
O chiado de um longo suspiro é audível, alívio. — Como você está se sentindo? A operação deu certo, 31?
Ódio borbulha em seu interior, todas as cenas voltando à tona.—Eu acabei de ter o meu braço arrancado, como você ACHA que eu tô me sentindo?
— 31, me esc-
— UM PESO! Talvez nem para ser uma ISCA. Eles nem sequer vão me ver como alvo — ele começa a andar de um lado para o outro, chutando com força o que estivesse em seu caminho — talvez eles me ignorem, talvez eles me prendam em algum lugar, ou então — uma risada sem humor sai de sua garganta — decidam me colocar na árvore.
Era como se estivesse diante daquela cena novamente. Pedaços de metais e fios decorando o chão pálido e rochoso, da mesma forma que os seus companheiros.
Apesar da escuridão eterna do espaço, em certos momentos era possível ver com clareza alguns elementos, resquícios que davam combustível o suficiente para a imaginação criar o resto da imagem.
Mas Jean podia muito bem ver que a estrutura não era feita com os restos da nave, costurados uns aos outros por espinheiros orgânicos, para formarem os galhos e "frutos" presos a cada ponta. "Frutos" esses que possuíam os visores dos capacetes quebrados, rostos congelados em um terror eterno.
Mas todos em perfeito estado, como se não tivessem sido resultados de atos brutais.
Em meio a grande estrutura, uma outra silhueta decapitada sob o pé da atração, posicionada de joelhos e curvada.
Apenas o adorando.
Jean engole em seco com a imagem daquele dia, o mesmo em que perdeu seu braço, o horror diante dos seus olhos e a bile em sua garganta. Mas seu medo não era direcionado a apenas essa cena, e sim a figura escondida nas sombras com um sorriso.
No trono da árvore, o assistindo com o seu único olho o tempo todo. Faminto.
— Descanse, 31. — O homem do outro lado continua. — Considere isso como uma ordem do 47. Não dê brechas para o Controlador querer dominar a sua mente. Aliás... 46 não achou nenhum tipo de ferrão na ferida, certo?
Jean morde o seu lábio negro, lembrando apenas da dor do momento. — Não.
— Ótimo. — O combatente continua. — Nós teremos muitos preparativos para amanhã, precisamos que todos estejam bem... No limite do possível, 31.
Uma camada brilhosa começa a surgir em seus olhos, que encaravam nada.
O tom profissional do homem do outro lado se dispersa. — Olha, vai dar tudo certo, eu sei disso. Não abaixa a cabeça agora, a gente vai explodir aquele ninho e vai sair daqui. Assim como a minha, a sua família está te esperando. — Ele quase conseguia ver o sorriso confiante, e estúpido, no rosto do 22.
22 fala depois de alguns segundos de silêncio. — Não os decepcione, Jean. — E sai da ligação.
Lentamente, o homem desliza até o chão. Seus olhos perdidos em meio a bagunça do lugar. Equipamentos quebrados, amontoados de fios rasgados, partes soltas, caixas velhas, uma Tv...
Ele se desperta. Uma Tv.
🌕
"Eu, Ana e a mamãe estamos fazendo bolo hoje para a reunião!"
A pequena garota se aproxima da tela, como se fosse cochichar no ouvido de um amigo.
"A mamãe não sabe, mas vai ter uma festa surpresa pra ela!" A menina vibra em alegria, mal conseguindo se conter, causando uma distorção na tela da televisão de tubo.
"O que você tá falando para o seu pai, hein?" Sua mulher se vira para a câmera com um sorriso, que não era tão alegre desde que ele foi embora."Seu pai está em uma missão muito importante, então todas as gravações devem ser feitas de maneira precisa. Já não te falei isso?"
Sua filha cruza os braços e faz bico.
A mulher pega a câmera, seus cabelos cacheados no seu ombro, presos em baixo com uma xuxinha rosa, e seus olhos castanhos, brilhando com a luz do sol, o encarando com uma mistura de paixão e tristeza."Espero que termine tudo bem. Estamos com saudade."
