22
A mensagem de Raoul Davini deixou bem claro. Até os organizadores do BackStreet estavam preocupados com os ajustes suspeitosos que estavam ocorrendo em Noé. Apesar de, em seu discurso, a Secretária de Estado ter assegurado que nada de alarmante estava acontecendo, o programa de austeridade adotado pelo governo, tão repentinamente, estava semeando o alarme.
O ar crepitava com a estranha sensação de que algo estava errado. Por essa razão, os organizadores do BackStreet haviam adiantado quase um mês, e Raoul Davini fez questão de avisar Sooz junto com a renovação do seu convite.
Ela os havia criticado amargamente no início. Seu humor durante aquele mês não era de admirar. A reconciliação com Driamma havia melhorado as coisas, mas o declínio de Noé estava se tornando dolorosamente visível, especialmente para elas, que sabiam exatamente o que estava acontecendo. Além disso, seu não-relacionamento com Elek havia-se tornado sua principal angústia. Como sempre acontecia, agora que o havia perdido, ela o queria mais do que nunca. Por todas essas razões, a garota se recusou completamente a participar do evento.
Ash, que tinha começado a gostar de coisas novas e nas primeiras vezes, especialmente agora que se encontrava com um pé inexperiente na cova, estava determinada a não perder nada. Ela havia insistido, em nome de suas curtas vidas, que elas mereciam uma noite de erros mais do que nunca.
Driamma, que havia perdido mais de oitenta por cento da sua energia vital depois de Bronte, estava dividida entre a indiferença apática com que encarava tudo e a decisão final de ir ao evento, cuja principal razão, suspeitava Ash, era aquela pequena e minúscula esperança que seu irmão ainda vivia com outra identidade em Noé.
Ela nunca mencionou ou falou dessa esperança, mas Ash podia ver em seus olhos quando elas visitaram a cidade. Um pequeno brilho, cada vez mais fraco, que a fez olhar ao redor e ver todos os jovens da idade e constituição de seu irmão. Foi desanimador. Mas, afinal, a garota não o tinha visto morto, e Ash suspeitava que algo dentro dela ainda gritava que seu amado irmão ainda estava vivo.
Ela não falava muito sobre seus sentimentos em relação a isso. Sempre que lhe perguntavam como estava, respondia o mesmo:
— Como se uma guerra nuclear tivesse-me deixado completamente órfã.
Às nove horas da noite de sexta-feira saíram da cápsula em uma das estações da cidade de Noé. A estação ficava a apenas dez metros do local que Sooz havia combinado com Davini. Um parque que durante o dia servia de recreação para os habitantes da região, mas que àquela hora da noite estava deserto.
Ash aguçou os olhos e, ao longe, na zona mais afastada e iluminada do parque, avistou as sombras de um corredor fazendo jogging , e de um casal a passear pela estrada de terra.
Elas pararam em frente a um enorme carvalho. Sooz olhou ao redor, mas ficou claro que elas estavam sozinhas.
— Onde diabos está Davini? — Ela exclamou irritada. — Seria de esperar que alguém perfeito também fosse pontual.
— Vangloriando seu encontro?
As três meninas ouviram claramente a voz, mas não conseguiram localizar a fonte. Era como se a própria árvore tivesse dito isso.
— Aqui em cima —, a voz repetiu.
Ash ergueu o queixo, concentrando-se em escanear o topo da árvore para localizar o emissor. Vinte segundos foram suficientes para encontrá-lo sentado calmamente em um galho grosso da árvore. Suas costas estavam apoiadas no robusto tronco principal, serenamente, como se não lhe custasse nenhum esforço manter o equilíbrio.
Ela observou a figura pública sobre a qual havia falado tantas vezes e sentiu um calafrio percorrer sua espinha; mas foi uma sensação boa. Aquela noite valeria a pena ser lembrada.
Raoul estava usando calças pretas de couro sintético, que combinavam com botas altas e peludas, talvez a última moda entre os liberais. Também um moletom branco e aberto, que expunha parte de seu peito. Parecia algo saído de uma vitrina ou de um catálogo de moda. Algumas pessoas vestem suas roupas como se fossem feitas para seus corpos, e esse foi o caso de Davini.
