39 - Tempo esgotado

Dizem que a morte é um presente, uma agonia, um grito de desespero, um suspiro de alívio, uma sentença, um símbolo e um ponto final.  Para mim, é uma punição. 

Uma forma egoísta e pretensiosa de mostrar poder e impor medo. A mensagem de um covarde.

O tique taque irritante do relógio não para de esfregar na minha cara como estou ficando sem tempo, minha mente repete varias e varias vezes que é minha culpa e a parte mais egoísta do meu cérebro culpa a garota com o mesmo rosto que eu sentada, completamente aflita, á minha frente.  Me sinto ainda pior por pensar algo deste tipo, e mesmo assim minha mente não para de girar e girar atirando teorias conspiratórias e autodestrutivas á minha consciência, já fragilizada. 

As paredes brancas do hospital servem apenas como uma enorme tela vazia se enchendo com minhas inseguranças e medos capturando com gosto toda minha confusão interna. É quase como se zombasse do meu sofrimento, do sofrimento que eu mesma me submeti.

Encaro Jake á minha frente com um olhar preocupado e magoado, depois de tudo que aconteceu me surpreende que ele esteja aqui. Quero ir até ele e dizer que tudo que eu disse foi uma besteira sem igual, mas não posso fazer isso, não depois de tudo que aconteceu. Mordo o lado inferior da bochecha e faço uma careta pela dor no meu rosto. Volto a ficar irritada lembrando de como tudo começou, lembrando e remoendo o que eu poderia ter feito para impedir. 

Uma semana antes.

Acordo com dores quase insuportáveis do rosto e na cabeça, pisco tentando me localizar e suspiro aliviada ao perceber que não estou no hospital. Minha garganta esta seca e vejo um copo de agua na minha mesa de cabeceira, estou no meu quarto, segura ao que parece, faço um esforço para me levantar e solto um gemido de dor quando sinto a pontada nas minhas costelas e cabeça. 

— Ei! Você acordou! — Nina aparece no meu campo de visão

Seus olhos estão marejados e vermelhos, ela tem uma expressão cansada e preocupada e seus cabelos loiros estão evidentes em uma bagunça completa. 

— Oi... — falo com a voz rouca 

— Não fala nada, precisa descansar. — ela ajeita os travesseiros causando mais uma onda de dor — Desculpa — murmura culpada — Quer um pouco de agua?

Assinto minimamente e ela leva o copo com um canudo que eu não tinha visto aos meus lábios, bebo tudo que consigo me sentindo um pouco melhor. 

— Roubei morfina pra você, vou buscar. — ela me encara por mais alguns segundos e sai 

Respiro fundo três vezes antes de me levantar novamente, consigo me sentar segurando um grito de dor e vejo King dormindo nos  meus pés, sorrio aliviada por tê-lo ali. Como se sentisse minha atenção ele acorda e balança o rabinho ao me ver acordada. 

— Oi meu garotão — sussurro tentando sorrir mais sinto que sai como uma careta 

Ele se aproxima lentamente e lambe minha mão com cuidado, sinto uma lagrima escorrer pelo meu rosto e abro os braços chamando-o para mim quando começo a chorar. 

A porta do meu quarto é aberta quase que imediatamente com um Rubens muito preocupado e uma Nina ainda mais. 

— O que aconteceu? Ele machucou você? King sai já daí! — minha irmã diz tudo rápido demais 

Meu cachorro choraminga e continua em meus braços. 

— Esse cachorro é impossível! Ele não saiu do seu lado nem um minuto das últimas horas! — Nina revira os olhos e se senta na cadeira ao lado da minha cama 

— Ele quase mordeu sua irmã enquanto ela cuidava de você. — Rubens murmura ainda na porta, do lado de fora 

Sinto que eles estão tentando não perguntar o que aconteceu com meu rosto, ou porque estou chora, mais só consigo abraçar king agora e me sentir reconfortada com seu pelo ralo preto e branco. 

— Ursinha... — minha irmã me chama docemente — Quer falar o que aconteceu? 

Não respondo, eu não quero falar sobre nada, só quero sumir em mim mesma e nunca mais precisar estar com ninguém. 

