Véu de Pesadelo
As nuvens de chuva pareciam assustadoramente baixas, enquanto andava pelo caminho de natureza lúgubre. Um estreito pedaço de terra me guiava dentre aquela floresta melancólica coberta com as sombras da noite, os troncos de árvores secas tinham buracos profundos que mais pareciam olhos vazios, orbes de desespero que encaravam as camadas mais escondidas da minha alma.
Abutres com penas cor de nanquim sobrevoavam do alto, aguardando o momento em que pudessem devorar a carne do meu corpo já sem vida. O coração batia, o vento rugia e a cada passo dado sentia-me afundando num poço de agonia.
Sequer consegui lutar contra os galhos que se agarraram as minhas vestes e rasgavam minha pele com seus espinhos afiados. O tremer do chão me disse que ela estava por perto, aquela que dançava com a morte e flertava com a crueldade, uma criatura vil de natureza maléfica e centro amaldiçoado.
Um véu feito de sombras se ergueu da lama em minha frente, vermes pendurados em seus fios de melancolia, sangue escuro pingava dos rasgos velhos e imundos sustentado por ele uma silhueta de aparência cadavérica pálida e enrugada. Minhas pernas pareciam ser incapazes de se mexer e meu espírito parecia se dissipar a cada momento, por fim quando o último raio cortou o céu algo terrível aconteceu. A queda do véu.
Despertei num susto, a língua colada no fundo da boca e um gosto amargo e sufocante na garganta. Foi um sonho, pesadelo eu até diria, um delírio sombrio que me fez acordar com uma sensação inquieta ou melhor, perturbadora.
Passei a mão pela testa molhada com gotas de suor e encarei o teto de madeira do quarto, ao meu lado Toji parecia não ter se incomodado com o meu movimento repentino, pois suas costas largas continuavam a se mover calmamente acompanhando a respiração.
Assim que me sentei senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, limpei com os dedos ainda trêmulos a trilha molhada da bochecha enquanto me questionava o que havia acontecido. Claro que tive outros pesadelos durante minha vida, mas nenhum havia chego sequer perto de causar uma reação tão intensa como aquela, a mente podia estar raciocinando de maneira calma, mas meu corpo tremia; calafrios me subiam as costas, tinha uma sensação constante de estar sendo observada enquanto no peito o coração foi tomado por um pesar infundado.
Forcei meus pés no chão e me levantei, não aguentando ficar naquele lugar confinado, apesar de ser espaçoso me sentia sufocada. Passando por um relógio a caminho do exterior da casa vi que mal passava das quatro horas da manhã, ainda tinha um bom tempo para o dia nascer.
Me sentei na beirada de madeira observando o campo de terra batida em que lutei com Toji em nossa noite de núpcias. Um riso escapou meus lábios lembrando do ato, o homem era um lutador nato se fosse verdade suas palavras sobre me treinar talvez tirasse algum proveito real.
O Corvo dividiu comigo suas suspeitas de ter sido o famoso "Assassino de Feiticeiros" aquele que aceitou o contrato direto para conseguir minha cabeça em uma bandeja, mas se realmente fosse isso porque o homem se daria ao trabalho de me treinar? Não parecia ser do feitio de Toji dar uma chance de misericórdia aos seus alvos.
Apoiei os cotovelos nos joelhos, abaixei a cabeça cruzando os dedos atrás da minha nuca e olhei o chão iluminado pela luz da lua.
Foi quando passos leves soaram, tinha alguém vindo em minha direção, mas apesar do horário suspeito não me mexi. Só tinha uma única pessoa capaz de andar daquele jeito na casa.
-É muito cedo para começar a fazer as tarefas Hatsu.
A mais velha se abaixou do meu lado sentando sobre as pernas dobradas e mantendo as mãos no colo.
-Não começo até que as meninas estejam de pé - ela respondeu com calma - Achei que faria bom uso de companhia.
A presença dela era tão tranquila que trouxe algum sossego a minha mente até então atormentada. Respirei fundo e me deixei sorrir para o céu escuro da madrugada enquanto levantava a cabeça e apoiava os braços ao meu lado.
-Parece bom, obrigada.