Raoul não estava sozinho; Ao lado dele, no galho, estava uma garota loira, alta e esbelta, de compleição atlética, como se passasse o dia praticando esportes. Ao contrário de Raoul, ela estava de pé, agarrada aos galhos com apreensão.
— Riquini, você não acha que isso é um encontro, acha? — Sooz retrucou, cruzando os braços.
— Ah, vamos lá, Sooz. Dava para te escutar desde aqui os teus gritinhos de felicidade com a perspectiva de um encontro comigo na minha mansão.
Sooz fechou os olhos por um momento, convocando a paciência dentro dela.
— Raoul, você acha que essas roupas são masculinas o suficiente para permitir que você use tantos diminutivos?
Ash não pôde deixar de rir ao ouvir a amiga de Raoul criticar sem cerimônia o personagem mais popular de Noé.
Raoul levantou o rosto para olhar para ela, um pouco irritado.
— A homossexualidade é um defeito genético e eu não tenho nenhum defeito.
A garota que estava com ele balançou a cabeça como se não pudesse acreditar no que acabara de ouvir.
— O amor faz você estúpida —, disse ela baixinho como se fosse para si mesma.
Sooz, que levou as mãos ao rosto com o comentário do jovem, virou-se para elas com uma expressão de ira.
— Eu vou odiar vocês para sempre por me obrigar a fazer isto. Rezem para que eu não mate este idiota e acabe na cadeia.
— O que você está sussurrando, preciosa? — Ele gritou para ela de volta. — Não há necessidade de ficar nervosa, eu sou apenas de músculo e osso.
— Riquini — Sooz se certificou de que o apelido soasse o mais ofensivo possível. — Estou pensando em várias maneiras de descer você dessa árvore. E todas elas terminam com seu pescoço quebrado.
Raoul deu uma bela risada profunda.
— Mas isso seria uma perda para o Mundo; e perda de tempo, porque vocês também tem que subirem para ir à festa. Comecem a subir.
— O quê? Você quer que acreditemos que há uma festa nessa árvore silenciosa? — Driamma interrompeu. — Não há mais ninguém aqui além de nós cinco.
— Isso é porque você olha, mas não vê, amiga número dois —, ele respondeu.
— Eu tenho um nome —, Driamma retrucou.
— Claro que sim —, ele admitiu. — Mas para mim, esta noite, vocês são a amiga número um e a amiga número dois.
— Isso é mais longo do que nossos nomes —, Ash protestou, logicamente.
— Talvez —, ele comentou, inclinando a cabeça. — Mas não mais do que o tempo que levaria para me lembrar de algo que não me interessa. Confie em mim, Número Um, já verifiquei.
Ash cruzou os braços também, como Sooz tinha feito antes.
— Vejo que sua perfeição deixa muito a desejar.
— Comporte-se ou eu vou relegá-la ao número dois —, ele advertiu seriamente.
Sooz bufou.
— Viram o que eu queria dizer?
— Já chega, Raoul —, reclamou a garota em tom firme, como se tivesse a capacidade de controlar esse ser humano, arruinado por anos de bajulação.
— Diga isso a elas, que ainda não subiram; não a mim.
— Ensina elas como fazê-lo —, ela ordenou, cutucando-o com a perna. Raoul caiu no chão com um baque alto e um gemido ainda mais alto. Por um momento ele amaldiçoou a dor na perna, mas nunca insultou a causa da sua dor.
— Obrigado por me ajudar a descer —, ele simplesmente disse em um tom sarcástico, mas muito mais suave do que se esperaria de uma pessoa que tinha acabado de se contorcer de dor.
— De nada —, ela respondeu, um pouco arrependida.
Raoul mancou até a árvore, mas com um sorriso animado. Ash começou a se perguntar se o caráter do jovem não era tão ruim quanto ele estava tentando fazer parecer.
