60 dias antes - Coisas boas

Toda terça-feira a família Javaddy se reúne na sala para assistir qualquer jogo de basquete, não que a gente acompanhe todas as competições e entenda cada regra do esporte, apenas escolhemos um time para torcer e nos divertimos.

Assim como William, mamãe nunca entendeu as pontuações, mas ela sempre se sentava no colo do meu pai na poltrona e tentava prestar atenção. Demoramos alguns meses após seu falecimento para voltarmos a essa "tradição", mas aos poucos nos acostumamos com a vida sem ela.

— De quanto tá o jogo? — Will apareceu usando apenas uma calça jeans folgada e uma camisa branca desgastada, só não mais surrada que a camiseta vermelha folgada e o short claro que uso como pijama.

Meu pai respondeu e bateu no sofá ao seu lado para que meu irmão se sentasse.

Cruzei os braços e pernas, me encostei no corpo do papai e ele me abraçou de lado.

— Estão assistindo o jogo de novo? — minha madrasta surgiu deslumbrante se assentando na poltrona preta e colocando um notebook cinza em cima da perna — Valentina, minha querida, você devia está procurando modelos de vestidos de noiva.

— Deixa a menina, Mary! — meu pai me defendeu.

Bufei encarando minha madrasta usando uma vestido estampado rosa com a maquiagem perfeitamente feita em seu rosto escuro, acompanhado de um coque meticulosamente alinhado, me fazendo pensar como ela consegue manter o cabelo a base de chapinha tendo cachos tão maravilhosos como o da sua filha, Nicolle.

Mary arqueou a sobrancelha ao me vê a observando e desviei o olhar para a lareira.

Nossa casa é simples e bem rústica. Ao entrar pela porta branca, é possível ver as escadas de madeira que levam ao primeiro andar onde ficam os quartos, já ao lado esquerdo tem uma porta ampla que leva à cozinha, à direita fica a sala de estar e  embaixo da escada existe um pequeno banheiro social.

A lareira fica próxima ao sofá marrom e está aqui desde que nos mudamos para Point City. Uma das primeiras coisas que a mamãe fez quando chegamos na "nova casa" foi colocar uma foto da nossa família ali. Nunca tiramos o quadro do local, mesmo depois que William e eu crescemos, por isso foi fácil notar a ausência da foto em meio a outras mais novas.

— Cadê? — apontei para o espaço vazio — Onde está a foto da nossa família?

Meu pai se assustou e me soltou tentando entender do que eu falava.

— Como assim? — questionou.

Levantei e graças ao tapete com vários tons de marrom, não senti o chão gelado, já que costumo andar descalça.

— A foto que a mamãe colocou aqui quando chegamos! — disse tocando a lareira — Estava bem aqui!

Minha madrasta franziu o cenho fingindo não ter sido ela que tirara o nosso quadro.

— Ah, você não me engana Mary! Eu sei que está tentando tomar o lugar da mamãe desde que pisou os pés aqui. — a acusei — Onde você colocou a foto?

— Eu não... — ela tentou formular, mas foi interrompida por meu irmão.

— Val? — ele chamou.

— Fique na sua, William.— pedi — Vamos Mary! Assuma!

Minha madrasta me olhava ultrajada.

— Val, fui eu que tirei daí. — Will confessou.

https://youtu.be/m6TXPNybrmk

— O quê? — o encarei com pesar sentindo que fui traída — Por quê?

— Coloquei no meu quarto. — ele falou em um tom brando como se quisesse me acalmar — Para sempre observar a mamãe.

Passei a mão no meu cabelo escuro preso em um rabo-de-cavalo, olhei para Mary que tinha mudado o olhar para um triste e para meu pai preocupado.

— Eu só... — fechei meus olhos tentando conter algumas lágrimas — Me desculpem.

Suspirei e saí da sala completamente abatida. Ao fundo ouvi meu irmão falando:

— Não se estressa, pai... Deve ser TPM.

Subi as escadas e virei a primeira porta à esquerda, entrando no quarto do William. Deitei em sua cama bagunçada e me estiquei para pegar o quadro em seu criado mudo preto. Antes que eu começasse a chorar, Will entrou, ligou a luz e se jogou ao meu lado.

— Sabe, eu também não gostei da ideia do pai casar de novo, mas ficar julgando a Mary é péssimo, ainda mais quando ela é a mãe da sua amiga. — disse olhando para o teto.

Fiquei calada passando o dedo pelas quatro pequenas fotos no quadro.

— Eles eram tão jovens aqui. — virei para meu irmão analisar — Eu lembro quando tiramos.

