Prólogo

"E assim, o casamento fica definido para daqui três meses", meu pai falou com o charuto apoiado no canto da boca, com a mão estendida para o Sr. Stewart, que a apertou com o sorriso tão grande quanto o dele. Carl se levanta e me dá um abraço apertado. Eu acho que o clima virou de repente, porque todo o frio que eu sentia se transformou em um calor tão insuportável que eu mal conseguia ficar dentro daquele escritório. Inclusive me achei parte de um negócio, não só pelo local em que o acordo acontecera: o meu casamento com Carl Stewart era um negócio, onde os beneficiados seriam apenas os nossos pais.

Não, eu não estou dizendo que não gosto dele. Nós somos namorados há cinco anos. Nos conhecemos a vida toda, mas foi somente quando completei quinze anos que o destino nos uniu. Por destino, pode se dizer nossos pais. No começo eu era totalmente apaixonada por ele e ele por mim, eu costumava contar os minutos para nossas voltas na praça em frente à igreja. Ele escrevia pelas árvores "Carl e Lia" e nós nos aproveitávamos da distração de nossos irmãos mais novos para alguns beijos escondidos.

Mas, assim como o solado de um sapato, relações se desgastam. E foi isso que nos aconteceu. Carl começou a trabalhar com seu pai na fábrica de sapatos - talvez por isso a minha comparação - e a frequência de nossos encontros caiu drasticamente. As poucas vezes que nos vemos, ficamos sem assuntos e apenas andamos pela praça em silêncio. Nem mesmo os beijos que tanto desejava eu faço questão. Bom, eu não tenho mais quinze anos, então as borboletas que antes habitavam meu estômago devem ter morrido lá dentro.

Passei tanto tempo em meus devaneios que mal percebi quando os dois cavalheiros se despediram de mim e de meu pai. Subo para o meu quarto na vã tentativa de dormir, mas Josephine, minha irmã mais nova, não pretendia deixar.

- Você vai se casa-ar! - cantarolou, rodando seu vestido.

- É... Pelo jeito, sim - respondi ao me sentar em frente à penteadeira e soltar meus cabelos.

- Por Deus, Lia, se anime! O Carl é um baita de um bom partido!

- Mas você não acha... cedo?

- Ah... - suspirou - Vocês estão juntos há mil anos! E outra, você já está passando da idade de se casar. Eu queria me casar aos dezoito anos.

- Ano que vem?! Está doida?!

- E por que não?! Só espero encontrar meu príncipe encantado antes que o papai decida por mim... Você ainda teve sorte, vai se casar com quem ama!


"Vou", respondo ao encarar meu reflexo no espelho. Amor é uma palavra forte, então não gosto de desperdiçá-la. Acredito que a única vez em que disse "eu te amo" para Carl foi quando eu tinha quinze anos e todos os sentimentos estavam à flor da pele. Hoje eu... gosto dele. Amor é forte demais para se dizer sem certeza.

Josephine balbuciou algumas palavras desconexas assim como em todas as noites enquanto eu estou aqui, rolando de um lado para o outro. A frase inocente que ela soltou mais cedo parece ter um peso enorme dentro de mim. "Se casar com quem ama"... Eu não posso fazer isso! Não posso! O mesmo calor que me invadiu mais cedo reapareceu. E ele queima, borbulha como um vulcão dentro de mim. Eu preciso de ar. A janela de nosso quarto está emperrada, não conseguiria abri-la sem acordar minha irmã. Corro até o banheiro e abro a janela. Ainda não é o suficiente, eu estou suando, minha nuca já está molhada.

Passo as pernas pela janela e olho para baixo. A queda não seria grande, ainda mais se eu conseguisse escorregar até o beiral da varanda. Só não poderia fazer barulho. Consigo chegar na ponta do telhado sem me machucar, mas ainda não tenho certeza do que estou fazendo. Devo estar enlouquecendo. Fecho os olhos e sem pensar muito, salto até a grama. O tombo no gramado úmido não me permite reclamar de dor, ainda mais por estar fugindo em plena madrugada. Sequer sei que horas são. Espero não encontrar ninguém zanzando por aí, afinal, não pega bem uma jovem de família caminhar vestindo apenas uma camisola pelas ruas. Já bastam os boatos sobre Josephine - que eu sei que não são apenas boatos, e tudo bem para mim, o importante é que ela esteja feliz.

