A violinista II


Em uma tarde, Melanie encarava a entrada do grande prédio das Indústrias Trask. Naquele horário perto do fim do expediente, era difícil alguém aparecer na recepção, mas os laboratórios estavam passando por reformas e Melanie observava os trabalhadores entrar e sair carregando materiais de um lado para o outro.

Para se distrair ela sempre lia o jornal do dia. Todo dia o jornaleiro deixava uma pilha de jornais no balcão para o zelador distribuir pelos andares, e ele sempre deixavam um para Melanie no balcão da recepção.

A primeira página tinha foto em preto e branco e borrada do céu, o título da matéria era "meteoros em direção à Terra, será o nosso fim?". Ela leu a matéria e riu, o título era só pra chamar a atenção. O texto falava sobre um asteróide que estava passando pela órbita da Terra. Um pedaço do asteróide entrou na estratosfera e se desfez em pequenos pedaços que se espelharam por Long Island como meteoritos.

Melanie achava as matérias sensacionalistas demais, por isso preferia a biblioteca do professor Xavier. Pensar nele a fez sorrir.
Alguns trabalhadores passavam a encarando sem vergonha, outros mais atrevidos diziam "olá, boneca" e os ignorava o máximo possível.

No fundo ficava bastante chateada por ser submetida àquele tipo de situação quando poderia estar dentro do laboratório. Decidiu que na primeira oportunidade que visse o Dr. Bolivar Trask iria pedir para ele considerar colocá-la no laboratório.
Mas ela ainda tinha medo, afinal ele era um homem. E os homens não queriam mulheres que respondessem à altura, eles queriam um rostinho bonito na recepção.

De repente, Melanie pensou na possibilidade dos homens temerem as mulheres.

O relógio marcou 20hrs, era o horário que Bolivar deixava o prédio. Melanie arrumou a camisa, alisou a saia e prontamente se posicionou de frente para o elevador. Um grupo de três homens estavam na entrada segurando uma enorme porta de vidro pelo saguão e discutiam como deveriam carregá-la para o outro lado do laboratório.

As portas do elevador se abriram e Bolivar Trask saiu dele seguido de sua assistente loira que nunca deixava de sorrir. Melanie o cumprimentou e abaixou a cabeça quando ele passou.

-Olá, Dr. Trask.

-Boa tarde, Senhorita Levinsky. -Ele disse ao passar por ela e andou em direção a porta de entrada.

-Dr. Trask, gostaria de lhe pedir que em um momento mais oportuno você pudesse considerar mudar o meu cargo. -Ela disse rapidamente seguindo ele e a assistente. Felizmente ele não conseguiu sair, porque os homens estavam barrando a saída decidindo como iriam passar o enorme vidro pela porta.

Dr. Trask não teve alternativa, então perguntou:
-Qual cargo você tem em mente, Senhorita Levinsky?

-De Assistente ou Analista. Tenho formação concluída em Genética e Biologia, gostaria de obter mais conhecimento na área e tenho certeza que poderia trabalhar bem na indústria farmacêutica.

Pela primeira vez, Trask realmente parou para olhá-la.

-Vamos erguer a tela e aí vocês podem passar. -Disse um dos homens. Os outros dois equilibraram precariamente o vidro entre as duas mãos, cada um segurou em uma ponta e outro tentou segurar no meio e eles andaram devagar abrindo passagem para o Dr. Trask.

-Certamente irei considerar a possibilidade. -Ele disse e passou pela porta com sua assistente atrás.

Melanie sentiu-se tão feliz, mesmo que fosse uma possibilidade ela poderia ter uma chance. Sentiu o coração pulsar num ritmo desgovernado e mal reparou na dificuldade dos três homens tentando manter o enorme vidro em pé.

-Precisamos encostar em algum lugar. -Murmurou um deles.

-Vamos virar para a esquerda. -Disse o outro.

Mas um deles não conseguiu equilibrar o peso e a ponta que ele estava segurando se soltou. Os outros dois não conseguiram sustentar o peso e o vidro tombou sobre Melanie.

O impactou primeiro a assustou e depois veio a dor quando ela caiu no chão enquanto vários fragmentos caíam com ela. Alguns cacos machucaram sua pele nas mãos e nas pernas descobertas, mas ela realmente só sentiu isso depois do choque inicial.