Ele as ajudou a subir, e quando todos estavam de pé, Ash teve que se mover para a extremidade externa do galho, onde se estreitava perigosamente. Ela se concentrou em seus pés e em sua segurança na área delicada que estava começando a ceder sob seu peso. Então, ela sentiu algo duro e frio batendo na sua testa. Atordoada, ela levantou a cabeça, mas encontrou apenas o céu escuro em seu caminho.
— O que é que foi isso? — Driamma perguntou a ela, logo atrás dela.
Ela estendeu a mão cautelosamente para o céu e, no meio do caminho, exatamente onde sua cabeça havia batido, sua mão encontrou uma superfície lisa e invisível. Os outros a observaram apalpar o que não podiam ver, como um mímico acariciando uma parede no ar.
— Você sente um buraco mais profundo do que o resto? — A amiga de Raoul perguntou, de pé logo atrás de Driamma.
Ela passou a mão pela superfície novamente, procurando o que acabara de ouvir, até que sentiu um entalhe contendo algo áspero, como pequenos botões.
— Você tem que desenhar o padrão de uma árvore —, continuou a garota, descrevendo a forma no ar.
Ash tentou reproduzir o que viu da melhor maneira possível e, embora ela nunca foi boa desenhando, um estrondo anunciou que algo na superfície estava se movendo. A primeira coisa que viram foi a luz através de uma porta que se abria e o som da música que a acompanhava.
A porta se abriu em algum tipo de corredor, embora Ash não pudesse ver além do homem volumoso que bloqueava a entrada. O porteiro pediu suas identidades e se afastou da porta para poder entrar na plataforma invisível. Embora não se atrevesse a ir muito longe, porque a sensação de andar em um terreno invisível, três metros acima do parque, era muito estranha.
Atrás dos porteiros havia uma longa cortina de água envolvendo-os em um semicírculo, tão abundante que era impossível ver o que havia além do hall. Ash não pôde deixar de se lembrar de Kaudalon, embora aquela cachoeira reutilizasse a água repetidamente.
Quando os seguranças terminaram de revistar os outros, eles desativaram a cortina de água por tempo suficiente para eles entrarem no que possivelmente seria o último BackStreet da história de Noé.
A sala gigantesca do outro lado da cortina de água também estava suspensa no ar. As paredes e o teto eram feitos de céu negro, e o chão flutuava vertiginosamente acima da grama do parque.
Ash se sentiu um pouco sobrecarregada, já que ela nunca tinha visto tamanha concentração de corpos; nem mesmo naquele dia na estação de Noé.
Eles eram todos jovens e borbulhando com energia e vitalidade. Empolgados, tentaram falar mais alto que a música, dançando em ritmo frenético. Outros, sinuosos, desajeitados e claramente embriagados.
Era estranho ver essa multidão humana se movendo constantemente, mas sem se mover, em uma espécie de caos sincronizado.
As luzes coloridas que bombardeavam a sala de vez em quando, e constantemente em outras, rebatiam nas paredes invisíveis, criando um reflexo mágico e ajudando a reconhecer os limites da sala.
Havia uma escada lotada de gente que levava a um segundo nível.
— Como esse lugar todo pode ser invisível? — Driamma exclamou atrás dele.
— Não é invisível —, corrigiu Raoul. — Os organizadores da BackStreet não têm varinha mágica, sabe?
— Ah não? — Driamma perguntou incrédula. — Eu não sei você, mas eu não vi ou ouvi nada disto quando estávamos lá fora.
— Não é mágica, mas a melhor camuflagem que você já viu. As paredes externas são feitas de telas que mostram a imagem do céu. Se você suspeitasse que este lugar esta aqui e observasse o céu com atenção, poderia ter visto algo estranho. Além disso, se você tivesse batido com qualquer uma das colunas que o seguram. É por isso que estão em uma parte isolada do parque.
Driamma sorriu, impressionada. O que imediatamente conseguiu deixar Ash de bom humor. Sua amiga não teve a chance de sorrir muito ultimamente. Mas nada melhor do que a descoberta de coisas nunca vistas antes para distrair uma alma dolorida.
Sooz veio atrás dela.