Caminho sem rumo pelas ruas, sentindo a garoa fina gelar minha pele. Mesmo com o tempo frio, o calor dentro de mim parece não cessar. Quando me dou conta, estou parada em frente ao portão de Carl. A luz de seu quarto está acesa, e eu posso ver sua silhueta andando pelo quarto. Oh não! Ele está vindo em direção à cortina! Se me ver aqui em baixo, nos trajes que me encontro, vai me levar na mesma hora para casa e, Deus, não gosto nem de pensar no rebuliço que vai ser. Corro sem direção, meus chinelos de pano já não me ajudam, então os tiro e sinto o chão irregular com meus pés descalços. Juro que se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar.

Quando dou por mim, estou entre as árvores do bosque. Oh não, desde criança ouço dizer que este bosque é assombrado por um assustador demônio. Eu e meus irmãos sempre tivemos medo daqui, em nossas mentes infantis, várias criaturas medonhas o cercavam. O John, meu irmão mais velho, disse que já viu uma árvore agarrar com seus galhos uma criança que foi atrás de sua bola.

Mas... Agora que eu estou aqui, tudo parece tão belo. O chão parece ser preenchido com pequenas pedras brilhantes que se destacam com a luz do luar que passa suavemente por entre as árvores. Bom, também não há nenhuma criatura medonha, apenas o cricrilar dos grilos e a chuva nas folhas dão som ao lugar. Eu estou me sentindo estranhamente em paz, como se todo o ardor tivesse passado e me restasse apenas uma imensa tranquilidade. Adentro ainda mais o tal bosque amaldiçoado, mas o barulho no topo de uma árvore me dá um frio na espinha e me desperta a sensação de perigo. Eu não deveria estar aqui!

Corro sem rumo, mas sinto que algo corre atrás de mim. Minha vontade é olhar para trás, mas tenho medo do que posso ver. A chuva aumentou e as gotas começam a atrapalhar minha visão, que já não estava tão boa naquele lugar tão escuro. "Pai nosso que estais no céu...", começo a rezar baixinho, ofegante de tanto correr. Tropeço na raiz de uma árvore que invade a trilha e caio sobre as pequenas pedras. "Que bela maneira de se morrer, Lia, de camisola!", me repreendo antes de tentar levantar. Apoio minhas mãos machucadas no solo e meus braços fraquejam. Na mesma hora, sinto uma mão em meu braço, evitando que meu rosto se bata contra as pedras que forram o chão. Evito olhar, mas minha curiosidade fala mais alto.

Levanto o olhar pouco a pouco, rezando mentalmente para não ser um demônio. Os pés descalços são como os de uma pessoa normal. As calças são um pouco mais justas do que os homens costumam usar, também estão um tanto quanto surradas. Mas não, ele não é um andarilho, disso tenho certeza. Olho para a mão que segura meu braço e mangas longas e largas seguem até seu punho. Fecho os olhos, como se mantê-los assim mudasse algo. Levanto a cabeça até ele e os abro de uma vez. Fico sem palavras. É uma pessoa... Uma pessoa normal, eu diria. Exceto pelo fato de duas asas encardidas estarem atrás de si.

"Eu devo ter batido com a cabeça", murmuro sem desviar os olhos daquele... Rapaz? Eu acho que é um rapaz. Ele me observa sem demonstrar nenhuma reação. Suas íris alaranjadas são totalmente inexpressivas e sua pele pálida me faz questionar se ele está vivo. Uma cicatriz atravessa seu olho esquerdo e vai até parte da bochecha. Eu tento não encarar aquilo por muito tempo, mas é impossível. Seus olhos são inexpressivos e hipnotizantes. O rapaz também é dono de um dos cabelos mais escuros que eu já vi. Tão escuros quanto a noite naquele bosque.