Ela ouviu os homens exclamarem ao seu redor.

-Vamos tirá-la daí, senhorita. -Disse um dos homens.

Melanie abriu os olhos e a imagem do seu próprio corpo a assustou. Sua camisa branca estava vermelha nos braços e havia um pequeno caco de vidro preso em sua panturrilha direita.

Ao desviar os olhos de si viu que o Dr. Trask já estava mandando a Assistente usar o telefone da recepção para chamar por ajuda.

Ela respirou fundo para se recompor, precisava pensar em algo. Se a levassem ao hospital iriam achar estranho que não tivesse machucados quando chegassem lá.

-Eu estou bem. -Ela disse depois de conseguir equilibrar a voz. O machucado em sua panturrilha estava latejando. Um dos homens, o mais alto, se aproximou afastando os cacos do caminho com as botas. Ele se inclinou tentando segurar Melanie pela cintura onde não havia se machucado e a ergueu.

-Senhorita Levinsky, nós vamos pedir por ajuda. -Disse o Dr. Trask.

Melanie balançou a cabeça de forma negativa e apontou para o balcão na recepção.

-Não é necessário, tem um kit de primeiros socorros atrás do balcão. -Ela olhou para a assistente que parecia confusa entre usar o telefone ou ir atrás do kit. -Já está tarde e eu moro longe, não teria como sair do hospital e voltar para casa. Por favor, me passe o kit.

A assistente tirou uma caixa branca de trás do balcão e correu até Melanie.

-Tem certeza? -Ela perguntou ao abrir a caixa e procurar por ataduras.
-Sim, só vou precisar de ajuda com os curativos. -Ela afirmou.

Melanie tentou ser o mais prática possível para que os curativos fossem feitos rapidamente, ao menos a assistente estava convencida de que realmente não era tão grave quanto pareceu no primeiro momento.
Mas Bolivar Trask não pareceu tão convencido assim.

-Vamos solicitar que um táxi a deixe em casa. Por favor, consulte um médico amanhã e mande um telegrama se precisar de repouso. -Ele falou quando a assistente terminou o curativo na panturrilha.

No instante em que o curativo estava feito, Melanie podia sentir seu corpo trabalhando fazendo a ferida diminuir. Ela se levantou e deu um meio sorriso.

-Obrigada pela gentileza.

Os outros três homens se apressaram para limpar a bagunça. A assistente entregou a bolsa de Melanie e a acompanhou até a saída do prédio com o Dr. Trask.

Mel andou devagar mesmo sem precisar. Pararam na calçada e a assistente fez sinal para um táxi parar.

-Sentimos pelo inconveniente. -Disse a assistente. -Passar bem, Senhorita Levinsky.

Bolivar curvou a cabeça e se retirou quando Melanie entrou no táxi. Deu as instruções para o taxista seguir para a mansão em Westchester.

O percurso até Salem Center era demorado, mas logo nos primeiros instantes Melanie já sabia que todos os cortes haviam desaparecido. Respirou aliviada, sabia que em algumas situações ficava encurralada e ia precisar convencer as pessoas de que ainda estava se curando, o que precisaria ser lembrar mentalmente a todo momento.

Depois de um pouco mais de uma hora, o táxi parou na entrada da mansão. Melanie agradeceu o motorista e desceu do carro devagar, fechou a porta e esperou que ele voltasse para a estrada. Quando ele estava longe, ela se virou e caminhou normalmente pelo jardim.

Naquele horário os poucos alunos já deviam estar em seus respectivos quartos. Era mais comum que as crianças fossem mais difíceis de aceitar o horário de dormir, os adolescentes eram difíceis de tirar do quarto e convencê-los a fazer outras atividades. Como trabalhava a maior parte do dia, ela só conseguia ver os alunos nos fins de semana quando não estava no laboratório com Hank.
Melanie destrancou a porta com cuidado e entrou silenciosamente. A maioria das luzes estavam apagadas, somente a da cozinha estava acesa. Ela deixou tirou os sapatos na entrada e seguiu para a cozinha. Encontrou Hank debruçado sobre a geladeira.