— Eu acho que essa mulher a Robyn não gosta de mim —, ela sussurrou em seu ouvido. — Já a peguei várias vezes me olhando de um jeito estranho.
Automaticamente, Ash virou o pescoço para olhar para a mencionada garota, mas Sooz a deteve, agarrando-a pelo baço.
— Talvez ela esteja com ciúmes.
Sooz torceu o nariz.
— Não acredito. Ela e Davini são como irmãos. Robyn era filha da empregada de Davini na Terra. Seus pais morreram na guerra e os pais de Davini a levaram com eles. Eles moram na mesma casa e tudo. Como irmãos de verdade.
Eles pararam para esperar por uma fila de pessoas, também indo para as escadas, para avançar pela estreita brecha que milagrosamente se abriu na multidão. Ash aproveitou a oportunidade para se virar e olhar o casal do lado. Um jovem tinha acabado de passar o braço pelo de Robyn e estava gritando algo em seu ouvido, inclinando-se mais do que o necessário. Raoul lançou-lhe um olhar tão ameaçador que o garoto a largou imediatamente, retornando com o seu grupo.
— Acho que algumas amizades são complicadas.
— O quê? — Sooz gritou. Nessa área, o volume da música tornou-se insuportável.
Ela balançou a cabeça com desdém, e eles começaram a subir o árduo caminho para as escadas. No caminho para o segundo andar, eles passaram por um garoto cujo olhar se prendeu ao dela por mais tempo do que o de qualquer outro corpo. Ela foi instantaneamente atraída, e uma onda de adrenalina a acordou e a puxou para a festa. O jovem parou nos degraus inferiores ao passar por Raoul e eles se cumprimentaram familiarmente, trocando algumas palavras antes de continuar a descida.
No piso superior estavam os três bares dispostos em forma de C, que não eram suficientes para atender os clientes. Por sorte, a música chegou até eles um tanto mitigada, e a comunicação ficou muito mais fácil.
Eles tiveram que usar os cotovelos para ganhar um pequeno espaço no bar, e mesmo depois disso, Sooz teve que se esforçar insistentemente para chamar a atenção do barman.
A meio metro deles, as pessoas se separaram do bar para abrir caminho para Raoul, e os garçons praticamente lutaram para atendê-lo.
Sooz revirou os olhos, irritada, e quando Raoul lhe ofereceu a primeira bebida que recebeu, ela recusou, tentando pegar uma sozinha. Então Raoul entregou a Ash.
Ela provou o álcool pela primeira vez em sua vida, e parecia-lhe que não tinha sido criado para tocar o paladar humano. Gotas de veneno flutuando na água e limão que ela bebia como remédio rápido e eficaz para suas inseguranças. Ou, pelo menos, era isso que ela havia entendido.
— Os baras estão lá embaixo —, anunciou Driamma, voltando do banheiro.
O coração de Ash bateu mais forte com isso, mesmo quando ela terminou o primeiro copo de veneno. No momento, a única coisa que sentia era uma certa pressão na cabeça. Ela se perguntou se o álcool teria algum efeito desinibido sobre ela.
— Gabor trouxe sua nova namorada? — Sooz perguntou a ela.
— Não havia nenhuma garota com eles. Ele tem namorada?
Ash assistiu a conversa como alguém assistindo a uma partida de tênis. Lentamente, ela levou a mão ao coração e ficou surpresa ao não encontrar sangue ali porque a dor que sentia não era emocional; era intenso e assustadoramente físico, como se uma faca de aço muito real tivesse perfurado seu órgão.
— Sim, ele está com ela há dois meses —, disse Sooz. — Ele finalmente me confessou: ela é uma garota da cidade, por isso sai todo fim de semana.