- Você está bem? - ele me pergunta, como se não fosse totalmente estranho o fato de estar correndo atrás de mim minutos antes.

- Quem é você?! O que você quer de mim?! - pergunto, apavorada.

- Me desculpe, sou Nathanael. Eu te vi correr para dentro do bosque e queria te avisar para não fazer isso, pois uma tempestade se aproxima e as árvores atraem raios.


Achei que essa informação poderia me deixar mais tranquila, porém não deixou. Não deixou porque tem um rapaz com duas asas enormes parado na minha frente agindo como... bom... como se não houvessem duas asas enormes em suas costas!


- Eu definitivamente bati com a cabeça - levo a mão à testa, procurando por um galo.

- Não, a senhorita não bateu a cabeça, porém as suas mãos e joelhos estão ralados.


Olho minhas mãos por um segundo e sinto o ardor instantaneamente. "Posso?", ele pede, me estendendo a mão. Coloco minha mão sobre a dele um tanto quanto desconfiada e ele a fecha entre as suas. Sinto um leve incômodo, mas noto um desconforto em seu olhar. Minha mão parece pegar fogo, tamanha quentura. Uma luz discreta sai de nossas mãos e ele a solta. "A outra, por favor", pede sem desviar os olhos de mim. Ele repete os movimentos e a mesma luz ressurge. "Pronto", diz ao soltá-la. Não pude deixar de notar que as mãos dele agora possuem meus machucados. Ele aponta para os meus joelhos, e eu sinto meu rosto aquecer ao pensar na possibilidade de um homem tocá-los. Mas eles doem e, curiosamente, este estranho tem o dom da cura. Levanto a barra da minha camisola úmida e ele toca meus dois joelhos, fazendo com que aquelas borboletas mortas do meu estômago revivessem. Rapidamente meus joelhos estão como antes.


- Como você... - começo a perguntar, mas não consigo concluir. Isso é surreal demais para mim.

- Você não me disse seu nome, senhorita - ele ignora totalmente a minha quase pergunta.

- Lia. Lia Bennett - respondo lhe estendendo a mão.

- Olhos doces e tristes... - ele responde sem retribuir o gesto.

- O quê?! Como ousa!

- Este é o significado do seu nome. Olhos doces e tristes. Gostaria de dizer que lhe fazem jus.


Como assim? Como ele ousa me dizer tal coisa se mal me conhece?! Aliás, ele só sabe o meu nome! Me viro para ir embora, mas sequer sei onde estou. O rapaz continua parado, me encarando sem disfarçar.


- Sua mãe não te ensinou que é feio encarar?!

- Eu não tenho mãe.

- Oh... Me desculpe... - encaro o chão, envergonhada.

- Pelo o quê? Você não me ofendeu. Eu não tenho mãe, fui apenas... Criado.

- O que... - pondero antes de continuar - o que você é?

- Bom... Acho que minhas asas me entregam, não?

- Você é um... - mais uma vez, não consigo concluir.

- Um anjo? Sim. Ao menos eu era.

- Mas o que... Como... Você... você não se parece com um anjo - finalmente consigo concluir.

- E a senhorita já conheceu outro anjo para tal comparação?

- Bom, aprendi desde cedo que os anjos são... bem... angelicais.


Pela primeira vez desde que o vi, um sorriso se formou em seu rosto e eu sorrio junto a ele.


- Defina angelical para mim, por favor.

- Bem, talvez crianças. Crianças gordinhas, com bochechas rosadas e olhos azuis como o céu. Com cabelos cacheados e dourados como o ouro.

- De onde você tirou isso? - ele me pergunta após uma gargalhada gostosa de se ouvir.

- Eu... Não sei. Apenas é a imagem que todos temos em nossas mentes desde que somos crianças - dou de ombros - Jamais pensei que um anjo se vestisse de preto dos pés à cabeça e tivesse a sua... - paro de dizer antes que possa constrangê-lo.

- A minha aparência.


