Capítulo XVII: Reviver
(cap: 7263 palavras)
Henrique Lago
Sentiu-se flutuando em meio às vozes e cantos, como estar e ao mesmo tempo não estar. Irreal e presente, como uma almHenrique Lagoa ou uma fada.
Acorda, haviam mulheres sobre ele vestidas de mantos azuis e negros. Falavam ou cantavam, seus rostos azulados por estranha tinta e olhos em neblinas, as palavras eram em uma língua que a muito não ouvia. Uma segurava um archotes de fogo dourado, sentia cheiro de sangue e ervas. Tinha algo em seu pescoço, sua garganta. Garganta! Agora se lembra, alguém havia a cortado.
- Gauvain... Rigantona.
Sonhou com uma noite nevada e escura, buscava um amigo, mas ele era um animal, um lobo castanho.
Luz forte e dor nos olhos. Os abre e vê uma parede tosca de cor creme e parte de uma janela revelando uma colina onde havia uma torre solitária. Tenta respirar, mas sente dificuldade, sua garganta parecia inchada. Toca em costuras firmes em carne inchada na garganta, com medo respira fundo e dói, fez o sinal das chagas, também possuía as suas próprias. Começa a se desesperar, mas sente um toque quente em suas mãos, uma freira o acalenta.
- Se acalme, tudo vai ficar bem agora.
Sonhou com um anjo jovem e com uma bruxa, mas será uma bruxa ou uma santa? Estava confuso. Quando acordou lembrou-se de tudo.
- Como eu sobrevivi?
A freira lhe pegou água e ele sorve lentamente devido a dor. Depois ela tirou as ataduras e começou a cuidar do imenso ferimento. Henri sorriu pela primeira vez e ela se emocionou. Alguém está se importando comigo! Pensa e chora vendo a mulher que tinha seus mesmos olhos cor de mel.
- Durma mais, meu bem.
Acordou com fome e viu a seu lado uma tigela de sopa. Levantou com dificuldade e sentiu sangue brotando em seu pescoço, tocou para sentir os pontos novamente. Não sabia como estava vivo, mas estava e estava feliz por isso. Comeu bem lentamente a sopa fria que lhe haviam preparado mesmo com dor ao engolir. Não sabia de sua escuderia ou de Marco, precisava se fortalecer. A freira não voltou mais, mas dezenas de freiras e noviças vinham cuidar de suas feridas e reclamar da neve e depois do degelo.
- O que houve com sua garganta? Tentaram te matar? - Perguntou uma noviça curiosa.
- Não, não tentaram me matar. - Respondeu rindo.
- É um herege?
- Herege? Que pergunta esquisita?
- O senhor chegou cheio de símbolos no corpo? As freiras nem quiseram te ajudar na hora, mas veio uma ordem de cima.
- De cima?
- Sim, das superioras.
Passou mais alguns dias e Henri começou a dar pequenos passeios. Via pela janela as religiosas trabalhando, carregando coisas, limpando, plantando, corando e costurando, mas principalmente rezando. Um pântano cercava a colina e o sol da tarde descia atrás de uma torre solitária em outro monte. Estava na milagrosa Abadia de Cianerba e descobriu os corredores em arcos, praças internas cheia de flores e árvores frutíferas e antiga biblioteca. Havia imagens de santos e tapeçarias mostrando histórias bíblicas, além de uma presente névoa gelada nos corredores. Mas o que mais lhe chamou a atenção foram as majestosas árvores que emolduravam o prédio. Sentia um imenso sagrado vindo delas, algo lhe lhe arremetia a infância, seu avô, sua história esquecida. Um cemitério próximo repleto de lápides e anjos descia pela colina, lá encontrou talhado uma mulher deitada com uma cruz sobreposta a um círculo. Tocou o próprio peito e não encontrou o cordão que tinha desde criança que apresentava a mesma cruz.
- Está melhor, meu jovem?
- Estou melhor, senhor. - Respondeu ao sacerdote que se aproximava.
- Qual o seu nome?
- Henrique Lago, soldado da escuderia Arsenal, lança Titã, liderada por sir Davi Puro.
- O que houve com você?
- Não sei ao certo, estava morto e acordei aqui. Também não sabe o que me aconteceu, não é?