— Deveríamos levá-la ao médico — escuto a voz preocupada de Rubens 

Nina bufa como se aquilo já tivesse sido discutido milhares de vezes e ela não aguentasse mais o assunto. 

— Não vamos levá-la a lugar algum até eu saber o que aconteceu, nenhum lugar é seguro — ela sussurra a última parte 

— Nina, ela esta em estado de choque! Cheia de machucados e não para de chorar! — Rubens se exalta

Fecho os olhos e enfio a cabeça entre as orelhas macias de King que permanece quietinho no meu colo. 

— Ela vai ficar bem, já passamos por coisa muito pior! — minha irmã retruca 

— Deveríamos avisar Jake então, ele não para de ligar e estou vendo a hora de bater aqui na nossa porta!  — muda o rumo da conversa 

— Ele não pode passar pela portaria e também não precisa saber de nada disso. — minha irmã segue irredutível 

— Ele é namorado dela! —— Rubens parece transtornado 

— E eu sou a irmã! — ela parece se levantar — Sou a única família dela e eu decido o que é bom para ela ou não! — a voz firme e afiada me faz lembrar a minha quando abandonei Luke e Thomas no corredor 

De repente uma luz se acende no meu cérebro e levanto a cabeça um pouco rápido demais provocando outra onda de dor, trinco os dentes e me forço a prestar atenção na minha irmã. 

— Onde Thomas está? — pergunto com a voz mais fraca do que planejei  

Nina e Rubens me encaram um pouco espantados e minha irmã volta a se sentar ao meu lado. 

— Está na porta, ele te achou e te trouxe pra mim — conta me olhando nos olhos — Ele não saiu daquele corredor durante o dia inteiro que dormiu. 

Pisco levemente surpresa, não achei que ele se importaria em me ajudar depois de tudo que eu disse para ele. 

— Kendra, pode nos contar o que aconteceu? — Rubens pergunta cautelosos e recebe um olhar irritado de Nina logo em seguida 

— Se não se importa, gostaria de falar só com a minha irmã. — murmuro envergonhada 

Ele pisca um pouco confuso  mais assente e sai do quarto fechando a porta logo em seguida. Deixo que King se livre de mim e ele apenas se afasta e deita nos meus pés , olho para Nina limpando as lágrimas e começo a contar tudo que aconteceu. 

Três dias antes. 

Me sento no sofá com um pote de lenços na mão e enxugo as lagrimas tirando toda a maquiagem pesada que usei para esconder meus ferimentos no rosto. 

— O que foi que aconteceu? — Nina arregala os olhos assim que me vê na sala 

— Eu terminei com ele. — conto voltando a chorar 

Minha irmã suspira pesadamente e se senta ao meu lado, ela passa um braço ao redor dos meus ombros e choro ainda mais enquanto e ela me consola. 

Foi horrível, eu tive que magoa-lo logo depois de ele dizer que estava apaixonado por mim. Sou uma pessoas horrível, mesmo depois de ter sido alertada fui teimosa e impulsiva, quis ser feliz por apenas um momento e tornei tudo ainda pior. Mereço essa dor, mereço não ter essa felicidade, pois todos que se aproximam de mim acabam se machucando. 

Foi assim com Daniel, com Henry e agora com Jake, talvez seja melhor desistir dessa coisa de amor, eu não preciso de nenhum amor a não ser o da minha irmã e com base nos últimos acontecimentos até isso estou sujeita a perder. 

Um dia antes.  

Ignoro mais uma mensagem de aviso do meu pai, não vou ficar me estressando na véspera do natal, não depois de tudo que passei essa semana. 

Abro um sorriso contido para Thomy que esta de avental rosa na cozinha preparando o peru, com minha irmã a tira colo o enchendo de perguntas, Rubens esta calado ao meu lado apenas observando tudo. 

— Não vai mais falar comigo? — pergunto baixinho sem desviar o olhar da cozinha 

Estamos sentados no balcão longe o suficiente para uma conversa contida. 

— Não sei do que esta falando. — Rubens responde igualmente baixo 

Solto um suspiro frustrado, ele não fala comigo direito desde a briga que tive com Luke e não quis contar a ele. 