O vídeo acaba.
Jean passa as costas da sua mão dominante nos olhos, fungando logo em seguida.
Ele prometeu que não iria assistir os vídeos, não precisava, pois, a missão seria rápida e logo elas estariam em seus braços novamente. Mas lá estava ele, desolado, sem esperanças de cumprir sua promessa, falhando como marido e como pai.
Outra fita é colocada no aparelho de VHS, nomeada "Telefone".
A tela preta da Tv ganha vida, mostrando uma cena quase descolorida e repleta de estática, mas que já viu centenas de vezes: suas meninas sentadas no sofá da sala.
"Oiiii, pai!" Elas falam em união, acenando para a tela, sentadas no sofá."Eu e a Maria pensamos em algo para te ajudar!"
Meu Deus! Elas cresceram tanto desde da última vez que vi elas!
Ana Júlia fala: "Nós vamos mandar para você o senhor Roxo!" Ela levanta da mesinha um telefone de discar de brinquedo roxo, com olhos pretos esbugalhados e vários adesivos de estrelas."Ele é um telefone mágico e tem a capacidade de atender ligações da Terra!"
"Enquanto que a senhora Rosa." Maria Eduarda levanta outro telefone, muito semelhante ao outro, mas com um batom e um lacinho vermelho."Ela também é um telefone mágico e pode fazer ligações para a lua!"
Jean ri, ele esqueceu o quanto ele sentia falta delas.
Vasculhando uma pequena caixa na prateleira com seu nome, ele encontra o pacote que teria o telefone.
Há quanto tempo elas enviaram isso? Meses? Um ano?
Ele tenta suprimir seus pensamentos, não querendo imaginar o quanto elas estavam tentando se conectar com ele, enquanto o próprio ignorava todas as entregas.
Com o "senhor Roxo" em mão, ainda mais bizarro que no vídeo, ele continua.
"Agora a gente vai te ligar! E você não pode perder a chamada, porque a gente só pode ligar uma vez por semana!" Ana dita a regra.
Ele segura o telefone de discar com apreensão, sentindo como se fosse real aquela cena.
"Ligando!" Maria avisa e pega o telefone de uma forma que as duas iriam ouvir. A garota disca o seu verdadeiro número, quando para, uma delas começa a fazer o som do telefone chamando.
Ele atende a ligação.
Elas ficam receosas, até Maria falar: "Papai? Você tá ouvindo a gente?"
Seus dedos pressionam o cabo do telefone. — Sim, minhas princesas.
A expressão das duas se alegra, fingindo perfeitamente. "Pai! Quando você vai voltar para casa? A gente sente muito a sua falta!" Elas ficam em silêncio, dando tempo para sua resposta.
— Muito em breve. Só falta mais alguns preparativos para finalmente sairmos daqui.
As duas falam junto."Sério?! Que bom!"
Ana pergunta. "Pode trazer aquele bolo que a mamãe ama quando tiver vindo para casa? Ela tá muito triste!"
— Eu posso sim... — Seu sorriso se esvai.
"Ela sente muuuito a sua falta! Tem dias que ela só fica no quarto!"
Uma amargura preenche seu interior.
Uma voz de fundo chama atenção das duas. "Ah! Acho que acabou o tempo da nossa ligação." Ana fala enquanto a outra fazia som de chiado. "A gente se fala na próxima semana. Tchau!"
O vídeo termina e ele coloca o telefone no lugar com uma expressão vazia.
O chiado do seu walkie-talkie chama sua atenção.
— 47 aqui. Retorne para seu dormitório, agora, 31. Perdemos visão das criaturas.
Com muita relutância, e dificuldade, ele se levanta para guardar as coisas, uma dor que era apenas amenizada pela ideia de que ele estaria em breve em casa.
Ele coloca o capacete e abre a porta.
Contudo, um telefone começa a tocar.