Por alguns momentos o único som que ecoou entre nós foi o do vento passando pelas árvores de folhagens altas
-Eu conheço mestre Toji desde que era um bebê - Hatsu começou a falar - Servi a família principal quando ainda era jovem, eles gostavam de manter as servas mais belas por perto. E devo dizer que já fui uma jovem tão exuberante quanto você minha senhora.
A mais velha continuou a falar -Sempre fui a serva de confiança da mãe dele. Depois que a senhorita Suyen nasceu, havia grandes expectativas para ele que fosse tão grandioso quanto seu irmão mais velho Jinichi.
-Mas não foi bem isso que aconteceu certo?
Hatsu sorriu triste, como se até boas memórias viessem acompanhada de tristeza - Minha antiga senhora sofreu talvez mais do que seus filhos. Mesmo que não quisesse, soube que Suyen estaria melhor fora do clã, e sobre o jovem mestre Toji ela o protegeu até onde conseguiu. - e continuou - Mas uma doença a levou mais rápido do que pudemos prever.
-Durante todos esses anos mestre Toji manteve-se aparentemente vazio, passando dias fora e voltando apenas quando necessário. Uma vida solitária repleta de ressentimentos.
-Onde quer chegar? - perguntei.
-Pode ter sido dois dias mas nesse tempo vi mais fantasmas de sorrisos do que em dois anos inteiros. Me perdoe se soar egoísta da minha parte falar isso, mas você faz bem a ele.
Olhei para os meus pés - Igual atrai igual não é? Se eu trago algo de positivo não sei dizer, e também não sou prepotente de achar que faço a diferença na vida de alguém.
-Mas faz - Hatsu disse com firmeza - Existe algo sobre você que parece um feixe de luz no meio das sombras, sou boa em ler pessoas minha senhora. Soube que era para ser você no momento em que a vi.
-Pare de besteiras, não existe esse tipo de coisa. - virei o rosto me sentindo corar, não estava acostumada a receber bons comentários sobre minha existência.
Vindo de um lugar onde minha mera existência era considerado um desperdício de espaço, palavras tão gentis me trouxeram um sentimento quente.
-Mesmo vivendo num mundo de maldições? - riu de leve - Sei o que falo criança, embora nessa noite você pareça estar mais apagada. Aconteceu algo?
Juntei minhas mãos esfregando uma contra a outra - Sonho ruim, depois de um dia ruim.
-Entendo.
Ela se manteve quieta depois de eu parar o relato por ali, mas não fez menção de se levantar.
-Hatsu. O que sabe sobre Amarate?
Pela primeira vez vi seus ombros tencionarem e sua feição serena falhar. Seu rosto se virou para o meu com questionamento - A deusa original da morte, uma maldição que recebeu o título de shikigami, suponho que o mesmo que todos nós conhecemos.
Encarando a sombra das folhas projetadas pela luz da lua me lembrei do véu que apareceu em meu sonho e como dele saiu algo completamente aterrorizante. Um vento forte soprou levantando poeira do chão e me forçando a colocar o braço em frente aos olhos, quando olhei para frente tive a sensação de ver um tecido preto desaparecer por trás das árvores.
Pisquei mais algumas vezes encarando o local por onde parecia ter sumido na esperança de ver algo, mas deveria ser um equívoco.
Hatsu colocou a mão no meu pulso só então percebi minhas mãos tremendo - Minha senhora, está tudo bem.
Me virei para ela, não foi uma pergunta e sim uma afirmação.
-Acho melhor entrarmos.
-Pode ir - ela sorriu apertando minhas mãos entre as suas, trazendo um conforto necessário - Vou ficar aqui mais um pouco, já faz algum tempo que não vejo o sol nascer.
Agradeci pelos momentos e voltei pra dentro da casa, não sem antes lançar um último olhar para Hatsu. Sua cabeça estava virada em direção às árvores, e diferente de todas as vezes que vi a mulher ela não parecia só ser alguém com muitos anos de vida, mas sim uma entidade guardiã.
Fosse pela confiança transmitida por seu toque ou por uma busca desesperada da minha mente por conforto, pela primeira vez desde que acordei daquele sonho maldito senti a perturbação desaparecer.
N/A: Tan dan dan, mistérios e assombrações uhhhh.
Adoro escrever isso, esse toque de terror.
Vejo vocês na próxima semana!
Até mais! Xx
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