- Não, mas acredito na história que me foi contada. Aqui sempre acontece algo extraordinários. Olhe para aquela roseira. – E apontou para um arbusto espinhento de lindos botões vermelho sangue. – É da coroa do Imaculado. Dizem que Jesus estudou aqui antes de se tornar Cristo e que após sua morte e ressurreição veio para esta terra. De sua coroa de espinho saiu à roseira santa. Em nenhum lugar do mundo há rosas iguais. Este solo é sagrado e milagres ocorrem aqui.
Henrique fez o sinal da cruz e fez uma oração silenciosa. Nunca em sua vida pensou em Jesus pisando neste solo e que passaria onde Ele passou. Pegou um botão da rosa e guardou para Ana.
- Agradeço por salvarem minha vida, padre.
O padre sorriu, colocou a mão na batina e de lá tirou um pergaminho selado com cera azul e o entrega. Estranhou uma carta tão formal e ficou com medo quando viu um símbolos que não conhecia.
- Isso é uma runa antiga dessa terra, usada pelos pagãos antes da presença da verdade de Cristo. Você sabe o que ignifica?
- Não, padre, mas quando eu era criança me ensinaram a língua das árvores. Mas fui encontrado por meu pai e agora carrego a cruz de Cristo comigo. Sou um cavaleiro e como tal luta pela cruz.
- Não seria o primeiro pagão a andar por nossas terras. Saiba que em tempos remotos este lugar pertencia tanto aos Verdes Antigos quanto a Igreja.
- De uma vez só. Não houve guerra?
- Houve depois, muita morte. Mas agora os tempos são outros e eles se foram para sempre. Vá descansar, menino.
Henri foi pensando em tudo que havia descoberto, preocupado com a única lembrança que tinha de seu avô e tentando entender o motivo de ter recebido tal pergaminho que não lhe foi entregue. Sonhou um recorrente sonho com seu avô em uma floresta conhecida e profundo, estavam juntos de Garrano e um lobo castanho. Era sempre o mesmo e sempre a mesma sensação de bem-estar. No outro dia foi acordado por uma voz estridente e irritante. Abriu os olhos e viu uma velha freira o encarando.
- Acorde e parta daqui, pagão adorador do demônio! Aqui não é seu lugar, saia deste solo sagrado e volte para as profundezas!
Henri não entendeu quase nada. Não sabia o porquê de tamanha ira, ainda estava acordando.
- Senhora, não sei do que se trata, mas se a incomodo eu saio.
Ela rindo zombou:
- Não sabe? - Depois mostrou o cordão de seu avô e disse: - Carrega a cruz de Satã e não sabe? Não pensa que sou tola como os outros. Vá! Suma desse convento, aqui não é o seu lugar!
- Me devolve esse o cordão que eu vou embora! - Disse tentando controlar a raiva de ser tratado tão mal onde conhecera tantas pessoas boas.
- Devolver? Vou queimar isso, seu merdinha! Vá logo e se esconda, seu rato, porque o Santo Sacrifício vai te encontrar e te queimar!
Ela saiu e Henrique arrumou suas coisas de pressa, mas voltaria pra pegar o que era dele. Amarrou as bandagens bem firmes e saiu da abadia sobre chuva fria olhando uma ultima vez a torre solitária sobre o monte.
Andou algumas horas, sua garganta doía, sangrava um pouco e o terreno era um pântano lodoso de difícil passagem. Mas Deus estava lhe ajudando, pois viu um velho senhor quase sem dentes pescando sobre um dos remansos rasos, era o velho Gerardo.
- Tá bem menino?
- Foi Deus que mandou o senhor!
- Vamo, sobe aqui que eu te tiro daqui.
Henrique o ajudou a remar descendo o curso d1água para uma lagoa maior, cada vez que se afastava da abadia mais névoa o cobria como uma muralha gris. Os sinos distantes começaram a soar, mas foi enfraquecendo na medida em que a bruma o envolvia até se tornar uma lembrança.
- Ele mandou te dá. – Disse Gerardo lhe entregando o pergaminho.
- Ele quem?
- O padre.