Um barulho característico, que o fazia se sentir em casa de novo, sentado no sofá assistindo algo na tv com sua esposa, próximo da hora de ir para o quarto, enquanto suas meninas já estavam na cama. Quase conseguia ver Ana implorando para deixar a porta do quarto aberta.
Lentamente, seus olhos se dirigem ao telefone guardado na caixa, os olhos dilatados do brinquedo o encarando de volta.
Terror se alastra pelas suas veias.
O telefone tocou?
— 31, você me ouviu? — O chiado do aparelho o desperta. — Se não voltar agora iremos considerar você infectado, ou seja, morto. Você sabe que essa não é uma área segura.
O som do telefone tinha parado, como se nunca tivesse existido.
— Entendido, 31?
Ele pega o aparelho. — Sim, 47, já estou indo.
As luzes se apagam e a porta se fecha.
Com o simples brinquedo o vigiando até o fim.
🌕
Jean estava novamente no cubículo no dia seguinte, agora com visíveis círculos pretos abaixo dos olhos.
Tudo estava no exato lugar que ele deixou, em outras palavras, com o brinquedo ainda o encarando.
Sua mão se estende lentamente para pegar o cabo do telefone, o colocando em seu ouvido, imagina até a sensação do plástico barato abaixo de suas luvas.
O silêncio responde às dúvidas que ele havia tido na noite passada.
Ele coloca de volta no lugar e se vira para ir embora.
Que idiotice, eu cheguei até aqui para ficar com medo disso?
O objeto começa a tocar.
Seu corpo se vira de imediato, causando uma leve dor no seu lado machucado. Porém, ao vê-lo, o aparelho continuava estático, nem um centímetro se quer vibrava.
"Quem é essa hora?"
Jean pisca e olha na direção do som.
A figura de Juliane na tv sai da frente da câmera e segue até o telefone na parede para atendê-lo. Tudo que ele podia escutar da conversa eram murmúrios distorcidos.
Quando que eu botei uma nova fita...?
O homem se ajoelha no chão metálico, enxergando de leve sua figura acabada, mas completamente equipada com seu traje de segurança preto, com listras roxas brilhando com calor no seu pulso e nos seus calcanhares.
Retira a fita e a coloca, com cuidado, na sua caixa de papelão velha, ficando ao lado de várias outras fitas, quarenta, em média.
Seus olhos fitam as prateleiras de metal a sua frente, repletas de outras caixas, grandes e pequenas, algumas de papelão, outras de plástico ou ferro, e poucas decoradas com vários adesivos infantis. Cada uma delas com um nome, cada uma designada a um astronauta, a um Combatente Lunar.
E todas quase vazias, com seu conteúdo levado para os dormitórios de seus destinatários.
Menos a dele, tudo estava ali ainda. Ignorado.
Um aperto em seu coração faz sua respiração falhar, sua cabeça martelar e a dor no seu braço retornar. Segura por instinto as bandagens, em um aperto forte.
E funciona, depois de alguns segundos. Gradativamente, volta a respirar como se nada tivesse acontecido, porém, com uma leve dor de cabeça remanescente. O ambiente de antes se restabelece, preenchido pelos sons das maquinarias entre as paredes, funcionando sem parar.
Interrompido apenas pelo som de uma nova fita sendo inserida.
🌕
— E como foi o primeiro dia?
"Como foi o primeiro dia?" Maria faz uma cara pensativa.
"O meu foi excelente! Fiz muitos amigos!" Ana responde primeiro.
"É , eu também fiz alguns." O tom de Maria diminui, enquanto ela mexia com o tecido do seu vestido violeta.
Jean junta as sobrancelhas quando Ana pega o telefone da outra.
"A Maria fez muita bagunça! Ela não se comportou e acabou machucando o braço de uma das garotas." A menina responde.
"Ela começou!" A outra se defende.
— Meninas, sem brigar. — Jean fala por instinto. — A mãe de vocês ficou sabendo disso?
