24. Casa da Seyfried
Já se passavam das três e meia quando Sophie deitou-se em sua cama, fazia demasiado tempo que não relaxava. Não conseguia lembrar da sensação que era estar em sua cama. Chegava até a ser infantil a euforia que podia sentir por estar em seu quarto. Havia sido uma semana dura, principalmente as últimas horas enfurnada na morgue. Seus olhos pareciam estar cada vez mais pesados, seguiam de encontro para um outro mundo, dos sonhos talvez. Um soar longe a impedia de concretizar sua viagem. Lutou para abrir os olhos âmbar, era a porta batendo. Alguém estava tocando em sua porta em plena madrugada. Ela não sabia quem era, mas isso a irritava.
Rolou os olhos já abertos e colocou-se a descer as escadas de madeira e seguir em direção a porta. Olhou pelo pequeno buraquinho na porta e conhecia aquela silhueta muito bem, era inconfundível, mas o que estava fazendo em sua casa uma hora dessas? Haveria acontecido alguma situação? Sophie deixou os pormenores somente em sua mente e abriu a porta para aquela pessoa. Valquíria adentrou aquele recinto, deu uma olhada na sala, e como esperado, tudo estava devidamente impecável como era esperado de Sophie. O café já deveria ter evaporado na corrente sanguínea da detetive. Elas se entreolharam por alguns instantes em silêncio.
- Por mais embaraçoso que pareça, só consegui encontrar a rua da sua casa e não da minha - confessou a detetive que não lutava mais para esconder sua exaustão.
Era um fato para Sophie já que, às vezes, Valquíria passava mais tempo no departamento de policia do que sua própria casa e de quando em quando frequentava a casa da doutora para estudar os casos das vítimas. A maior parte que Sophie sabia sobre a detetive é que era uma viciada por trabalho e não seria uma surpresa, em seu atual estado, inconscientemente ser guiada para a casa da legista. Ao menos, era isso em que ela agarrava-se para acreditar. Sophie a convidou para entrar. Estava com as mesmas roupas quando haviam saído do DP a horas atrás, por onde ela andou? Era o que Sophie gostaria de perguntar, mas apenas proferiu essas palavras em sua mente. Conhecendo a detetive, o máximo que receberia seria um "por aí".
- Vou preparar um pouco de chá para você – diz Sophie, recebendo rapidamente um olhar estranho pela mais alta, um mínimo franzir de cenho. Era sempre tão fria e sem expor emoções que a doutora esquecia que a outra sabia fazer outras expressões, além da de costume. – Não me olhe assim, você já tomou café demais e no seu estado não sei se beber seja uma boa opção, deve tomar outra coisa mais relaxante e comer algo.
Valquíria nada disse e seguiu a doutora até a cozinha, tudo estava lavado e arrumado, nada fora do lugar, não há um único vestígio que mais alguém morava ali. Sophie, estava usando uma longa camiseta branca sem mangas que vestia para dormir, mostrando as coxas grossas. Porém, deveria estar usando só isso, além das peças de roupa íntima, algo que foi percebido pela detetive que olha de soslaio e de maneira discreta para que a outra não perceba.
Sophie estava picando tomates para a salada, no fogão, uma panela descansava, logo daria lugar ao curry tailandês que estava preparando, enquanto bebericava seu Bordeaux gelado de madrugada, estaria de folga amanhã e a detetive também, ao que indicava, então estava se permitindo a isso. Era um prato simples de se fazer, não iria levar muito tempo e acima de tudo, mostrava seus dotes culinários para a policial.
- O que eu poderia fazer para ajudar você? – indagou Valquíria. – Afinal, prendi você por 24h no departamento e retirei você da sua cama. Estou em debito.
- Absolutamente nada – replicou a outra. – você é a visita na minha casa, como uma boa anfitriã eu deveria está fazendo exatamente isso.
- Não nestas circunstâncias – disse a morena ao se aproximar por trás e retirar a faca da mão da outra. Fazendo Sophie segurar a respiração.
- E quais circunstâncias seriam estas? – Sophie liberou o ar que esqueceu de estar segurando.