Henrique pegou o pergaminho e rompeu o selo azulado, viu uma caligrafia rebuscada de tinta azulada e traços finos em uma língua que descobriu saber ler.
A nobreza precede o alto homem da Terra de Carvalhia,
Sangue puro demonstra a herança sagrada.
Oh, herdeiro do herói e da Grande Mãe.
Sou Ravena, a Gralha,
E como a visão te acompanho e te guardarei.
Verá o meu sinal no Nascimento do Verão, caro irmão.
Que os deuses te acompanhem.
Em baixo estava escrito de forma cursiva e apressada:
Salvaste o Filho da Alcatéia por ser justo. Vejo-o em seu futuro para o bem e para o mal.
Leu e releu mais de uma vez, mas não compreendia a mensagem da carta. Voltaram a remar, a névoa se dissipou e voltou a ouvir os sons dos sinos. Bem a frente o velho Gerardo encontrou um antigo cais e apontou para a estrada que dava para Salgácer, tinha que rever Ana e dizer que estava vivo. Mas ainda ferido não conseguiria andar até lá. Precisava de encontrar uma caravana ou, pelo menos, uma carroça que ia para a mesma direção. Parou na casa de um camponês, ele lhe deu o que comer e água, falaram da ferida e pode dormir na casa dele. Mas, pela manhã, ouviu batidas de cascos e barulho de metal, cavaleiros. Henrique saiu da velha casa de barro, estava desarmado e um dos homens perguntou:
- O que faz em minhas terras?
Era um nobre com estrutura alta e cabelos claros, assim como a barba. Montava um cavalo escuro com uma grande mancha branca na fronte. Trajava cota de malha, peitoral e um grande arco longo nas costas. Atrás dele um rapaz sustentava uma bandeira com o brasão formado por um elmo, fitas negras e verdes e um escudo com três folhas.
- Me desculpe, senhor. Sou um viajante e acabei de sair do convento, me tratava de uma ferida. Veja, sou um soldado do Arsenal. – Mostrou na túnica o símbolo da escuderia.
- Ferido! Bem que estou vendo sangue em seu pescoço.
- Sim senhor. O senhor pode me ajudar?
- Não sei se confio em você.
- Tudo bem, senhor. Mas fui guarda do conde de Ilha Branca, Vladimir Testemunho, e ajudei a salvar lorde Vilmo de Carpetaria.
- Você o ajudou ou será que era um dos bandidos? Se for verdade, me conte. Como ele é e como é sua morada?
- Senhor, pouco pude vê, pois seu rosto estava retalhado, mas fomos à sua casa e fomos bem recebidos. Ele queria nos presentear, mas a gente queria apenas passagem.
- Qual o seu nome, soldado?
- Meu nome é Henrique Lago, senhor.
A feição do homem fez um sorriso e ele desceu para cumprimentar Henrique.
- Então é o homem que eu procuro. Meu nome é Artur Aqueduto, segundo herdeiro de Meandro, senhor dessas terras e suserano de sir Vilmo. Acompanhe-me, por favor.
Henri montou na garupa do cavalo do nobre que guiou o cavalo a pé. Cavalgou por campos e pastagens da região falando de sua história, guerras e conquistas. Era final de dia e o sol se punha dourado rompendo a névoa. Dormiram em uma vila e saíram ao nascer do sol para a estrada novamente, agora com uma dezena de soldados como guarda e novos cavalos. Demoraram na estrada quase meio dia até chegarem aos bosques da propriedade se sir Aqueduto.
- Bem-vindo as minhas terras, na verdade de meu pai. Ela é irmão do conde de Meandro, meu tio que não tem filhos. Moramos no palácio da família, enquanto o titio reside na Torre Cisne.
Passaram por veados assustados na estrada de pedra em meio às árvores que levava a um imenso jardim que margeava um labirinto de plantas e um lago com cisnes. Ao fundo o imenso palácio de colunas, cômodas, estátuas e arcos, era tão lindo quando a mansão Testemunho, mas havia vida ali. Reparou em cada reentrância ornamental e nas imensas e numerosas janelas onde em uma delas dois servos batiam um tapete. Entraram pelos fundos na cozinha onde foram servidos chá, pão novo, queijo e presunto. Descansou em um bom quarto e despertou vendo os belos jardins de uma manhã mais quente. Encontrou sir Artur horas depois.