As duas ficam em silêncio, Maria encarando com raiva Ana e a outra desviando seu olhar para sua pulseira magenta, aborrecida, mas entregando, por fim, o telefone.
Maria forma uma linha com os lábios, enquanto enrolava os fios pretos e cacheados no seu indicador. "A menina falou que meus cachinhos eram estranhos e ela disse que gente como eu não deveria estar em uma escola daquelas."
O quê?!
O coração de Jean quase para, o que ele não faria para estar do lado dela naquele momento e resolver logo essa situação.
O que esses pais tão ensinando para essa criança?!
"Ela então começou a brincar com os meus materiais e quando eu fui pegar a minha tesoura eu acabei cortando o braço dela... A mamãe disse que foi um acidente."
A garota entrega o celular para a irmã.
Ana olha para tela com um sorriso, sem dentes, em seu rosto. "Mas tá tudo bem, papai. Ela mereceu."
Jean pisca perplexo.
Por que ela disse isso?
"Ana! A gente precisa se vestir para a reunião, mamãe já tá quase chegando!"
As duas rapidamente saem do sofá, Maria vai para outro cômodo e Ana até a câmera para desliga-la.
"Tchau pai! Semana que vem a gente se fala!"
A tela fica preta, exibindo apenas o seu rosto confuso.
No mesmo instante, ele caça uma nova fita na caixa, a continuação que pudesse explicar o que tinha acontecido depois sobre o incidente, porém um barulho o chama atenção.
Um som vindo de fora do cubículo, estranho, mas familiar. Era como se alguém tivesse andando com facas nos pés, quatro exatamente, com a ponta afiada causando um baixo "tim, tim" no chão.
Jean paralisa na sua posição, respirando lentamente. Era a segunda vez que ele escutava esse som em quase dois anos. Era como ouvir novamente a morte passando, da mesma forma de anos atrás, em que passara dias antes do acidente acontecer.
Um aviso de que algo ruim iria ocorrer.
Seus membros tremem de se manterem tanto tempo na mesma posição, enquanto as facas continuavam a vagar pelo corredor, como se estivessem procurando por algo, mas sem urgência.
O som para, deixando apenas a sua baixa respiração e o seu coração, como um tambor em seu ouvido, audíveis para ele.
Sendo substituído por algo bem pior. A princípio, parecia o mesmo barulho que sua professora do primário fazia quando arranhava o quadro com as longas unhas para chamar atenção dos alunos.
Dessa vez era execrável.
Sentia seus tímpanos estourando, suas entranhas se revirando por dentro e uma dor na cabeça o paralisando. Misturado com o desespero de saber que a criatura estava arranhando exatamente onde a porta estava. Parecia durar uma eternidade o som, toda a sua vida passando pelos seus olhos naqueles segundos, e quando ele pensou que tinha terminado, outra linha começava a ser feita.
Jean pensa na sua jornada, de como tinha um detalhe que sempre teve curiosidade de descobrir.
Nunca esteve na primeira linha de combate, era o suporte, trabalhava com as câmeras orientando os combatentes, cuidava das senhas das principais entradas pelos monitores manuais e consertava as armas. Por esse exato motivo, ele nunca conseguiu ver nenhuma das bestas por inteiro, apenas o vislumbre de algumas características, o resto era sua imaginação.
Todos aqueles que viram se recusavam a descrever, um acordo silencioso entre eles.
Imagina se dessa vez a imagem iria ficar clara em sua mente. Sendo tão abominável quanto pensava ser.
O homem pressiona as bandagens do seu braço, nem sequer percebendo o que estava fazendo. O seu desespero se fundindo com a dor no seu ombro, bandagens encharcadas de sangue, uma sensação que percorria pelo seu corpo como um veneno.
Porém, depois da ansiedade o devorar por dentro, o som para.
O barulho das facas voltam, se distanciando dessa vez.
A luz branca do cubículo pisca, quase imperceptível, e algumas gotas de suor do seu rosto, e de sangue do ombro, caem no chão.