-Boa noite, Hank. -Ela sussurrou.

-Melanie! -Ele exclamou sem se virar e aparentemente com a boca cheia enquanto tentava alcançar algo no fundo da geladeira. Hank era alto e desastrado. -Hoje eu estive observando suas amostras de sangue e não consegui bons resultados, parece que a regeneração não ocorre fora do seu corpo e então criar um soro de cura com sua mutação vai ser mais difícil do que pensei. É difícil explicar... é como se... -Ele virou para ela segurando uma garrafa de leite e um pudim e então engasgou arregalando os olhos.

Foi quando ela lembrou de que estava com a roupa suja e alguns curativos.

-Ah não se preocupe. -Ela murmurou. -Me machuquei com vidro no trabalho, mas você sabe... já sarou.

Ele soltou um suspiro audível e por um instante pareceu aliviado, até que seus olhos se direcionaram para a entrada da cozinha.

-Professor. -Hank exclamou ajeitando os óculos.

Charles se aproximou e olhou para os braços de Melanie.

-Eu estou bem. -Ela disparou.

Ele piscou seus olhos azuis cansados de sono.

-Vem comigo. -E saiu da cozinha em direção ao outro lado do térreo.

Passando pelas escadas do hall havia uma sala no fundo onde ficava o gabinete de Charles. Era um de seus lugares preferidos na mansão.

Melanie o seguiu e entrou no gabinete logo atrás dele. A sala era grande, tinha uma varanda que dava vista para o jardim da mansão. Havia uma enorme mesa e uma cadeira igualmente grande e confortável, as paredes eram abarrotadas de livros muito bem organizados. Aquele cômodo era completamente Charles, toda a mente inquietante, os olhos compreensíveis e o coração que amava ciência e conhecimento. Por isso era o lugar mais aconchegante daquela mansão.

Na mesa de Charles havia uma vitrola e era o que mais chamava a atenção dela. A música sempre fora algo que pulsava na alma de Melanie assim como o sangue em seu corpo.
Xavier se aproximou dela e pegou os seus braços, ele cuidadosamente tirou os curativos e observou a pele lisa e intacta dela.

-Eles curam rápido. -Ela o lembrou e sorriu quando ele pareceu aliviado.

-Alguém viu?

Ela balançou a cabeça negando.
-Você sabe que depois de um tempo a gente fica bom em esconder esse tipo de coisa. -Ela murmurou se aproximando da vitrola e viu que o disco na mesa era um de seus preferidos.

Ela o olhou como se pedisse permissão para mexer em suas coisas.
Charles deixou uma risada fraca escapar e balançou a cabeça
Melanie colocou o disco no prato da vitrola e quando a agulha tocou o disco, uma melodia baixa e suave começou a tocar. Percorrendo a sala e dando vida ao ambiente como o sangue dava vida ao corpo.

Wise men say only fools rush in
But I can't help falling in love with you

Ela se virou para Charles que estava com as mãos no bolso da calça e em silêncio enquanto os olhos azuis observavam tudo. Ela sabia que ele estava tendo dificuldades para dormir e vivia ansioso cuidado de todos os alunos.

-Você precisa descansar. -Ela sussurrou e estendeu as mãos para ele. Ele as pegou e ela o puxou para perto deixando uma mão sobre o ombro dele e a outra entrelaçando os dedos nos seus.

Shall I stay?
Would it be a sin
If I can't help falling in love with you?

Por um momento Charles teve vontade de estar na mente dela e descobrir todos os seus segredos, suas memórias e seus medos. Queria enxergar cada pedaço dela e entender como ela fazia aquilo. Ele estava sendo embalado pelo corpo dela que balançava, pela melodia refletida em seu sorriso. O cabelo dela havia se soltado do coque e balançava como se pudesse hipnotizá-lo e tudo era uma incrível experiência de sensações. Charles estava tão acostumado a ficar preso dentro de mentes que frequentemente se esquecia de sentir as outras coisas.

Agora ele sentia as meias deslizando pelo tapete enquanto eles dançavam, sentia o perfume dela misturado com a música, sentia o peito descompassado.