Ele conclui por mim e quem acaba constrangida sou eu. A companhia deste rapaz - me desculpe, ainda é estranho chamar alguém de anjo para mim - é agradável, porém várias perguntas assolam minha mente. Por que ele está aqui? Por que suas asas estão tão sujas? Ele está em alguma missão? Ele disse que era um anjo? Não é mais? Por que eu ainda estou aqui conversando com este completo desconhecido, sem vontade de ir embora?


- Por que você simplesmente não voou atrás de mim, ao invés de correr descalço por todas estas pedras? - quebro o silêncio que eu mesma criei.

- Minha asa está quebrada - responde ao se sentar no chão molhado.

- Você curou meus machucados, por que simplesmente não se cura?!

- Meu poder de cura não funciona em mim mesmo... - abre um sorriso entristecido - não mais.


Olho por cima de seu ombro, procurando pelo machucado na asa. Realmente, há algo como se fosse um osso quebrado ao meio, tornando a asa direita um pouco mais baixa que a esquerda. Ele é um anjo, mas ao olhá-lo, ele parece mais frágil do que eu. Decido me sentar ao seu lado, mesmo sabendo que sujarei ainda mais a minha roupa.


- Há quanto tempo você está aqui? - pergunto, tentando ser o menos invasiva possível.

- Eu... Eu já não sei mais. Faz tanto tempo, me parece uma eternidade.

- Por que você não volta?

- Senhorita, logo o sol nascerá, e, pelas suas vestes, sei que está fugindo. É melhor ir antes que a encontrem - desconversa, se levantando do chão.


Chego a abrir a boca para questionar o porquê ele não me respondeu, mas ele tem razão. Eu preciso voltar para casa, por mais que não queira. A minha intenção não era fugir, eu só precisava de ar, mas encontrei muito mais do que isso. Me levanto e olho em volta, sem saber para onde ir. "Você poderia me acompanhar?", peço um tanto quanto envergonhada. Ele assente e segue na minha frente, sem falar nada.

Apresso meu passo para chegar ao seu lado, mas logo ele toma a frente novamente. Eu também estou descalça, sinto cada pedrinha sob meus pés e elas machucam, como ele consegue ser tão ágil se está pisando no mesmo que eu? Fico perdida em meus pensamentos e teorias que mal noto quando ele para de repente, de costas para mim, e acabo trombando em suas asas.

Ouço um chiado de dor e me desculpo instantaneamente antes de me afastar. A textura das asas... Não sei se consigo descrevê-la. Eu não tive tempo de imaginá-las, mas quando meu rosto as tocou, foi totalmente diferente de qualquer coisa eu eu poderia imaginar. Não sei se o fato de estarem molhadas ajudou na aspereza. Não que parecesse o chão, mas nem de longe se parecia com as penas de um pássaro. O rapaz continuou parado, apenas apontou para a frente e eu finalmente percebi que ali era a saída.


- Ehn... Então... Muito obrigada por me trazer até aqui, não sei o que faria sem sua ajuda, provavelmente ficaria aqui até o amanhecer.

- Se apresse em ir então, pois logo amanhecerá.

- Me desculpe por machucar sua asa e... por te dar meus ferimentos...

- Apresse-se, senhorita Lia.


Ele me indica a saída, mas algo parece me prender ali. Não sei se são aqueles olhos alaranjados ou a minha curiosidade em desvendá-los. Sem me virar as costas, ele começa a adentrar o bosque. Digamos que ele não seria um bom anfitrião, no momento que se cansasse da visita, facilmente a indicaria a porta da rua. "Adeus, Nathanael", digo ao me dirigir à saída coberta de folhas e dou uma última olhada para trás. Ele já não está mais ali. Uma placa de madeira coberta de limo me indica o nome do bosque. Não me surpreende que ele queira ficar só.

"Bosque da Solidão"

Oi! Espero que gostem do conto! Votem e comentem, por favor!
Eu revisei, porém escrevi pelo celular e alguns errinhos podem ter passado batido. Se virem algo, por favor, não hesitem em me falar!

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