- Tenho assuntos a resolver em Salgácer em uma ou duas semanas. Fique aqui em casa até lá. Podemos ir juntos.
Recuperou-se bem nesses dias e acompanhou o nobre até a cidade em uma viagem tranquila e confortável. De começo temeu pela vida do nobre na estrada, mas todo mundo que o encontrava parecia amá-lo, era amado por seu povo.
- Agora que estamos longe, me fala, o que fizeram com você? Se me der à ousadia de perguntar.
- Um grande amigo meu enlouqueceu e cortou meu pescoço quando eu tentei salvar minha futura sogra. – Mentiu Henrique.
- Muito nobre de sua parte. E o que te aguarda em Salgácer? Vejo seu contentamento.
- Um anjo.
- Um homem apaixonado, isto e a força de nós cavaleiros. E como ela é?
- O azul do céu se ofusca diante de sua beleza e nenhum pássaro canta tão doce quanto a sua voz. Quando ela me olha eu esqueço quem eu sou.
- Case com ela, rapaz, pois um amor assim tão belo não acontece muitas vezes.
Nos portões de Salgácer mal continha a ansiedade. O nobre conseguia entrar com seu privilégio de sangue e prosseguiram direto para a hospedaria.
- Acalme-se, companheiro. Ela vai estar a sua espera.
Encabulado Henrique sorriu com vergonha de ter deixado seu medo transparecer e ficou encantado com a preocupação de sir Artur, nunca conhecera nenhum nobre como ele. Na rua da hospedaria parou, temeroso travou.
- Não deixe que a vida lhe roube mais nenhum segundo. Vai!
Viu as três rosas pintadas da placa e a entrada onde algumas pessoas saíam e entrevam. Ela saiu carregando um vaso na direção do poço, estava estonteante com um simples vestido cinza e um casaco negro. Seus cabelos estavam soltos e sua tez um pouco mais morena da primavera. Até que ela o olhou e o vaso caiu. Henrique amarou firme o cachecol em seu pescoço machucado andou até ela. Estava magro, fraco, pálido e com barba e cabelo grande, mas não se importava, só queria estar com ela. Henri a abraça e ela o agarra forte e fala:
- Você não me abandonou?
Henri chorou em ouvir sua voz e em estar tão perto novamente. Chorou em fazê-la chorar, mas principalmente de felicidade. Sentiu o sabor de seus lábios com um beijo repentino e teve certeza que nenhum problema do mundo os afastaria novamente.
- Nem a morte tem força suficiente de separar o nosso amor.
Depois a abraçou novamente e se lembrou de sir Aqueduto:
- Como tinha dito o seu amado, palavra nenhuma conseguiria descrever a sua beleza e vejo que foi modesto. Sou sir Artur Aqueduto de Meandro, estou encantado de conhecê-la e feliz por ter trago este rapaz de volta ao seu lar.
- Obrigado senhor, por ter trago ele de volta para mim.
Depois eles entraram e foram recebidos em lágrimas e abraços por senhora Maria, que ainda carregava as cicatrizes no rosto, e Jasão. Comeram e beberam, enquanto Henrique explicava toda a fantástica história. Marco louco o feriu, foi ajudado por alguém, talvez o velho Gerardo e levado para o Convento de Cianerba, depois encontrou sir Artur e finalmente voltou.
- Onde estão os outros soldados? Líder, Chuchu? - Perguntou.
- Acho que eles voltaram para Londor. Pensaram que você tinha morrido por aquele mostro.
- E Julian?
- Foi com eles.
Cansado se recolheu a um quarto, precisava avisar a todos que estava vivo. Dormiu por muito tempo um sono pesado, restaurador, sendo acordado apenas para comer e beber água. E os dias se passaram com calma, sua força retornava, seu pescoço cicatrizava, fica perto dos Rosa era o melhor remédio. Recados foram mandados para Londor, sir Artur mesmo iria providenciar isso, já que ainda estava em Salgácer com seus negócios. Certa amanhã foia cordado de surpresa.
- Caralho, Henrique! Filha da Puta!