Ele estava sozinho novamente.
🌕
Talvez fosse a adrenalina incessante, talvez fosse o oxigênio escasso. Mas ele acreditava estar perdendo a cabeça.
Assim que se sentiu seguro, correu para seu dormitório no dia anterior, ignorando os vultos atrás de rochas e passando reto pelos seus companheiros que o abordavam, fingindo apenas estar cansado.
Agora, ele estava de novo em frente a porta onde tudo aconteceu.
Um grande X marcado na entrada, não tão fundo para danificar o sistema, não tão raso para passar despercebido.
Ele abre a porta e entra na sala.
Seu walkie-talkie ganha vida. — 22, aqui. 31 está na escuta?
— 31 na escuta, o que aconteceu, 22?
— Nós achamos que o Controlador saiu da área dos restos da nave, eu e 23 fomos inspecionar e encontramos o local vazio, nem um lunar sequer... 47 acredita que ele vai fazer algo para entrar na nossa base principal, o resto discorda, mas eu acredito na mesma coisa. Provavelmente seria fácil demais para ele só destruir a base. — Ele suspira. — É como eu digo, precisam destruir por dentro antes de rasgar a carne... Sabe do que eu tô falando, né?
— Entendo... — Concorda, relembrando com amargura suas experiências nesses últimos dois anos. — Todas as armas já foram aprimoradas. Acredito que vá gostar da surpresa que deixei para você, 22. — Jean comenta com um meio sorriso, ao mesmo tempo que pegava a fita que iria assistir.
Ele ri. — Espero que seja suficiente para matar pelo menos o Captor. Me recuso a ir embora sem matar um dos infelizes que atormentaram a gent- — Estática interrompe a transmissão junto de um estrondo. — O quê?!
Jean para o que estava fazendo. — 22, na escuta? O que aconteceu? — Ele olha para o walkie-talkie apreensivo.
Sem resposta.
Se levanta em um pulo, precisava ir checar o que tinha acontecido, mas seu ombro começa a doer, uma pontada que se prolifera por todo seu peito. Dessa vez com um novo sintoma: tonteira. Sua visão fica turva e o pequeno cubículo parecia girar.
Jean aperta o machucado, sentindo uma dor insuportável, como se a sua carne estivesse sendo queimada, e sem conseguir perceber o sangue com uma textura gosmenta sob suas luvas.
Sabia que a 46 tinha feito um excelente trabalho na limpeza da ferida, além de que a criatura em questão que o machucou não era do tipo que poderia infectá-lo. Tenta relembrar a cena caótica de quando a foice acertou ele, de quando a dor dominou todos os seus sentidos.
E-espera, eu acho que tinha algo acoplado a lâmina... ? Igual um ferrã-
Ele pisca e toda a dor some.
O homem encara o espaço ao seu redor com uma expressão vazia, a luz branca piscando suavemente e o barulho de estática preenchendo sua audição.
O que eu ia fazer mesmo?
O telefone o encara com seus olhos negros, refrescando a sua memória sobre o que ele precisava fazer: assistir mais uma fita.
🌑
"Eu sinto a sua falta, papai. Nós sentimos."
Jean encara a tela com olhos castanhos cansados, assistindo apenas Ana, sentada em sua cama, a noite, enquanto sua irmã dormia na cama ao lado. Já tinha perdido a quantidade de fitas que havia assistido, mas sentia que essa era a última.
— Eu também sinto falta de vocês. — Sua voz cansada fica aparente.
"Eu sinto falta que você não tá aqui pra abrir a porta." Ela faz bico. "A mamãe sempre fecha."
"Mas você sabe que é para proteger vocês, não é?"
"Mas eu não gosto! Eu não quero me assustar se tiver alguma coisa lá fora. Eu prefiro ver antes!" Ela sussurra, olhando para a porta fechada com apreensão.
Ele suspira, já estava cansado de repetir que era para o bem dela, mas sempre cedia aquela carinha.