Dois meses, Ash pensou enquanto sangrava lentamente. Isso significava que ele já estava com ela naquela noite em sua varanda, a mesma noite em que, jogando o baralho de beijos, ele a obrigou a confessar seus sentimentos por ele. Por que ele fez isso se ele estava namorando outra pessoa? Que necessidade ele tinha de forçá-la a se declarar por nada? Em sua cabeça, ela repassou todas as cenas que havia compartilhado com ele nos últimos dois meses. Ela os revisou sob a nova luz da informação que acabara de receber e, embora a dor não tinha passado, seu auto-respeito começou a acalmá-la. Essa foi a última prova de que Gábor não era bom o suficiente. Disse a si mesma que tinha pena dessa garota que, em algum lugar, estava começando um relacionamento com alguém que gostava demais de brincar com os outros, alguém que, se não pudesse dar-lhe exclusividade no início do relacionamento, nunca daria a ela.
. —..Sim, ele está muito apaixonado, eu o conheço bem.
Embora ela tivesse perdido parte da conversa porque estava imersa em seus pensamentos, essas últimas palavras saíram em alto e bom som, afundando o fio da faca mais uma vez. Mas desta vez doeu menos, porque a ferida já estava aberta e o estrago também já feito.
Com os pés escorregando no sangue metafórico que seu coração estava derramando no chão, ela se afastou das garotas para o bar. Raoul e Robyn estavam pedindo suas próprias bebidas, então ela se inclinou para pedir outro copo do mesmo. Ash não conhecia o conteúdo, que era totalmente desagradável ao paladar e não conseguia embriaga-la. Mas, por algum motivo, ela queria outro.
No final de sua terceira bebida, Ash começou a se mover para ir ao banheiro e notou algo estranho em sua caminhada, pois precisava se concentrar mais do que o normal para manter o equilíbrio. Nada alarmante. Na verdade, sua predisposição habitual para se preocupar parecia ter saído de férias, e seu cérebro não se preocupava muito com o pensamento, mas em vez disso permanecia superficial e alegre. Ela gostou disso.
Porém ela não gostava da dificuldade, acrescentada pelo álcool, à já árdua tarefa de usar um banheiro público. Mas finalmente ela conseguiu. Higienizou as mãos, tentando não olhar seu reflexo no espelho para não arriscar uma imagem ruim arruinando seu bom humor. Ela decidiu circundar a sala, aproximando-se da parede em vez de atravessá-la. Seria mais fácil encontrar os outros com a parede como referência. De repente, ela sentiu alguém puxar seu braço e ela caiu no colo do jovem da escada, amigo de Raoul. Ela tentou se levantar, mas ele a puxou de volta desta vez, permitindo que ela se sentasse ao lado dele, embora muito perto.
— Acho que vou precisar da sua ajuda.
Ash simplesmente olhou para ele, incapaz de pensar em outra coisa além de quão bonita era a sua pele morena; Ela tinha vontade de acariciá-la para verificar sua textura.
— Preciso que me diga seu nome, porque não consegui encontrar seu Facebook, nem por Raoul, nem por Robyn.
Ela estava perfeitamente ciente de que ele ainda estava segurando seu pulso, quando não havia necessidade disso.
— Para que você quer meu Facebook?
— De que outra forma eu vou decidir se vou te beijar ou não? — Ele perguntou, com muita naturalidade, como se estivessem falando sobre investir no mercado de ações.
Em uma situação normal, Ash teria sofrido uma parada cardíaca; no entanto, fosse pela normalidade com que ele encarava a situação, ou pelo líquido que corria em suas veias, ela não ficou nem um pouco nervosa.
— Você encontraria a resposta no Facebook?
O jovem assentiu, e um sorriso lento curvou seus lábios.
— Não sei nada sobre você. Você poderia ser uma psicopata.
— A psicopatia foi erradicada há mais de sessenta anos —, ela deixou escapar sem pensar, e a pequena parte de sua mente que ainda a culpava gemeu timidamente.
No entanto, ele não pareceu achar sua resposta pedante, mas saltou imediatamente.
— O que eu devo fazer então? — Ele continuou com horror simulado —, perguntar Davini sobre você? Pedir para ele nos apresentar?
— Eu também não tenho acesso ao seu perfil.
— Eu sei —, ele sorriu. — É estranho conhecer alguém assim. É tão século XX.
Ash se levantou lentamente. Ele a imitou.
— Então você não deve fazê-lo.