— Quando tentei te contar coisas me expulsou do seu apartamento, fiquei com medo que fizesse algo parecido. — minto deliberadamente 

— Sabe que a situação foi completamente diferente! — rebate ríspido — Você foi trazida para casa totalmente ensanguentada e desmaiada, não sabia o que tinha acontecido, sua irmã não quis levá-la ao medico, achei que você morreria e quando acordou e começou a chorar eu me senti ainda mais impotente. — engulo a seco enquanto ele me encara seriamente — Achei que você morreria e mesmo depois de horas de preocupação nem sequer me deixou saber o que tinha acontecido! 

— Sei que esta magoado, mais aquilo não envolvia você. — murmuro sentindo minhas bochechas esquentarem 

— Magoado? —  ele estreita os olhos — Não, Kendra, eu estou furioso! Considero você como família e me descartou em um momento super importante fazendo com que eu me sentisse um estranho. 

Me encolho diante das suas palavras e volto a ficar em silêncio, não sei como respondê-lo sem magoa-lo ainda mais e já estou exausta de fazer as pessoas me odiarem. 

— Vamos precisar de bebidas! — Nina diz abrindo a geladeira 

— Pode deixar que eu compro. — Rubens se prontifica 

— Não, eu vou! — Thomas interfere 

— Mais você esta fazendo o jantar. — Nina franze o cenho 

— É só que eu preciso pegar uma coisa em um lugar, então fiquem de olho no peru e não deixem que queime! — ele sorri e me da um beijo na bochecha ao passar por mim — Não faça nada de estupido até eu voltar. — diz em um tom de repreensão brincalhona mais vejo a preocupação genuína em seus olhos 

— Vou ficar quietinha dentro do apartamento. — digo seriamente 

Ele me analisa por mais alguns minutos e me da um beijo na testa antes de finalmente sair pela porta, sinto um arrepio na espinha e me levanto de supetão.

— Thomy! — o chamo aflita

Ele se vira me encarando confuso, corro até ele e o abraço fortemente.

— Cuidado. — digo me afastando dele

— Não sou eu quem sou atacado em corredores. — ele tenta brincar

Não funciona, por algum motivo uma angústia muito forte aperta meu peito, a senti quando soube de Daniel.

— Por favor volte pra casa. — peço baixinho

— Sempre. — ele me assegura seriamente.

Engulo a seco e assunto minimamente, o puxo para mais um abraço e por mais estranho que pareça parece uma despedida.

— Eu amo você. — murmuro sentindo a necessidade de falar

— Ei, tá tudo bem?— pergunta erguendo meu rosto com as pontas dos dedos — Quer que eu fique?— ele franze o cenho

Penso em aceitar, penso em pedir para que ele não saia deste apartamento hoje, mas isso é ridículo precisamos das bebidas, é natal não tem como nada de ruim acontecer hoje.

— Nina vai ficar irritada. —nego com a cabeça

Ele olha para um ponto acima do meu ombro e abre um sorriso bonito.

— Você está certa. — concorda com um suspiro, abaixo a cabeça desviando o olhar dos seus olhos intensos — Ei — ele me chama erguendo meu queixo novamente — Eu também amo você. — diz olhando em meus olhos

Abro um sorriso e assinto, ele sorri de volta e se vai, imediatamente desejo ter ido com ele, ficar aqui com Rubens e Nina pode ser um pouco sufocante. 

— Vou ler um pouco no meu quarto — anuncio fechando a porta e me enfiando no meu quarto desarrumado com king dormindo bem feliz na minha cama.

Deito na cama com um exemplar de Iluminado e meu celular apita, olho a mensagem de Jake e me recuso a abrir assim como fiz com todas as outras que ele me mandou desde o término. 

Depois que Luke contou sobre a morte de Daniel eu fui procurar meu pai, confronta-lo, só que como o grande covarde que ele é  já tinha voltado para França. Ele mandou que matassem Daniel por estar comigo, por saber que me atingiria. Para mandar uma mensagem.