Os dois ficam em silêncio, até Ana falar novamente.
"Papai, como é aí? Eles são muito cruéis?"
— Um lugar que você nunca vai querer estar. Eles são monstros e fazem coisas terríveis.
Ela sussurra: "O que eles fazem?" A luminária amarela de estrelas ilumina seus olhos assustados, enquanto a mesma segurava forte o telefone rosa.
— Coisas... Coisas terríveis! Eles são impiedosos, preferindo sempre torturar antes de dar um fim para qualquer um aqui. — Ele aperta o telefone com força, se perguntando se deveria dizer essas coisas para ela. — Em todos os meus anos como combatente, eu nunca vi metamorfos, aberrações, como essas...
"Foram eles que fizeram isso?"
O homem fita a imagem de sua filha, tentando entender do que ela estava falando.
"O seu braço." Ela entorta a cabeça de leve com um estranho brilho nos olhos. "Foram eles que tiraram seu braço?"
Jean fica sem reação.
Como ela...?
A luz cai e as sombras consomem o espaço.
Um momento de silêncio passa até a situação ganhar sua gravidade. Freneticamente, ele caça sua arma, não totalmente cegado por conta do brilho púrpura emitindo do seu uniforme.
Com a arma em mãos, ele a liga. Um forte brilho roxo ilumina toda a sala e com atenção ele escuta o que poderia ter causado o apagão, pensa que finalmente a energia do local abandonado acabou.
Justo quando estava lá.
Ele esfrega o suor do seu rosto, sentindo agora o mal-estar ter se instalado pelo seu sistema. Sua respiração fica forte, seu peito subindo e descendo lentamente com dificuldade.
Encosta na parede fria, sabendo estar preso naquele espaço claustrofóbico. Ele devaneia através da sala vendo novamente todas aquelas caixas vazias, todos, todos tinham sido um ser humano no mínimo decente de pegar as fitas.
Mas ele não. Era tão desprezível quanto aquelas criaturas.
Pega o capacete sabendo que logo em breve o oxigênio iria embora, mas não o veste, apenas o encarava com olhos vazios o visor preto, mal sentindo em sua mão o objeto de tão insensível que seu corpo estava.
O telefone começa a tocar, dessa vez, visivelmente vibrando. O aparelho estava tocando.
Ele ri, um largo sorriso delirante em seu rosto. Nunca esteve tão feliz nesses dois anos, pois sentia que poderia finalmente se redimir com elas da sua ausência.
Tiros, vários, podiam ser ouvidos de dentro do local, mas ele não se importava, queria apenas atender o telefone.
Se deita no chão, se arrastando até o Senhor Roxo que o enfeitiçava com o seu toque.
Passos pesados se aproximam da sua prisão. Mas ele continuava atrás do telefone, que parecia estar quilômetros dele. Não sabia dizer se era por conta da distância ou da sua mente se deteriorando.
Até ele pegar o telefone, agora tão real quanto o que tinha em casa. Com um braço trêmulo, coloca o aparelho no ouvido, escutando apenas o chiado característico.
Jean sussurra com um tom de felicidade. — A-alô?
— Boa noite, quem fala é o senhor Jean Rosineide? Aqui é Juliene da CTB e gostaríamos de falar sobre o seu plano telefônic-
Ele desliga a ligação, colocando o telefone na parede.
O homem pisca, não só ele estava sem seu traje como o ambiente estava claro. Olha para o lado e vê sua sala, iluminada apenas pela luz da televisão.
Uma reportagem sobre algum ataque passava na tv.
Cautelosamente, olha para os outros lados, encontrando a casa que sentiu tanta saudade, havia algumas mudanças, móveis novos, decorações diferentes, mas a essência era a mesma.
— O que houve, amor?
Seu pescoço quase dói de tão rápido que se vira.
Lá estava ela, em carne e osso, perfeita desde do dia que a deixou.