Ele se aproximou dela mais do que o necessário para se fazer ouvir através da música.
— Definitivamente não deveria fazê-lo.
Ele olhou profundamente em seus olhos. Um olhar que falava por si só. Apesar de sua inexperiência, ela entendeu a mensagem claramente. Surpreendendo-se, ela terminou de cobrir a pequena distância que ele havia deixado entre eles. O garoto a recebeu movendo os lábios tão devagar e habilmente que ela imediatamente adorou.
Em vez de querer correr, como fizera com Taly, e até com Gábor, ela queria mais. Bem, aquele estranho atraente significava drama. Por que, sem conhecê-lo ou fazer parte de seu círculo diário, as pressões desapareciam.
De alguma forma, esse estranho sabia exatamente como tratá-la e não pôde deixar de se lembrar daquela música dos Rolling Stones: «Você nem sempre consegue o que quer, mas às vezes consegue o que precisa».
Depois de flertarem por um tempo, eles foram até onde os outros estavam, e ele se afastou para conversar com um amigo.
Foi então que ela sentiu algo agarrar seu braço.
— Não fale com estranhos.
Ela olhou para cima, incapaz de acreditar no que encontrou:
Ao Gábor, com cara de poucos amigos.
Ash estava de bom humor para deixar que seu comentário ciumento a incomodasse.
— O que você esta fazendo aqui?
— Eu nunca perco um Backstreet .
— E sua namorada?
Ele segurou uma careta antes de responder.
— Não veio.
O jovem, cujo nome era Hadi, acenou para ela, mas quando Ash começou a andar, Gábor agarrou seu pulso.
— Onde você vai? Suas amigas estão procurando por você.
Foi a gota d'água.
— Hadi é meu amigo agora —, disse ela simplesmente, tentando se libertar de seu aperto.
Gábor virou o pescoço e exclamou:
— Driamma, eu a encontrei.
Antes que Ash pudesse dar outro passo, ela enganchou seu braço.
— Onde estava? Você demorou um montão.
Gábor ficou satisfeito com o desarme de Driamma.
— Não volte a deixa-la sozinha. — Tem muito bêbado à solta —, ele disse a Driamma, antes de se afastar para ir com seus amigos.
Ash olhou para suas costas com a boca aberta com pura indignação. Qual era o seu problema? Ele não a queria, estava felizmente saindo com outra, mas não a deixaria em paz. Ele nem a deixava falar com outro em uma festa.
Driamma arrastou-a para onde estavam o grupo delas e, assim que Sooz as viu, juntou-se ao interrogatório. Ash as informou sobre o que havia acontecido com Hadi, mesmo sabendo que Gábor estava descaradamente ouvindo a conversa. Então, ele decidiu pegar a mão dela e fazendo-a se virar, ele começou a dançar com ela.
Ash sentiu novamente aquele poderoso ímã que a deixava inútil cada vez que estava perto dele. Todos os sentimentos profundos e eletrizantes que a enchiam quando ela estava com ele voltaram à tona. Ela se odiava por isso e por estar feliz diante do ciúme dele.
Mas Hadi mostrou a ela que era capaz de sentir coisas por outros, e isso a levou a desmistificar Gábor. Puxando-o para baixo de seu pedestal de deus do Olimpo e percebendo, pela primeira vez, que ele era apenas um garoto de quem ela gostava. Talvez os fortes sentimentos que ela tinha por ele não fossem nada mais do que o fruto de sua inexperiência. Talvez se ela tivesse conhecido mais rapazes do seu agrado, ele não lhe parecesse tão excepcional. Talvez fosse ela e não ele.
Essa descoberta a mudou completamente.
— Você está diferente esta noite —, ele sussurrou em seu ouvido. Quase como uma acusação.
Provavelmente porque pela primeira vez ela não estava olhando para ele como se fosse um ser extraordinário.
— Acabei de perceber uma coisa —, disse ela simplesmente.
Ele olhou para ela, um pouco magoado, e sem entendê-la, ele a compreendeu.
— Eu não sou mais o seu prato favorito?