Sei bem disso porque faço a mesma coisa, quando quero que as pessoas se afastem ou fiquem menos problemáticas eu as atinjo onde mais dói ou mostro a elas que comigo pode ser ruim e sem mim é ainda pior. Foi ele quem me ensinou isso, me ensinou a usar a fraqueza das pessoas para controla-las e que melhor forma de se manter o controle do que matar alguém importante?  O problema do meu pai sempre foi subestimar demais minhas emoções, pode ter doido perder Daniel, mas entre ele e eu sempre escolherei a mim mesma, outra lição importante que desta vez aprendi no orfanato em que cresci.

É engraçado como o ser humano de apoia nós sentimentos para dar um sentindo a sua porção de tempo precioso e como se desfaz deles assim que se tornam inconvenientes.

Depois do que aconteceu não me restaram dúvidas, ainda não sei o que Nina pretende, mas eu já resolvi tudo aqui e irei embora no fim deste ano.

Meu pai quer que eu e Nina façamos mais um trabalho, parece que ele precisa de informações importantes de uma facção criminosa e devemos roubar um colar de rubi que contem um microchip com todas essas informações valiosas, sem Daniel Luke ficou instável e com o plano da minha morte não tendo funcionado eu seguro Nina para que não aceite o acordo, isso esta deixando-o louco e não quero esperar pela próxima retaliação.   

— Kendra... — sinto alguém me balançando — Kendra! — chama com mais insistência — Acorda! — resmungo e viro a cara para o outro lado — Kendra é o Thomas, ele ainda não voltou. 

A menção do nome dele faz com que eu desperte. 

— O que aconteceu? — pergunto ainda zonza de sono 

Eu nem percebi que tinha dormido, meu livro esta fechado do outro lado da cama, meu celular na mesinha de cabeceira e King no meu travesseiro meu encarando confuso. 

— Fazem mais de duas horas que ele saiu para comprar as bebidas e até agora não voltou. 

Nina me encara preocupada e sei o que esta passando pela sua cabeça, tantas coisas dando errado ultimamente e depois da morte de Dan e das rejeições meu pai pode ter arrumado uma forma diferente de me traumatizar. 

— Não, ele esta na França — nego me levantando da cama 

— Isso até onde sabemos e normalmente sabemos o que ele quer que saibamos. — ela murmura apertando as mãos em um tique nervoso 

— O Thomy faz isso as vezes, ele some quando as coisas ficam demais. — explico ajeitando o óculos invisível 

Bufo irritada por ela ter aflorado meu tique nervoso. 

— Ele resolveu fugir no natal? — arregala os olhos — Com as comidas pela metade? — aperta as mãos com mais força 

Nina tem um leve problema com crise de ansiedade e quando ela fica nervosa assim as coisas saem completamente fora do controle. 

 — Nina! — seguro em seus ombros forçando-a a olhar em meus olhos — Esta tudo bem, vamos tentar ligar para ele e depois vamos procura-lo. 

Minha irmã gêmea olha no fundo do meus olhos e sei que não existem palavras de conforto entre nós, pois como o espelho uma da outra e por mais que tentamos nossas emoções sempre serão reconhecíveis para nós. Ela mordo o lábio inferir contendo o choro e me abraça com força, aperto seu corpo contra o meu e ambas buscamos apoio uma na outra. 

Agora 

Quando meu telefone tocou naquela noite tudo ficou em câmera lenta, tudo parecia distante demais. Até a voz do policial que informava o acidente de carro de Thomy e sua estadia no hospital mais próximo. 

Lennox Hospital Memory. 

E agora aqui estou eu, sentada em uma cadeira dura de uma sala de espera lotada e vazia ao mesmo tempo tentando não surtar enquanto um policial idiota fala que Thomy bateu o carro por estar dirigindo alcoolizado.

— Senhorita... — um dos oficiais me chama gentilmente 

Encaro o homem a minha frente com o cabelo penteado com gel para trás, a pele pálida e olhos escuros  profundos demais para apenas algumas horas de serviço, ele esta drogado ou quase perto disso, abre um sorriso culpado para mim e vejo os dentes brancos e tortos destacando em meio sua barba pesada e mal aparada. 

Ele não deveria ser um agente da lei, muito menos culpar jovens por sofrerem acidentes e sobre drogas e bebidas quando está em um estado deplorável.