-Não sei o que se passa pela sua cabeça. -Ele comentou percebendo que estava focado nas outras sensações presentes. Visão, audição, tato, corpo e coração transbordando.

-Às vezes o que você precisa saber o quê está nos olhos. -Ela respondeu.

Like a river flows surely to the sea
Darling so it goes
Some things are meant to be

Melanie conhecia muitas maneiras de curar as pessoas ao seu redor.

***

O ar foi ficando mais gelado conforme o outono saía de cena e dava espaço para o inverno. Melanie alternava as vestimentas entre saias redondas e as calças cigarretes. As últimas usava com menos frequência no trabalho, infelizmente ainda era uma peça não muito bem aceita no guarda-roupa de uma mulher. Mas ela em todos os aspectos não se sentia muito bem aceita como mulher no geral.

No trabalho, depois do acidente com a tela de vidro, Melanie continuou usando os curativos no braço para não levantar suspeitas. E assim que o Dr. Trask entrou no prédio ela o cumprimentou.

Diferentemente das outras vezes, ele parou para olhá-la.

-Bom saber que está bem, Senhorita Levinsky. -Ele disse e sua assistente cumprimentou Mel. -Poderia, por gentileza, me passar o seu currículo?

Mel piscou por um segundo e então se lembrou do que havia pedido a ele. Ela abriu sua bolsa atrás do balcão e tirou um papel com os seus dados.
A assistente abriu a pasta do Dr. Trask e recolheu o papel de Melanie, no processo de tentar fechar a mala deixou algumas folhas cair.

Bolivar suspirou impaciente.
Melanie se abaixou para pegar as folhas que haviam escapado, a barra da saia mediana subiu um pouco até o joelho deixando a panturrilha à mostra.

Bolivar observou notando que a pele estava perfeita. Ele poderia jurar que ela havia machucado a panturrilha há três dias atrás, mas não havia nada ali. Nem mesmo um curativo.

Corte profundos feitos por vidros deveriam no mínimo deixar uma cicatriz. Ele já havia achado estranho a calmaria dela durante o incidente e o fato dela recusar ir a um hospital havia o deixado intrigado.

Bolivar Trask conhecia o bastante deste mundo para saber que as coisas estranhas que acontecem não são por acaso.

Melanie ajudou a assistente com os papéis e Bolivar seguiu em direção ao elevador.

-Ruth, por gentileza, reúna todas as informações da Senhorita Levinksy e me entregue até o final da tarde. -Ele solicitou apertando o botão do subsolo.

O elevador parou antes no segundo andar onde Ruth saiu para passar o restante do dia no escritório. Quando as portas se fecharam novamente, o elevador desceu direto para o subsolo, parou lá e permaneceu com as portas fechadas.

O painel exigiu uma chave, Bolivar tirou uma de dentro do seu paletó, encaixou no painel e as portas se abriram. Ele saiu e o elevador fechou atrás de si. Ele andou pelo amplo salão com várias mesas de relatório de pesquisas, havia uma equipe pequena de cinco cientistas analisando dados e células. Era uma parte privada do laboratório que não era dedicada à indústria farmacêutica que servia como fachada para o verdadeiro que trabalho que Trask realizava.

Os estudos do gene x eram mantidos em segredos por enquanto, mas só até Trask conseguir convencer o governo de que os mutantes eram perigosos. Depois poderia até mesmo conseguir contribuições para o seu trabalho, para manter os humanos em segurança.

Pelo menos já tinha a confiança do governo, realizava trabalhos confidenciais e tinha acesso a rede de contatos. Na noite anterior recebera um comunicado de que ele receberia uma peça rara para estudos e deveria realizar a tarefa em segredo. Ele seguiu par a a mesa principal do salão, haviam deixado a peça dentro de um cubo de vidro.

Ele se aproximou para ver o fenômeno sobre qual debruçaria sua curiosidade. Era um pedaço de rocha mediano, do tamanho de um sapato infantil. Tinha cor de terra mistura com carvão, mas no centro havia uma cor alaranjada que parecia se mover. Trask percebeu que ao redor do objeto havia poeira cósmica da mesma cor alaranjada da rocha.

Bolivar Trask acreditava que seria um estudo promissor.

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