— Você me conta isso sempre, Val. — falou numa voz tediosa falsa — Eu tinha chorado muito, mas a mamãe queria tirar algumas fotos antes de nos mudarmos.

— E essas foram as últimas na antiga casa. — concordei.

— Você lembra quando o Phil morreu? Lembra como eu fiquei? — sua voz engrossou de repente — Eu perdi meu melhor amigo para as drogas e quando estava me recuperando, a mamãe se foi, Valentina! Mas eu estou aqui, de pé, honrando o nome e a vida deles, carregando Philip e Anne Javaddy no meu peito.

Olhei para baixo envergonhada por meu irmão mais novo ser mais maduro que eu.

—  Eu superei duas grandes perdas, Val. — William afirmou — Você pode superar a da mamãe.

Quase o contrariei dizendo que todos sentimos a morte de Phil, mas sabia o que ele queria dizer.

— E pode ser feliz. — completou.

— O quê? — confusa com a última parte, levantei a cabeça e vi meus próprios olhos refletidos nos dele

— Você sabe do que eu tô falando. — ele se sentou e tentou ajeitar seu cabelo tão escuro quanto o meu.

— Não, não sei. — imitei o mesmo movimento que o dele e deixei o quadro no lugar.

— Valentina... — chamou e eu fiquei surpresa pois ele nunca me chama pelo nome completo — Depois que a mamãe morreu você pareceu desistir da vida.

— Isso não é verdade. Eu vou casar!

— Não é porque você vai casar que voltou a viver, se é que me entende.

Mesmo sentada, é evidente que ele é quase dez centímetros mais alto que eu.

— É claro que é, William. — resolvi usar a mesma tática que ele — Significa que eu vou construir minha própria família.

— Você ao menos ama o Stanley? — me questionou e lembrei do Caleb, o cara do milkshake.

A campainha tocou me salvando.

— Pense sobre isso, Val. — Will disse tirando a própria camisa e jogando no cesto ao lado da sua janela — Pense se o ama.

No andar de baixo Mary gritou algo como "visita para você, Valentina".

— Para um rapaz de 24 anos você tá bem romântico hein...

Ele se deitou na cama e cruzou os braços atrás da cabeça.

— É, um rapaz romântico de 24 anos, mas que em compensação faz faculdade na sua própria cidade e vive com os pais. — disse a contragosto.

Ele ainda não superou o fato de começar a faculdade de psicologia mais tarde que o normal e de fazer em Point City, mas infelizmente foi a única solução que encontramos depois de usarmos o dinheiro que nossos pais guardaram para pagar o hospital, o enterro da mamãe e os tratamentos físicos e psicológicos do papai após o acidente.

— Você sabe que eu também tive que fazer o mesmo. — murmurei.

Minha madrasta voltou a gritar me chamando.

— Quem será que tá aí? — me perguntei levantando.

— Nós dois sabemos que pelo desespero da Mary, é o Stanley.

Concordei e abri a porta desejando boa noite para Will.

Passei pelo corredor estreito iluminado por uma única lâmpada branca fluorescente e um tanto desanimada desçi as escadas encontrando meu noivo usando seu terno escuro.

— Trouxe sorvete para gente. — ele sorriu mostrando orgulhoso um pote branco fazendo com que os olhos de minha madrasta, próxima a porta, brilhassem.

Sorri dizendo:

— Me encontre lá fora, só vou pegar as colheres.

— O quê? — Mary soou surpresa — Você não pode esperar que o Stanley tome sorvete fora de casa. Não é?

— Não tem problema Sra. Kintzell. — ele abriu a porta branca atrás de si e piscou para mim — Assim teremos mais privacidade.

Ignorei os resmungos da minha madrasta, peguei duas colheres na cozinha com móveis modulados, vesti o casaco pendurado em um cabideiro perto da porta e logo saí, mas não sem antes vê meu pai suspirando triste enquanto encarava a lareira na sala.

Ele sente falta da mamãe todos os dias, assim como eu.

https://youtu.be/lkGBLLjAXEA

— Ei, venha logo, antes que derreta. — Stanley disse sentado abrindo a tampa do pote de plástico — Comprei de flocos. É o seu favorito, não é?

— Não. — neguei me sentando nos degraus ao seu lado — Eu prefiro chocolate.

Ele me encarou e logo seu rosto claro ganhou um tom avermelhado. Stanley Olsen é charmoso, com olhos e cabelos castanhos escuros, corpo levemente musculoso e sorriso sublime, ele é perfeito. Perfeito demais.