Ouviu a voz de Comando que pulou sobre ele. Henrique gritou de dor no pescoço e riu, mostrou a ferida e ele fez cara de nojo.
- O que você está fazendo aqui?
- Quer que eu vá embora, veado? - Disse rindo. – O capitão me mandou vir primeiro, acho que ele sabia que você estava aqui ou algo assim. Ele sempre falava que você estava vivo, mas ninguém acreditava.
- Vocês me queriam morto, sei bem. - Disse rindo e contou tudo ao amigo.
- Mas Marco ta vivo? Julian tinha certeza que tinha matado ele, aliás, esse monge a vezes me dá medo.
- Acho que ele não vai voltar, também vi ele morto.
- Antes dele rasgar seu pescoço?
- Não sei bem, não lembro muito daquele dia. Acho que aconteceu algo mágico.
- Mágico?
- Pode guardar segredo?
- Sim, me fala logo.
Henrique pegou o pergaminho e mostrou para o amigo.
- Que raio de letra é essa? Você consegue ler isso?
- Sim.
- Cuidado, Henri, muitos morreram por menos que isso.
Chuchu ficou o resto do dia ajudando Henri e conversando. Em poucos dias apareceu sir Davi e Alberti preocupados com sua saúde.
- Graças a Deus está bem Henri. Procuramos você por todos os lados, mas sumiu sem deixar nenhum vestígio.
- Estou bem, Alberti, juro.
- E Marco? Juro eu mesmo acabar com ele. - A voz do Líder era de puro ódio.
- Está proibido de sumir ou fazer qualquer coisa sem o meu consentimento, sou um tenente. – Brincou Alberti.
Henri se emocionou ao ouvir essas palavras, sua equipe era sua família. Ficaram mais alguns dias e Henri sentia que logo iria se separar de Ana de novo, ela também parecia incomodada com isso, ficava triste quando Líder dizia que logo partiriam. Jasão se aproximou em uma noite e disse:
- Minha irmã está sofrendo, Henrique. Você precisa fazer alguma coisa.
Ele estava certo, iria conversar com Líder para deixá-lo ficar na hospedaria e se casaria com Ana, depois retomaria sua vida de soldado. No outro dia foi acordado e se deparou com todos reunidos, Ana, Maria e Jasão serviam bastante comida e Comando, Alberti e Líder lhe esperavam rindo.
- Parabéns! – Eles disseram seguidos de abraços e beijos.
Tinha esquecido até de seu aniversário. Comeram e beberam, festejaram sua idade e sua vida, era um homem agora, não mais o rapaz assustado que fugia do irmão. Estava feliz de ver a felicidade de seus amigos e de se sentir amado, de ser querido e de receber uma festa. Chorou escondido e abraçou a todos. O Líder então disse para o jovem:
- Tome aqui, rapaz. Meu presente e que seja muito útil em nossas batalhas. E que Deus permita que nós lutemos muito ainda juntos.
E entregou um par de botas de guerra. Seu interior era de couro e por fora placas metálicas para proteção. Parecia caro e sem dúvida de qualidade. Ganhou de Comando um escudo simples; uma manta para Cavalerói com o brasão de Arsenal pintado de Alberti; um bom casaco de lã de senhora Rosa; roupas de baixo de Jasão; e, uma simples pulseira feita à mão pela própria Ana, seu presente mais valioso. Agradeceu a todos de coração, era difícil conter tanta felicidade. Líder pede a atenção e diz:
- Muita coisa aconteceu nesses meses que ficamos juntos. A ilha Branca foi invadida e lutamos, lutamos na ponte e na floresta. Roberto e Marco morreram e quase perdemos Henrique, precisamos de uma folga.
Chuchu da um grito e começa a dançar. Depois disse a festa realmente se animou e no final sobraram apenas Alberti e senhora Rosa cantando alto músicas antigas. Comando já havia caído em um canto e Ana estava ao seu lado, agarrada em seus braços falando baixinho em seus ouvidos que o amava. Ele a beijou e disse:
- Quer se casar comigo?