— O quê? Parece que viu um fantasma. — A mulher ri, descendo as escadas.
Se mantém em silêncio, abismado com a visão a sua frente.
— Ah, tá acontecendo aquilo... — Ela se aproxima com uma ternura em sua expressão. — Ei, você tá aqui em casa, na Terra. Você não tá mais lá.
A mulher segura sua mão, o calor era real.
— ...Como?
— Você foi salvo. Seus companheiros conseguiram te resgatar, você foi levado para a base principal, enquanto completavam a missão. Tudo terminou bem. — Ela sorri.
— Não pode ser... Isso realmente...? — Ele segura com força a mão dela, percebendo novamente que era real.
— Porque você não vai dar boa noite para as garotas? Estarei te esperando aqui. — Ela se senta no sofá.
Era verdade. Todas as suas memórias, lentamente, voltam. Realmente estava em casa.
Jean se sente leve, sentindo-se pisando em nuvens. Sobe as escadas, ignorando o estalar metálico das tábuas.
O homem se encontra no corredor, vendo o cômodo encostado na parede, um presente de família, e as duas portas que levavam para os quartos, o da direita seu e de sua esposa e o da esquerda, repleta de figurinhas, de suas filhas.
A figura das duas meninas deitadas quase enche seus olhos d'água, ambas esperando pelos seus beijos de boa noite.
Maria é a primeira a receber o beijo parecendo já estar em um profundo sono. Ana é a última, aparentando ainda estar um pouco acordada.
— Papai, as ligações te ajudaram com a sua missão?
Ele olha para a Senhora Rosa em cima do móvel ao lado da cama.
— Com certeza. — Ele dá um beijo na testa dela e ela ri.
— Boa noite, papai. — A menina dá um largo sorriso e fecha os olhos.
— Boa noite...
Jean sai do quarto e fecha a porta. Borbulhando de satisfação. Tudo tinha dado certo.
Estava prestes a descer as escadas para ficar com a sua esposa, mas um telefone começa a tocar. Seu coração para.
O senhor Roxo estava em cima do cômodo do corredor. O brinquedo não vibrava, mas o som vinha dele. Só podia vir dele.
Não...
Tem algo de errado...
Ele pega o telefone, como se estivesse atendendo uma ligação normal.—Alô?
— Papai? — Escuta a voz sonolenta de Ana. — Pode abrir a porta?
Para por alguns segundos, uma sensação estranha vem do seu ombro, de algo molhando sua camisa, seguida de uma leve tonteira.
O quê? Não, mas isso...
Isso não tá certo!
Apesar disso, ele nunca poderia dizer não para aquele rostinho!
Suas botas ecoam pelo chão metálico, passos pesados e lentos, enquanto gotículas de um líquido preto caíam no chão.
Não, NÃO! O QUE ELE FEZ COMIGO?!
Jean encara a porta de madeira, repleta de adesivos de estrelas, com um semblante pacífico, um estranho sorriso com dentes em seu rosto.
O som de fundo da tv preenche sua audição, sirenes incansáveis ao lado de passos se aproximando no corredor, gritos e batidas na porta de segurança, desesperados.
Mas ele nunca se sentiu tão bem.
O homem segura a maçaneta, digitando a senha no monitor. Era como se o tempo tivesse desacelerado, a porta lentamente se abrindo com um ranger e o vazio do espaço tomando a sua visão.
O chão rochoso e branco da lua contrastando com o negro infinito do céu recheado de estrelas. Finalizando com a Terra no plano de fundo em toda sua magnitude. Uma visão encantadora, como olhar o céu direto do inferno.
Todavia, bem no meio, uma enorme figura criava sombra sobre ele, com a silhueta da árvore longe, mas logo atrás dele.
Apenas o aguardando, sorrindo, e com o mesmo olho faminto. Lá estava ele.
Eu.
O "Controlador".
Finalmente, Jean, ou o que restava dele, poderia agora saber como era uma das criaturas.
Pela primeira e última vez.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top