Gábor estava mais inseguro do que ela havia imaginado, e finalmente ela entendeu o que ele queria dela. Compreender isso foi possivelmente uma das revelações mais dolorosas e, ao mesmo tempo, mais libertadoras de sua vida. Ele não a queria. Se o fizesse, estaria com ela e não com a outra garota. O que ele queria dela era se ver refletido no espelho de seus olhos. Olhos que o observavam com admiração e adoração, e alimentavam seu ego com o melhor banquete imaginável.
Ela esboçou um sorriso amargo, rindo de si mesma por ter acreditado que olhares furtivos, gestos e pequenos detalhes significavam que, no fundo, ele a amava. Se você está determinada a acreditar em algo, encontra sinais que o provam nas coisas mais insignificantes.
— Sabe de uma coisa? Você é muito especial para mim —, ele continuou.
Claro que sim, quem mais iria idolatrá-lo assim?
— Você também é muito especial para mim, loirinho —, ela lhe disse, vendo como ele ficava surpreso com seu comportamento incomum.
Divertido, ele olhou para o copo de gim em sua mão, como se o culpasse pela mudança dela.
Não contente com isso, e sentindo-se pela primeira vez no controle da situação desde que o conhecera, ela ficou na ponta dos pés e beijou seu pescoço. Ela fez isso por si mesma, porque depois de tudo que ele jogou com ela, ela merecia. Mas ela ficou satisfeita ao notar a reação de seu corpo a essa abordagem inesperada. A tempestade que se desencadeou em seus olhos de Casanova, acompanhada de uma certa irritação por saber que a coisa não podia ir mais longe.
— Adeus, Gabor.
Sem mais delongas, ela girou nos calcanhares e o deixou sozinho.
Aquela noite era sobre ela. Naquela noite ela não pensava ser seu espelho.
Sooz olhou de soslaio para Elek, sentindo-se totalmente desconfortável com a situação. Ash tinha desaparecido com o amigo de Raoul novamente, e Driamma estava dançando com os outros amigos de Raoul. Raoul e Robyn também haviam desaparecido. E agora Gábor e Taly se afastavam em direção ao bar, deixando-a subitamente «sozinha» com Elek.
Quando ela olhou para ele com o canto do olho, ela o encontrou olhando para ela abertamente, o que só aumentou seu nervosismo. Ele estava tão sexy esta noite, naquele moletom azul-marinho com detalhes em branco, que realçava a beleza de seus olhos tanto como sua pele. Ela não era a única que pensava assim. Como penitência imposta pelo carma, ela teve que ser impassível e ver como muitas garotas olhavam para ele, sorriam, iniciavam uma conversa forçada com ele e tentavam chamar sua atenção de diferentes maneiras. Neste momento havia um grupo que, apesar de já ter tentado sem sorte, voltou a observá-lo quando o viu sozinho.
Uma delas era irritantemente bonita e ela não queria assistir aquilo. Mas se ela fosse embora agora, em vez de consertar as coisas entre eles, ela iria declarar guerra a ele. Sooz respirou fundo e se virou, determinada a dizer alguma coisa.
— Zsuzsanna, eu quero-me desculpar com você —, ele se adiantou em dizer.
Sooz mordeu o lábio nervosamente.
— Não é necessário que você me peça desculpas. Não estou mais brava pelo que aconteceu com Driamma.
— Não é por causa de Driamma —, ele corrigiu, conseguindo surpreendê-la. — Eu quero pedir desculpas por nós. Por te pressionar com essa aposta estúpida.
Sooz olhou para ele com a testa franzida, e Elek suspirou, tentando encontrar uma maneira de se explicar.
— Por um tempo eu pensei que todas aquelas coisas que eu sentia quando estávamos juntos eram fortes demais para você não sentir o mesmo. — Ele balançou a cabeça e sorriu tristemente como se estivesse rindo de si mesmo. — Quando ouvia o despertador de manhã não o odiava, pois sabia que ia te ver na aula e me vestia pensando no que você acharia da minha aparência. Esses sentimentos me fizeram sentir tão vivo que eu realmente pensei que você estaria em seu quarto passando pela mesma coisa. Foi por isso que te pressionei para que fizéssemos aquela aposta estúpida.