A resposta foi um longo beijo seguido de lágrimas. Ela foi para o quarto deixando Henrique em pensamentos: Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Acordou certo de se casar, mas precisava de dinheiro, um dinheiro limpo, não as joias roubadas do conde. Conversou com senhora Rosa e Ana, pensou em ir para o palácio Aqueduto trabalhar com sir Artur juntar o suficiente, não demoraria muito. Mandou um recado para ele e ficou ajudando a família no trato dos clientes, concertou o velho paiol e fez novas baias para os cavalos não dormirem no sereno.
Até que sir Artur voltou a cidade, foi direto ver se o amigo estava bem. Henrique estava desconcertado para pedir serviço, mas ele parecia aliviado de encontrá-lo e disse:
- Henri, você pode me acompanhar até Londor? Preciso buscar minha irmã e você deve conhecer a cidade melhor do que eu. Além de ser um soldado Arsenal, mais fácil de conseguir informação.
- Claro, senhor! Vou sim! Não conheço tão bem a cidade, mas podemos procurar juntos.
- Irei te pagar com justiça.
- Na verdade vim ver se podia trabalhar para o senhor pra poder seguir seu conselho e me casar com Ana. Mas pra falar a verdade, eu te devo minha vida, então vou fazer isso como um favor. Depois, se o senhor deixar, posso trabalhar para o senhor lá em Aqueduto.
- Tudo bem, mas aceitará meu presente após o trabalho.
- Tá bom, mas vai ter que vir em meu casamento.
- Até que para um soldado você é um excelente negociador. – Disse rindo.
Arrumaram as coisas para partirem no outro dia bem cedo. A viagem foi prazerosa com divertida conversa e dicas de amor para Henri. Pararam para lanchar sob uma árvore e observando os raios de sol brilhantes na água do orvalho sobre as folhas verdes novas. Continuam e um dos soldados de sir Artur cai do cavalo, se machuca com gravidade, estava bem perto da encruzilhada que levava para a mansão Ourives, não podia ser coencidência.
- Tem um nobre aqui que pode ajudar.
- Está falando de Tomás? Você também o conhece? - Perguntou Henri.
Os soldados se mobilizaram e pegaram o companheiro que tremia em convulsões indo direto para a casa do sinistro nobre. Passaram por seu bosque medonho, a pequena ponte e entraram nos jardins malcuidados. O som dos cavalos alertou os nobres e sir Tomás se aproximou para ver o que estava acontecendo.
- Leve-o para dentro!
Eles obedeceram e Tomás sumiu no interior da casa. Já tinha passado por isso e se lembrou de Marco. Servos da mansão surgiram levando os soldados para a cozinha e sir Artur e Henrique para uma sala de jantar onde foi servido pão, leite, manteiga, presunto e figos. Sir Tomás surgiu um pouco depois.
- Ele vai ficar bem, só precisa descansar agora.
- Obrigado por ajudar.
- Ajuda será cobrada no momento certo, Artur, você sabe como funciona. E é sempre um prazer ver você, Henrique.
- Por que você não ajudou o conde Vladimir? Pensei que eram amigos!
- Acredita mesmo que eu podia ajudar? Não se faça de tolo, Henrique.
- Partiremos agora, Tomás. Quando meu homem tiver bem mande-o para Aqueduto, por favor. E mais uma vez obrigado.
- Sim, claro.- Respondeu Tomás com desinteresse até retirar um pergaminho do bolso e dar para Henrique. - Leve isso em minha casa em Londor, Henrique.
Saem e chegando à capital já quase de noite e sir Artur vai direto para um dos palácios da rainha.
- Vou fazer o pedido de Tomás, senhor. Onde posso encontrá-lo depois?
- Espere na casa dele, sei onde fica.
No caminho um homem lhe pede ajuda, uma informação. Não sabia bem explicar e quando se vira para apontar para uma direção sente que ele agarra seu pescoço e o prende a parede. Tenta gritar, estavam sozinhos na rua, seus olhos queimaram, a ferida sangra e sua visão ficou turva antes de desmaiar.
Acorda e reconhece o piso de madeira escura, alguns móveis de qualidade e quadros familiares da casa de Vladimir. Tenta levantar a cabeça, mas sente dor nas costas, os braços estavam amarrados em algo. Vislumbra umaa silhueta diante da janela aberta e do sol fraco. Ela se aproxima em passos sensuais deixando o cabelo esvoaçar liberando seu agradável e familiar perfume.
