III

— Vai correr tudo bem — disse Leah com um sorriso. As mãos dela estavam apoiadas nas rodas da cadeira dele e os seus rostos estavam muito próximos. — Só precisas de fazer o que sabes. O resto resolve-se sozinho.

Emmett queria acreditar nela, mas os nervos ainda o mantinham cético. A grandiosidade daquele evento desportivo parecia ser mais do que ele conseguia suportar, deixando-o desconfortável.

— Foi para isto que treinaste nos últimos anos. Pensa que não vais fazer nada de novo.

O jovem acabou por retribuir o sorriso dela. Não era a primeira vez que competia numa cadeira de rodas ou, de outro modo, não teria ganho pontos suficientes para estar ali. Só tinha que encarar aquela competição como encarava as outras e o que tivesse de acontecer, aconteceria.

Leah sentiu as dúvidas dele a dissiparem e acabou com a distância que os separava, beijando-o. As mãos de Emmett subiram automaticamente para a parte de trás da cabeça dela, segurando-a para que ela não fugisse. Leah tentou afastar-se quando percebeu que ele estava a aprofundar o beijo, ao ponto de parecer que ela era o próprio ar de que ele dependia para sobreviver. Emmett tinha que ir andando para ter tempo de se concentrar antes da sua prova e ela precisava de ir para a bancada.

As mãos dela capturaram as dele, retirando-as do seu pescoço. Emmett percebeu que estava na hora e deixou que a namorada terminasse o beijo com pequenos bate-chapas nos seus lábios. Depois, Leah afastou-se dele e puxou as suas mãos entrelaçadas para a sua boca, depositando um beijo nas costas da mão direita dele.

— Para dar sorte — esclareceu, perdendo-se na floresta que habitava os olhos dele.

Emmett não conseguiu conter a gargalhada. Ele tinha feito o mesmo numa das semanas anteriores, horas antes da competição dela começar.  

Um conjunto de passos pesados aproximou-se e o homem parado ao lado do casal pigarreou, interrompendo a troca de olhares.

— A família manda beijinhos para os dois — disse o homem baixo, apontando para o seu telemóvel antes de o guardar. — Está tudo colado ao ecrãs a mandar boas energias, apesar do fuso horário. Todos acreditam em ti, Em. Boa sorte!

Anthony baixou-se para abraçar o irmão mais novo e Emmett sorriu com o aperto. Anthony tinha sido o único a conseguir fazer coincidir as férias do trabalho com os Jogos. Mas mesmo que ele não tivesse mais nenhum familiar presente na cidade W, Emmett sabia que o resto da família estava em casa, a apoiá-lo pela televisão e a torcer por uma boa prova. E isso era suficiente.

Leah e Anthony despediram-se de Emmett antes de irem para as bancadas do estádio. Ainda faltavam algumas horas para as provas do escalão em que o moreno competia começarem, mas havia tanta coisa para ver, que eles não teriam que esperar no tédio. 

O jovem virou a cadeira no passadiço no extremo da vila olímpica, dirigindo-se para onde o treinador e os colegas o esperavam para uma última reunião de equipa. O nervosismo que o tinha estado a corroer desde que acordara não tinha desaparecido, mas estava muito mais fraco. Saber que todos os que amava estavam a torcer por ele, independentemente da distância, dava-lhe uma enorme confiança e vontade de ganhar.

Quando, naquela noite de quarta-feira, Emmett ligara para Leah a dizer que a sua vida tinha acabado, ele estava longe de saber que aquilo não era verdade. As notícias que o médico lhe tinha dado devastaram-no ao ponto de o fazer pensar que tinha perdido o futuro que lutara por construir. Não ajudava ao seu desespero perceber que o esforço não era capaz de o fazer ultrapassar aquele obstáculo e que mais nenhum dos seus colegas tinha o mesmo problema. 

Depois do diagnóstico, em negação, Emmett forçou-se a treinar. O seu treinador não o impedia de aparecer nos treinos, limitando-se a encorajá-lo a levar as coisas com calma e a fazer pausas frequentes. Eventualmente, o jovem passou a treinar apenas no seu quintal, sozinho ou com a ajuda do irmão mais novo. A vergonha de ser incapaz de se mexer como os outros e de controlar as próprias pernas era demasiado grande, roubando-lhe a coragem de aparecer à frente dos amigos e colegas de equipa.

Os pais, os irmãos e a irmã testemunharam de perto a sua crescente angústia. Escondido no fundo do quintal por horas a fio, Emmett tentava desesperadamente voltar ao que era antes. Mas as cãibras não desapareciam e os pés trocavam-se demasiadas vezes, fazendo-o passar mais tempo na terra do que em pé. Até andar entre divisões era um martírio. Inicialmente, Emmett servia-se de muletas para o ajudar a andar. Porém, os espasmos eram bem visíveis quando ele estava de pé e os seus sapatos assentavam no solo de uma maneira estranha. Então, ele acabou por escolher o auxílio de uma cadeira de rodas para sobreviver ao dia a dia, especialmente em público. Ele preferia que pensassem que tinha perdido as pernas por completo do que vissem o estado em que a estúpida doença o estava a deixar.