— Desculpe. — sussurrou sem graça.

Entreguei uma colher para ele e provei um pouco do sorvete.

— Não tem problema. — dei um sorriso — Está ótimo.

Ele imitou meu movimento e ficamos em silêncio por alguns minutos.

— Você veio direto do escritório? — resolvi perguntar pela roupa que vestia.

— Foi. Passei o dia lá.

Stanley segue os passos do pai na advocacia e juntos ele administram um dos maiores escritórios do estado, o que os torna ricos. Inclusive, quando nos conhecemos, ambos estávamos em uma festa da "alta sociedade", a qual tinha sido obrigada por Mary a ir.

— Stanley? — resolvi arriscar e ele sorriu colocando mais sorvete na boca — Você nunca sonhou com mais?

— Mais? — questionou me fazendo achar por um instante que ele não tinha me entendido — Quando eu estava no internato meus amigos e eu queríamos montar uma banda, sonhávamos em viajar pelo mundo mostrando nossa música e conhecendo garotas.

Eu ri.

— O que aconteceu? — perguntei tomando mais um pouco do sorvete.

— Ah, sabe como é, o último ano chegou, tivemos que escolher uma profissão e silenciosamente desistimos. — deu de ombros.

— Então você escolheu ser advogado?

— Mais ou menos. — falou em sua voz tipicamente rançosa — Como falei, queria ser músico.

— Seus outros amigos do internato escolheram fazer o quê?

Por incrível que pareça, foi a nossa primeira conversa mais profunda desde que nos conhecemos.

— Bom, o Bruno é médico, o Paul contrariou o pai e se tornou Odontólogo, já o Mark continua tentando fazer sucesso na Indústria Musical. — explicou soltando a colher dentro do pote — Eu não quero mais sorvete.

— O quê? Como alguém em sã consciência não quer mais sorvete? — fingi repulsa.

— Uou... Você está mesmo fazendo uma brincadeira comigo? — perguntou surpreso.

— O quê? Como assim?

— Ah, você sabe... — ele riu sem jeito começando a bater os dedos na perna.

Peguei mais sorvete e neguei com a cabeça.

— Valentina, você quase nunca brinca. É sempre séria, calada. — acusou — Nem parece a mesma que conheci naquela festa.

Fui apresentada a Stanley por meio da Nicolle e ele parecia ser a única pessoa interessante em meio a tantos esnobes que estavam ali para arrecadar fundo para crianças com câncer, mas que não conseguiam deixar de se exibir.

— Eu só ando muito estressada. — expliquei — Desculpa.

— Você sabe que não precisa casar comigo por obrigação. Não é?

— O quê? — sinto o coração acelerar e um medo esquisito me incomodar — O que quer dizer?

— Você lembra como rimos na festa que nos conhecemos? Como nos divertimos?

Assenti.

— Depois que a Mary e a mamãe vieram falar com a gente e praticamente nos jogaram em cima um do outro, você mudou.

— Ainda assim você me pediu em namoro uma semana depois. — aleguei.

Ele ia falar algo, mas seu celular começou a tocar.

— Só um instante. — prometeu.

Vi seu rosto se contorcer e demonstrar cansaço, quando, depois de ouvir a pessoa do outro lado, ele afirmou:

— Vai ficar tudo bem, Sr. Sholmer, estou indo para a delegacia agora mesmo.

Stanley desligou o celular e fez uma careta para mim.

— Tudo bem, vai lá. — dei de ombros — Seu cliente precisa de você.

— Seu pai não está de plantão hoje na delegacia. Não é? — perguntou.

— Não. — respondi.

— Certo. — mexeu nos cabelos perfeitamente penteados — Diga a ele que mandei um abraço.

— Tudo bem. — peguei o pote de sorvete ainda pela metade — Até.

Ele pareceu me analisar de forma indecifrável, mas logo puxou meu rosto, selou nossos lábios de forma breve e correu até seu Audi preto.

Levantei pensando da primeira vez que nos beijamos profundamente, no final daquela mesma festa, e em como as coisas entre nós tinham se tornado profissionais.

Talvez esse tenha sido o problema. A profissionalidade.

E quando ele acenou para mim antes de ligar o carro eu percebi que ele não merecia viver com uma mulher angustiada como eu, então decidi mudar.

— Eu acredito que coisas boas estão vindo. — sussurrei como uma prece para que minha mudança viesse para o bem de todos.

Só não lembrei que ninguém muda da noite para o dia, ou melhor, ninguém muda magicamente em sessenta dias.

[...]

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