- Elisabete?
Ela senta no colo do cavaleiro de forma provocante e passando a mão em seu cabelo diz:
- Saudade de mim, pequeno Henri?
- Está doida? Por que me prendeu?
- Por que eu sempre quero mais, eu quero tudo. E hoje quero que você me ajude, meu amante.
- Não irei fazer nada!
- Quero que Tomás morra, ele sabe demais.
- Está louca? A única coisa que farei contigo é te matar.
Ela levanta e vai até uma mesinha. Pega uma adaga e roda rapidamente entre os dedos fazendo-a parar em um movimento de apunhalar.
- Faça ou mato sua noivinha.
O coração de Henri dispara e sua fúria se torna incontrolável. Ele começa a se debater com força fazendo a cadeira ranger enquanto grita:
- Não! Não! Vou te matar antes, eu juro por Deus que te matarei antes! Sua vaca!
- Acalme-se. Posso me divertir muito ainda antes de te soltar.
Ouvem um estalo e Henrique cai no chão, a cadeira de madeira rompeu. Ela avança para tentar prendê-lo, mas acerta uma cabeçada em seu nariz que a derruba. A corda estava frouxa, consegue se soltar, ela se levanta para correr, mas agarra seu vestido com uma mão e a coxa com a outra a derrubando. Cai sobre ela e irado acerta dois socos em seu rosto, sente o impacto de cada golpe na cabeça da mulher e as feridas abertas, uma sobrancelha cortada e uma boca e o nariz sangrando. Ela não se mexe mais.
Ouve um barulho vindo do antigo quarto do conde. Corre até lá e vê um homem com uma besta em punho pronto para alvejá-lo. Henrique fecha a porta e ouve o impacto dos virotes. Desgraçados! O jovem olha para o lado e vê suas coisas sobre uma mesa. Pega e corre para a rua onde algumas pessoas pararam com o barulho.
- Tem um assassino lá dentro! Chame a milícia, sou do Arsenal!
Vai correndo para casa do maldito Ourives para esperar sir Artur sem saber quanto tempo passou desacordado. Ela podia ter me matado se quisesse, eu tava desmaiado e amarrado. Ela não tem coragem de enfrentar Tomás como fez com o conde. O que ela quer? Pensava, enquanto recordava a maldita face do homem de cabelos escuros e olhos apertados. Procurou nas suas coisas o pergaminho que deveria entregar para Tomás e ele havia sumido. Maldita ladra.
Esperou até o amanhecer e encontrou o amigo, não disse o que houve, prendendo bem um pano em sua ferida reaberta. Voltaram para a estrada junto da carruagem que levava sua irmã e ainda mais soldados, nada aconteceria a eles. Ficaram no mosteiro do Sagrado Coração onde reencontrou Julian. A amizade deles estava estranha, houve morte entre eles. Mas estava preocupado demais com Ana.
- Olha Julian, eu não estou com raiva de você por ter matado o Marco e nem pelo o que isso me causou. – Disse mostrando o pescoço ainda ferido. – Acho que fez o que tinha que fazer e eu fiz o que tinha que fazer. Vamos deixar essa história para trás.
Julian o abraçou aliviado.
- Vamos sim, Henrique. Tive medo de perder sua amizade.
- Mas tenho um pedido importante a fazer. Minha mulher recebeu uma ameaça de uma antiga inimiga minha. Por favor, proteja ela. Chuchu e os outros saíram da hospedaria e elas estão sozinhas. Eu imploro.
- Não se preocupe, irei cuidar bem deles, Henri.
Seguiram para a mansão Aqueduto em velocidade de caravana e carroça atravessando as chuvas de primavera. Mas a medida que se aproximavam da casa de sir Artur ouviam estranhas histórias de possessão na mansão, morte de animais e gritos. O nobre ficou estava assustado e mandava recado para que padres viessem ver o que era. Já bem perto viram um grande grupo de pessoas bêbadas com tochas e armas na entrada da propriedade do lorde.
- O que está acontecendo aqui?
- Não sabe? Um demoniado tava matando nossos animais. Pegamo ele, maldito. Mas um padre tá com ele agora.