Leah aparecia sempre que podia, passando a ser uma figura assídua em casa dos Welsh, apesar da distância a que vivia deles. O seu objetivo era distrair o Emmett, animá-lo, levá-lo a aceitar a doença incurável e apoiá-lo. Por vezes vezes funcionava, bastando a sua presença para iluminar o dia do jovem. Outras, nem por isso. 

Ver o saco ou o equipamento do treino dela, saber de uma competição próxima ou ouvir a sua família perguntar a Leah como ia o badminton era o suficiente para uma onda horrível de inveja, raiva e autocomiseração o assolar. Nesses momentos, sabendo que não havia muito a fazer para reverter a sua mentalidade, Emmett afastava-se de Leah ou pedia para que ela se fosse embora. A sua relação era demasiado preciosa para que ele arriscasse descontar os sentimentos negativos nela por impulso. Ele nem sequer era capaz de a ir ver treinar ou competir. O seu coração desejava-lhe todo o sucesso do mundo e os seus olhos ansiavam poder vê-la jogar outra vez, como tanto amava. Mas o seu estado de espírito transformava esse prazer numa tortura cruel, pelo que ele tomou a liberdade de passar a transmitir o seu apoio à distância, em silêncio.

A negatividade acumulou-se ao ponto de o fazer entrar em depressão. O apoio da sua família foi vital para que Emmett não percorresse um caminho mais negro. Contudo, o que realmente o retirou do buraco onde se tinha enfiado e o puxou para a luz foram as palavras que Leah lhe disse um dia.

Estavam os dois no quintal dele. Emmett tinha largado a cadeira de rodas e corrido desajeitadamente para Leah mal a vira, pedindo-lhe que jogasse com ele.

— Hoje sinto-me bem. Acho que estou a fazer progressos com o meu treino!

Uma onda de dor causada por aquela centelha de esperança ingénua atravessou o seu peito. Mesmo assim, Leah forçou um acenar de cabeça, incapaz de recusar o seu pedido.

Foram os dois para a rede montada entre as árvores sobre o relvado. A partida começou bem, mas depressa a rigidez nas pernas dele levou Leah a diminuir o ritmo do seu jogo, rezando para que ele estivesse demasiado concentrado para reparar. Mas Emmett conhecia o jogo dela quase tão bem como conhecia o seu. A mudança de ritmo irritou-o e, quando uma cãibra súbita o fez tropeçar, Emmett deixou-se cair no chão, praguejando e amaldiçoando tudo e todos. Ele não conseguia perceber porque era o único na família a manifestar paraparesia e porque é que a doença lhe comia as pernas ao ponto de nem sequer conseguir andar direito! A este ponto, mais valia nem as ter. Aliás, o melhor mesmo talvez fosse nem estar vivo, já que o seu propósito de vida lhe tinha fugido por entre os dedos.

— Se não podes andar, voa — dissera ela de repente, agachando-se ao lado dele.

Sentado, ele encarou-a com angústia.

— Não cites frases aleatórias de filmes anónimos só porque sim — cuspiu com amargura.

— Se não puderes voar, corre — continuou ela, ignorando o incómodo causado pelo comentário. — Se não puderes correr, rasteja. Mas mexe-te. Avança. Ainda tens a tua consciência intacta e ainda tens controlo da maior parte do teu corpo. Não estás em estado vegetativo nem tens nenhuma doença terminal com os dias contados, por isso não ajas como se fosse o fim do teu mundo. 

Ela estendeu as suas mãos, agarrando aquelas que fugiam do seu toque.

— Vai ser difícil seguir em frente? Vai. Vão haver desafios no teu caminho? Claro que sim. Mas só porque um capítulo da tua vida acabou não quer dizer que a história tenha chegado ao fim. Por isso, para de agir como se já não tivesses outra opção que não morrer. — Eles encararam-se por uns segundos antes dela acrescentar: — Porque eu vou ter a certeza de deixar de te amar se o fizeres.

Mal aquelas palavras lhe saíram da boca, Leah corou e desviou o olhar, erguendo a mão para afastar as gotas de água instaladas nos cantos dos olhos. Emmett ficou em silêncio, absorvendo o discurso. As lágrimas acabaram por transbordar, humedecendo-lhe os olhos e molhando a pele das bochechas, mas ele não se importou.

— Sempre positiva e decidida — disse ele, quase uma eternidade depois. — Essa é uma das razões pelas quais te amo.

A jovem voltou-se para ele, surpreendida com a reciprocidade dos seus sentimentos. Emmett cedeu ao impulso repentino e depositou um beijo casto nos lábios dela antes de se afastar. Não tinha estabilidade emocional suficiente para que toda a paixão que sentia aflorasse e subjugasse tudo o resto. Teriam tempo depois.

Leah sentou-se atrás dele e abraçou-o para o embalar. Emmett fechou os olhos, deixando as lágrimas correr e os pensamentos repetirem as palavras dela. Havia razão naquelas palavras. O badminton poderia já não ser uma opção, mas havia mais coisas boas na sua vida. A Leah era uma delas.

— Sabes uma coisa?  — murmurou ela. Emmett manteve o silêncio, incapaz de antecipar que as próximas palavras da mulher que o embalava e consolava lhe mudariam a vida, outra vez. — Existe mais de uma maneira de jogar badminton.

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