Sinto falta da minha arma as vezes, da facilidade que eu tinha em encerrar esses detalhes insignificantes, que significavam muito depois que eram apagados.

— Achamos isso no carro da vitima, esta com seu nome. — ele me entrega uma caixa vermelha e verde de presente amassada 

Pego com as mãos tremulas e murmuro um agradecimento mínimo, ele assente e se retira me deixando sozinha com aquela coisa monstruosa em meu colo, fico encarando a caixa sem saber o que fazer com aquilo até que sinto alguém se sentando ao meu lado. 

— O que é isso? — Nina pergunta 

— Acharam no carro. — murmuro sem desviar o olhar daquilo como se fosse sumir a qualquer instante 

— Você não vai abrir? 

Mordo o lábio inferior sem saber o que responder, ainda não chorei, depois que avisaram do acidente, que falaram que o estado era grave, que o culparam e disseram que ele estava bêbado por achar as bebidas que ele tinha ido buscar para a droga do nosso natal, nem quando passei vinte horas inteiras sentada nesta poltrona esperando noticias dos médicos que se recusam a olhar em nossas caras. 

Nina chorou, ela quase teve que ser sedada, Rubens andou de um lado pra o outro com os nervos a flor da pele, Jake chegou cinco horas atrás com Michel que foi para algum lugar. Respondemos perguntas para a policia e fizemos perguntas para os médicos, não adiantou de nada. 

Eles ligaram para a família dele duas horas depois que chegamos aqui, ao que parece sua mãe esta vindo de Los Angeles, não sei como eles deram a noticia mais eu espero que não tenha sido do mesmo jeito que me informara, porque aquilo foi horrível. 

— Quando ele acordar ele pode me dar — respondo minha irmã que seguiu parada ao meu lado 

— Sabe que ele pode não acordada, né? — pergunta cautelosa 

— Vou esperar e torcer para que sim então. — dou de ombros 

Nina suspira e volta para perto de seu namorado, Jake ainda não parou de me encarar e tenho vontade de gritar para que ele pare, para que me deixe em paz e que me esqueça, mas lembro que já fui cruel o suficiente então apenas abaixo a cabeça. 

Passaram-se mais cinco horas, minha bunda esta dormente, Nina dormiu encostada no ombro de Rubens e ele também dormiu se apoiando na parede, Jake saiu para buscar um café e eu ainda não me mexi, nem mesmo a caixa vermelha e verde no meu colo. Todos meus músculos reclamam pela falta de movimento, comida ou agua, mas não consigo me mexer não por agora.  

Jake volta e me encara por alguns segundos antes de voltar a se sentar do lado oposto da sala, encaro de volta sem saber o que fazer ou falar, ele abre a boca e então ouvimos um barulho de passos se aproximando, franzo o cenho para a porta e uma mulher ruiva com os olhos cheios de lagrimas entra pela porta. 

Ela é alta, tem os mesmos olhos verdes intensos de Thomas, carrega uma menininha nos braços e uma outra entra atrás dela com uma expressão igualmente preocupada. 

— Ele acordou? Tiveram alguma noticia? — a mulher pergunta aflita 

Nina e Rubens despertam imediatamente e Jake se levanta de sua cadeira para falar com a mulher que julgo ser a mãe de Thomas, não presto muita atenção na conversa já que a garota ao lado me encara fixamente. Seu cabelo liso e ruivo esta solto batendo pouco a baixo de seus ombros, seus olhos verdes estão alertas suas mãos fechadas firmemente ao lado do seu corpo magro, ela usa uma calça leggin preta e uma blusa de frio azul fina demais para não estar com frio, ela pisca quando a mão fala com ela e pega a pequenina do colo enquanto a mãe tenta segurar o choro. Ela volta a me encarar e quando Jake tenta fazer com que se sente ao seu lado ela se desvencilha dele e vem em minha direção. 

— O que é isso no seu colo? — pergunta se sentando ao meu lado colocando a bebe sentada logo do seu 

— É um presente de natal — respondo baixinho 

— Queria trocar meu pedido, mais acho que o papai Noel já preparou o meu — ela suspira 

É engraçado, ela não o tipo de criança que acredita no papai Noel. 