- Eu me autoconvidei, nada mais justo do que ajudá-la. – disse a detetive de forma óbvia e com um fio de provocação que Sophie percebeu ou imaginou ter percebido.
A detetive começava a picar tomate, seguido dos pepinos que Sophie havia separado.
- Você realmente é uma viciada em trabalho – Sophie disse ao rir.
- Só uma viciada em trabalho poderia reconhecer outra – retrucou a detetive.
Sophie gargalhou com aquilo da forma mais sincera que havia, e pode perceber um ligeiro sorriso minimalista nos lábios da detetive. Sophie adorava esse momento intimista com a morena, pois sabia que ela se sentia confortável quando estavam a sós.
Outra coisa que sempre percebeu, era que Valquíria só comia bem quando vinha para casa da loira, pois a legista fazia ótimos pratos, já recusou a comida da outra nos primeiros anos que se conheceram, porém, Sophie sempre fazia questão de cozinhar algo, usando como desculpa o fato de estar com fome e por isso fazia outra porção, dando para a detetive.
- Eu tomo chá, enquanto você cozinha com vinho? – diz a detetive observando a outra.
- Não posso fazer nada se gosto de cozinhar, enquanto bebo algo, além disso você me tirou da cama em plena madrugada.
O curry tailandês estava pronto, Sophie sentou-se no banco da ilha de mármore negra da sua cozinha e observa Valquíria se servir. Ela encheu sua taça novamente com vinho tinto dessa vez. O silêncio não incomodava nenhuma das duas, estavam acostumadas a ficarem a tempos sem falarem, enquanto estavam na morgue, trabalhando. Era reconfortante, não algo sufocante ou anti natural, como pareceria para outras pessoas. Mas ela quebrou aquele silêncio, informando que a algumas horas atrás o departamento a ligou solicitando os resultados médicos do corpo que estavam estudando sobre a causa da morte. Algo que estranhou, sempre esperavam que Sophie liberasse as informações e não antes. Van Dahl a fitou nos olhos por muito tempo em silêncio, parecia estar montando um quebra cabeça de tamanho médio.
- Devem estar loucos para arquivarem o caso o quanto antes. Afinal, estamos a muito tempo à procura de alguém que tecnicamente, ninguém acredita que é o culpado. Querem encerrar de vez com isso e assim, nosso rastro sobre o "misterioso comerciantes de armas" se perderá. – disse objetivamente.
O assunto ali acabou por morrer.
*****
Valquíria lavava os pratos como gesto de agradecimento pelo esforço de Sophie. A médica encontrava-se na sala com outra bebida, um coquetel com limas. Dessa vez estava irritada com o desmazelo dos policiais em levarem um caso assim, mas ela sabia bem. Era a grande oportunidade esperada para o prestígio de Van Dahl diminuir, seu primeiro caso, sem solução. Era uma chance imperdível e isso a irritava. Não percebeu quando a outra sentou-se ao seu lado no sofá. Já sem o seu blazer preto habitual. Retirou o coldre e colocou as duas pistolas no centro a poucos metros de distância. Valquíria se prostava de forma rígida, com aquele velho ar profissional, que habituou-se a fazer na frente dos colegas de trabalho. Sophie a observava e revirou os olhos, informando que ela poderia relaxar, não sairia denunciando ou expondo em redes sociais que Valquíria Van Dahl é um ser um humano o qual precisa descansar também. Tanto que não se esforçou para mostrar a sua figura imponente por mais tempo. Ali ela poderia mostrar que realmente estava cansada pelo seu trabalho e pelos outros serviços que faz, algo que ninguém sonha. Nem mesmo a doutora ao seu lado.
- Você está horrível sabia? – mais uma vez expondo o óbvio para a detetive.
- Só porque está me vendo assim, não quer dizer que tem o direito de expor como estou. – embora séria, Sophie sabia que a outra estava mostrando o seu lado humorado. Só mesmo a Doutora Seyfried para entender a morena
- Então, como o Cão de caça do Estado irá resolver isso?
- Cão de caça do Estado? – repetiu Van Dahl e deixou-se fazer uma expressão de insatisfação. – Por favor, não me chame assim, Sophie.