— Elek... — ela começou.
— Acredite em mim, eu me arrependo porque todo o dano que você me causou foi auto-infligido. Eu deveria ter aceitado o «não» desde o início e me resignado a vê-la como uma amiga. Como você me vê a mim.
— Elek, eu não...
— Não quero-te perder como amiga. Por que eu aprecio a maneira como posso falar com você sobre qualquer coisa, e como você é inteligente. Embora todo esse tempo tenha tentado vê-la apenas como uma irmã, não pude ignorar todas as coisas não fraternais que passaram pela minha cabeça. Mas naquela noite, jogando com as cartas do beijo, quando percebi que você tinha-me usado para se livrar da sua virgindade antes do seu encontro com Raoul, algo dentro de mim estalou. Doeu tanto que tentei-me vingar através de Driamma. Mas quando eu vi que você nem se importava com isso, eu entendi. Você nunca sentiria mais do que amizade por mim. Eu me sinto liberado. Todos esses sentimentos, excitação e ilusão dentro de mim morreram e agora, finalmente, podemos ser apenas amigos.
Sooz sentiu o chão afundar sob seus pés. As palavras «eles estão mortos» martelaram em seu cérebro como uma britadeira. Ela se inclinou para frente quando o chão puxou seu rosto.
Elek a abraçou, interpretando o gesto como uma aproximação, e Sooz ficou grata porque então ele não seria capaz de ver a expressão em seu rosto.
— Amigos? — Ele sussurrou em seu pescoço.
Incapaz de dizer qualquer coisa, ela assentiu e, separando-se dele, desculpou-se dizendo que precisava ir ao banheiro. Ela ainda não tinha dado dois passos quando as lágrimas começaram a escorrer por suas bochechas. Uma mão agarrou seu pulso e a deteve em seu caminho.
— O que está acontecendo com você?
Era Ash, olhando para ela com preocupação.
— Deixe-me em paz —, ela retrucou, afastando a mão dela.
A jovem olhou para ela com os olhos arregalados.
— Não seja assim, você está bêbada. — Você teve uma briga com Elek?
— Que ocorre? — Perguntou Driamma, que tinha visto a cena.
— Por que eu deveria-te contar? — Sooz estalou, seus olhos cravados em Ash. — Não é que você me conte suas coisas. Você nem confia em mim para me contar seu segredo estúpido.
— Que segredo? — Do que vocês estão falando?
Ash suspirou.
— Me desculpe, ok? — Me envergonha...
— Como você pode ter vergonha de algo assim? — Sooz perguntou, incapaz de entender.
Ash esfregou as mãos sobre o rosto.
— Bem, porque ele é o típico idiota...
— Você esta apaixonada por Gábor? — Driamma a interrompeu, tirando conclusões precipitadas.
— O quê? — Sooz perguntou, confusa. Aparentemente, ela estava bêbada, porque seu cérebro tinha problemas para passar de um raciocínio para outro.
A garota mordeu o lábio, envergonhada.
— Oh, Ash —, lhe disse, balançando a cabeça. — Eu sei que ele é meu irmão, mas ele não vale a pena.
— Eu sei —, ela assegurou, fingindo deixar de lado o assunto.
— Espere um minuto —, Driamma interrompeu, parecendo perceber algo. — Você não sabia sobre Ash e Gábor. Então, qual é o segredo?
Sooz olhou para Ash para ver como ela finalmente entendia do que se tratava, e viu como ela ficava pálida sob seu olhar.
Ela assentiu lentamente, confirmando o que Ash já parecia ter entendido. Ela estava feliz por finalmente liberá-lo, e ela estava ansiosa para ouvir toda a história se a garota não desmaiasse primeiro.
Mas naquele momento elas foram interrompidas por Taly, que de repente se aproximou. Ele parecia alarmado.
— Nós temos que ir agora —, ele gritou para elas sobre a música antes de alcançá-las. — Há um código vermelho na Academia.
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