— E o que pediria?  pergunto curiosa

— Pediria que esse acidente não tivesse acontecido. — responde prontamente 

— Não acho que o Papai Noel possa mexer com o tempo. — franzo o cenho 

— Se ele não existe, posso pelo menos fingir que sim. — ela da de ombros 

Abro um pequeno sorriso por acertar sobre sua descrença no bom velhinho. 

— Qual seu nome?

— Eu sou Aline — ela endireita a coluna — E esta é minha irmã Charlie — aponta para a bebe 

— Prazer, Aline e Charlie eu sou a... 

— Aline! — sua mãe chama quando o medico finalmente aparece.  

Todos nos levantamos e nos agrupamos perto da porta onde o medico responsável espera para dar  noticias.

Morte cerebral. 

Foi o que o medico disse depois de vinte e seis horas inteiras de espera, doação de órgãos e mais um monte de besteiras enquanto a mãe de Thomas caia no chão gritando e chorando, enquanto suas duas filhas eram levadas para um quarto junto com a sua mãe sedada e não pude fazer nada para ajudar, também não quis ajudar, queria sofrer meu luto.

 É egoísta e patético pensar que minha dor possa se equiparar a delas, que possa chegar perto da dor avassaladora que inundou nos olhos daquela garotinha que se parecia tanto com ele, a garotinha que foi a razão para que ele lutasse para ser forte, a garotinha que ele quis levar para lua e que arrumou formas diferentes para isso. É ilusão pensar que meu amor e minha dor se comparam, mas ainda assim eu sofro, ainda sim sinto como se meu coração fosse arrancado do peito e esmagado bem na minha frente. 

Ele nem pode se despedir e por conta disso sua família jamais saberá o quanto ele lutou para ser a melhor versão de si mesmo.

E é tudo minha culpa.  

Eles não me deixaram vê-lo de imediato, mais Nina sumiu pelo hospital e uma hora depois voltou dizendo que eu poderia entrar no quarto. Não sei o que ela fez e nem quero saber, agora só existe eu e uma porta branca e sem graça que me impedem de desabar. 

Respiro fundo e entro com a cabeça baixa, conto ate cinco antes de ergue-la e desejar não ter feito isso. 

A pior cena da minha vida,  ele está deitado, imóvel, com tantos fios presos à ele que eu não sei dizer se é normal, a perna direita está com gesso assim como o braço, seu tronco está enfaixado e sua cabeça também. As ataduras cobrem seu lindo cabelo ruivo, mais ainda consigo ver a cor vibrante nas sobrancelhas.

Sinto o ar fugir dos meu pulmões, sinto o frio do hospital congelar minha espinha, sinto o desespero soprar ao meu ouvido e a culpa incendiar minhas veias.

As considerações medicas veem imediatamente na minha cabeça, três paradas cardíacas, duas cirurgias, uma séria concussão, lacerações no coração por vidros do carro que entraram em seu peito, uma perna quebrada e ambos os braços machucados, sem pretensão de melhora. Claro que não existem pretensões, seu cérebro já esta acabado. 

Deixo meus joelhos cederem e não sinto a dor quando eles se chocam com força no chão, não sinto minha irmã se ajoelhar ao meu lado e nem me importo com nada disso. Porque de um jeito muito injusto e simples em uma  noite que deveria ser muito feliz, o dia magico do Natal, enquanto pessoas viviam suas vidas da melhor forma possível e festejavam juntos, Thomas Eliot Fontaine morreu após sofrer um estupido acidente de carro.

O melhor amigo que eu poderia ter tido, a pessoa que mesmo estando quebrada por dentro ainda sorria e era gentil, a pessoa que sempre teve esperança de que um dia poderia melhorar, de que um dia poderia levar sua irmã para a lua. A pessoa que me salvou, me ouviu, se preocupou comigo e me amou agora não passa de um monte de órgãos que os cirurgiões querem para tentar salvar outras vidas igualmente significantes para alguém. 