Sophie acabou rindo da expressão da outra, ninguém naquele departamento tinha o privilégio de ver tais expressões da mulher mais fria daquele departamento, além da Sophie.
- É assim que todos os policiais a chamam, não na sua frente, é claro. Mas soube disso quando escutei alguns comentários, você sabia disso?
- Já escutei algumas vezes, não gosto do apelido. Não o suporto, sendo mais precisa – Valquíria fechou os olhos e aconchegou-se mais nas almofadas – Como se eu fosse um cão do governo, um animal domesticado sem vontades próprias.
Sophie se esticou de forma temerosa até perto do rosto da detetive para retirar algumas mechas que teimavam em cair no seu rosto. Só escutou uma voz baixa e sonolenta inquirindo-a o que estava fazendo, ela assustou-se, retirando de imediato a mão dos fios escuros. Estava alerta, não sabia a razão de ter feito isso tão levianamente, como um gesto pueril. Tentou não transparecer que estava em nervos e respondeu com o máximo de tranqüilidade possível que estava apenas retirando algumas mechas do rosto da outra.
- Você realmente parece cansada... e mesmo assim parece difícil para você relaxar.
- É algo que não aprendi a fazer. – pausou por um momento e continuou – embora, seja o mais próximo que consigo chegar de relaxar. – Sophie acabou entendendo que apesar da outra não ter aprendido a relaxar, ali ela conseguia exercer o que ela achava o que seria próximo a um gesto de relaxamento. Acabou sorrindo um pouco de canto com a informação colhida.
- Não seja tão dura consigo mesma, vamos deite-se, parece que acabará desmaiando a qualquer momento.
Sophie, levantou-se do sofá e da forma mais mandona que achou que teria fez a outra deitar-se, achava que por estar a anos juntas, teria esse tipo de liberdade, esperou uma frase reprovadora, mas a outra parecia cansada demais para pestanejar. Valquíria, havia se desfeito dos seus sapatos, estava deitada. Não sabia como poderia estar dessa forma. Sophie encontrava-se sentada no chão, encostada no sofá, terminando a sua última bebida da madrugada. Estava visualizando seu celular pela última vez, nenhuma mensagem de Elizabeth, parece que resolveu deixá-la em paz. Quando levantou o rosto para ver a detetive, a mesma encontrava-se dormindo. Ficou ali, vendo-a dormir por um tempo. Seu rosto estava tranqüilo, sem expressar aquela expressão cortante e fria, habitual.
Traços delicados e harmoniosos, havia retirado a maquiagem pesada, mas ela não precisava disso, pois era bela e a legista sabia disso. A mulher deitada ali na sua frente, ela não sabia quando foi que se tornou tão atraída pela enigmática detetive, quando começou a ficar tão insuportável não estar ali com ela. Estava se sentindo patética. Elizabeth tiraria sarro da sua cara agora e depois a chamaria para o quarto, para um longo sexo selvagem, sem compromisso, uma amizade colorida, com benefícios, na qual uma escutava sobre a outra. Elizabeth escutava mais do que falava. E não entendia, a esse momento recatado de Sophie, se queria tanto assim a detetive, porque não investia? Ela tinha medo, após todos esses anos, agia como adolescente, sentia medo do que poderia acontecer à seguir. Afinal, Valquíria não era tão amistosa, apesar de ser com ela. Talvez fosse diferente, porém há o outro lado, e se não fosse?
Ela levantou e foi buscar um cobertor no armário e cobriu a detetive, estava prestes a acariciar o cabelo da detetive, mas a mão branca a imobilizou antes de alcançar o objetivo.
- Desculpe, eu... – disse ela, gaguejando. – não queria acordá-la.
Valquíria estava com os olhos cinzentos abertos, fitando-a, observando cada movimento da outra. Sophie, soltou o ar, não imaginou que o havia segurado, sentiu também um leve calor em sua face, deveria estar vermelha a essa hora.
- Eu ia só cobrir você e ia embora para o meu quarto.
Valquíria nada disse e voltou a fechar os olhos. Sophie achou que talvez ela acordasse enquanto dormia por reflexo, algum hábito adquirido com os ossos do ofício, pensou. Então, resolveu se recolher também.
6 de fevereiro de 2018 - madrugada
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