Se existe algum Deus, eu não consigo senti-lo agora, se existe alguma força mística neste universo enorme e complexo ela não esta aqui. Não pode estar quando uma dor tão grande me consome, quando uma tragédia inimaginável se torna possível. Não, não existe nada de bom por aqui, não com a minha presença por perto.  Sei que não existe porque Deus jamais se juntaria com o diabo, e eu sou o diabo agora, sou a perdição que amaldiçoou este homem que eu passei a amar, sou a desgraça que o arrastou para um inferno disfarçado de vida, sou o demônio que o arruinou e Deus não ficara do lado de uma criatura tão nojenta e perversa. 

Eu não mereço essa presença misericordiosa na minha vida miserável. 

— Kendra, olha pra mim. — Nina chama com a voz firme

Não sei como ela pode estar assim, são tantas lágrimas que meu suéter vermelho está molhado, são tantas lágrimas que minha visão está embaçada, que meu nariz está entupido e que todo líquido do meu corpo pode estar sendo retido. Eu tinha segurado até o ultimo e agora, agora estou totalmente destruída. 

— Kendra! Se concentre! — ela da um leve tapa no meu rosto. Pisco focando minha atenção no rosto idêntico ao meu e vejo o alívio por essa proeza — Recebi o laudo da polícia, os freios... — Nina engole a seco — os freios  foram cortados e ele não conseguia controlar o carro.

É claro que foram cortados, eu sei quem cortou e sei por que cortou. Sei porque estava com tanto ódio e culpa, sei que fomos as responsáveis por isso. 

— Vamos até a polícia, vamos desmascara-los, vamos contar tudo que sabemos. — digo com a voz rouca

Estou triste, devastada e destruída, exatamente como ele queria, mas acima da tristeza estou com raiva e poderia matar meu  pai e todos envolvidos com ele com minhas próprias mãos apenas me alimentando desta raiva, poderia destruí-los e me destruir no processo. Não importaria, pois eu morreria em paz sabendo que ele seria vingado.

— O que? Você está louca? — Nina pergunta com o rosto pálido

— Seremos testemunhas, contaremos tudo e acabaremos com todo o império dele — abro um sorrio frio

Thomas me deu essa ideia, Henry cogitou isso, eu só estava com medo demais para fazer, mais agora, o que eu tenho a perder? 

— Não! É claro que não! Poderíamos ser presas! — ela nega desesperada

— Podemos fazer um acordo, quando tudo aconteceu éramos menores de idade, não tem o que dar errado. — rebato com a ideia se formando na minha cabeça

O último roubo não precisa ser informado, Daniel morreu, a única outra testemunha viva e Luke. Posso dar um jeito nele também. Ninguém jamais saberia.

— Você não vai fazer nada disso — ela segura meu rosto com força — Sabe por quê ninguém derrubou nosso pai até hoje? Porque todos que tentaram estão mortos — sibila olhando em meus olhos — Vamos dizer que ele bebeu muito, ele estava triste há muito tempo e não tinha mais esperanças, então ao beber ele tentou espairecer a mente e foi um acidente horrível. Uma lamentável perda e uma terrível decisão.

Ao terminar ela solta meu rosto e arregalo os olhos conforme a fixa cai, conforme eu percebo o que ela quer fazer. A garota que estava chorando algumas horas atrás, que estava tão desesperada que passou mal, a garota falsa que minha irmã deixou que as pessoas vissem. 

— Você quer que pensem que ele se matou? — pergunto horrorizada

Penso nos seus olhos, olhos idênticos aos de Aline, me encarando, no grito de dor da sua mãe, no sorriso inocente de Charlie. Não posso deixar que aquelas pessoas pensem que ele fez ou faria algo desta magnitude, mesmo sabendo que ele já considerou. 

— Não existem investigações para suicídios — murmura sem me olhar nos olhos

— Você não pode fazer isso com ele! Com a memória dele, tudo que Thomas queria era se curar para estar ao lado da irmã! Não pode fazer a família dele pensar que ele escolheu aquilo quando na verdade ele foi forçado! — grito completamente horrorizada

— Tem muito na história do Thomas que você não sabe — diz pesarosa — A família sofrerá mais com um assassinato sem solução. 

— Eles merecem a verdade! Thomas merece isso! — rebato com os olhos cheios de lágrimas

— Eles merecem paz, ainda mais com toda aura sombria daquela família. Eles já tem muito com que se preocupar. — suspira se levantando

— Não consigo entender como está tão fria em relação a isso. — nego com a cabeça

Sei que fomos treinadas para reagir bem em situações de extrema pressão, mais ela conhecia Thomas, era amiga dele, cozinhava com ele, como ela pode nem mesmo se importar com qual memória ele quer deixar para trás. 

— Isso não importa agora Kendra, nada mais importa porque ele já está morto! — ela retruca e começa a andar de um lado para o outro, visivelmente nervosa.

— A morte pode ser um fim pra quem vai, mais é um tormento pra quem fica! — limpo, sem sucesso, as lágrimas que continuam escorrendo — Thomy era meu amigo e vou honrar a memória dele, quer você queria ou não! — aponto decidida

— Você não está entendendo, não está me entendendo.  — ela nega com a cabeça definitivamente perdendo toda sua calma controlada

— Então explica! Explica pra mim por qual motivo você quer devastar a memória de alguém que daria ávida por nós? — incito irritada

— Eu não.quero devastar nada! — ela limpa uma lágrima teimosa que escorre pelo seu rosto. — Só estou tentando nos proteger!

— Está parecendo uma covarde pra mim. — rebato duramente

Minha irmã me encara chocada e magoada, não me sinto nem um pouco mal de provocar isso nela.

— Para! Para de falar esse tipo de coisa. — ela implora

— Eu não estou entendendo Nina, não estou entendendo o porquê está tão firme nessa idéia absurda! — estreito os olhos

— Eu estou grávida! — ela confessa em um murmuro  — Estou grávida e terei que fugir do meu pai adotivo psicopata! O amor da minha vida jamais saberá da existência desta criança por que tem a possibilidade de ela não sobreviver no meio deste fogo cruzado. — ela limpa as lágrimas — Vou fazer de tudo para proteger minha filha e proteger você, porque somos família e estaremos juntas, até o fim! — afirma sem me encarar nos olhos 

Pisco completamente surpresa com sua revelação, pisco e pisco sem conseguir acreditar em tudo isso, todos essas calma fria e o desespero pungente. Tudo isso porque ela quer proteger alguém na sua barriga, quer fazer algo que nossos pais não fizeram, quer essa criança e quer a qualquer custo.

E se ela quer, eu também quero.

Me levanto do chão limpando as lágrimas e me forço a não derramar mais nenhuma, ando em silêncio até Thomas e dou um beijo em sua testa fria. 

— Eu amo voce e não importa quanto tempo passe, vou vinga sua morte. — sussurro em seu ouvido

Fecho os olhos por um segundo e fico ali com a testa colada na bochecha dele, o tempo de chorar já acabou, as lamentações e pesadelos podem ficar para o futuro. Por mais que eu me sinto horrível por ter que fazer isso e de uma nova vida que estamos tratando, uma nova vida sangue do meu sangue. Não vou deixar que nada assim aconteça de novo. 

Tomo fôlego e me viro para minha irmã. 

— Vamos partir depois de amanhã, eu planejei ir logo após os fogos do fim do ano mais não há motivos para esperar tanto. 

Ela assente sem retrucar, então abro o presente que teria ganhado de Thomas e vejo um  livro de receitas de doces, abro a capa dura e leio a dedicatória. 

Para que se lembre de mim e do sabor da nossa amizade onde quer que esteja. Amo você, feliz Natal
           Com amor, Thomy.  

A receita feita é de algo com muito chocolate, uma coisa que nos uniu e que agora será um símbolo da nossa curta e verdadeira amizade. Me permitindo uma última lágrima fecho o livro e o aperto comigo, nada mais de choro, nada mais de culpa, nada mais de amor. É hora de voltar a ser aquela que eu me esforcei tanto para esquecer, é hora de  me desligar completamente de qualquer coisa ou pessoa que não seja minha família, e então, infelizmente, é o fim. 

Um pouco de depressão? Temos! Choro ao escrever o capítulo? Temos também. Nem vou esperar que vocês tenham gostado desse pq né kkkkkkk mais enfim, bom fim de semana para todos

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