- Aqui na mansão?
- Sim senhor.
A irmã de sir Artur rezava de medo e alguns soldados armados se aproximaram da mansão junto do nobre e de Henrique, enquanto o resto se juntaria aos outros soldados do feudo para manter os aldeões afastados. Em um dos galpões ouviam-se gritos de dor e de ódio, pareciam uivos. Meu Deus, que não seja Marco?
§§§
Marco Cume
Abre os olhos e vê a alva neve caindo sobre as grandes pedras, não sente frio nem dor, mas o frio de gelo entre os dedos e molhando os pelos de sua pata. Em sua lembrança as pedras eram diferentes, mais opacas, mas agora estava iluminada pela luz. Percebe diversos aromas, antigo odor de algo familiar, mas não se lembra do que era. Vaga sem rumo até sentir o rastro de pessoas, comida, lã e couro. Estava com fome. Aproxima-se agachado e vê quatro homens andando em silencio, eles carregavam fogo e estavam suados. Seu pelo se eriça e seu coração bate com mais força no instante do ataque. Saiu da escuridão e mordeu a perna de um homem, os outros correram. Ele se debatia, mas não conseguia se soltar. Avançou para o seu pescoço quebrando com apenas uma mordida. Sentiu o gosto de sangue e medo, viu o líquido manchando a neve e esquentando seu focinho. Depois que comeu se escondeu para dormir.
Acordou e era noite. Ouve um uivo distante, um chamado que o acometeu. Segue o grito passando por colinas baixas, estradas humanas, plantações e alguns bosques. Em um campo cinzento sentiu o cheiro de outros lobos, viu que eles se aproximaram e o cercaram. Mostravam as presas, fez o mesmo, sentia raiva e medo. Um o empurrando pelos flancos e mordeu sua face, respondeu o atacando e rasgou seu focinho castanho. Rosnou e lutaram mais, mas Marco era mais forte e os outros reconheceram isso. Venceu quando o adversário abaixou a cabeça e as orelhas em gemidos de submissão. Eles o seguiram em caças e descansos. Instintivamente conhecia cada lobo, suas forças e medos, seu modo de pisar e o som de seus ganidos, eles obedeciam a seus pequenos gestos e rosnados. Não estava mais só.
Vagavam pela eterna noite escura até que surgiu o alvorecer de uma imensa lua crescente. Uivou como nunca antes emocionado com a mãe do céu e da noite, sua senhora. Chorou de emoção e os outros também a reverenciaram com uma rainha. Sentiu cheiro de pessoas e o sabor de seu sangue seria seu presente para ela. Chegaram às cercanias de uma pequena vila com pequenas tocas de madeira e uma gruta de pedra onde os homens se concentravam. Uivaram e o medo dos homens foi exalado para o seu prazer. Madeira impedia que entrassem nessa gruta, mas ele era forte e saltou sobre ela até a arrebentar. Os homens gritaram, sentiu cheiro de fumaça, cera e uva, mas o pavor era o que mais impregnava. Atacaram todos, matando filhotes, adultos, velhos e os animais escravos. Lobos arrastavam corpos, alguns levavam infantes ainda chorando para poder comê-las. Feras arrancavam braços e puxavam vísceras, presas corriam. Grito e fúria, rosnados e choro, um massacre em nome da mãe Lua e de seu poder ancestral. No final, após todas as casas estarem abertas e dezenas de pessoas mortas ou agonizantes, quando poças sangrentas manchavam o chão enlameado, percebeu que ainda restava um homem.
- Vão embora feras do inferno! Voltem para sua morada ao lado de Satanás! - Ele gritava em sua íngua, percebeu que a conhecia.
Uivou mais alto que os gritos do homem e correu em sua direção para matá-lo. Pula e agarra seu pescoço, começa a morder profundamente seu rosto, mas o sangue dele fervia em sua boca queimando-o, afastou-se. Uiva de raiva e se viu sobre suas duas patas, com mãos e garras agarrou o pescoço do homem as lágrimas.
- Demônio!
Viu no reflexo de seus olhos que não era um lobo, mas um homem-fera. Não o homem fraco que se perdeu na floresta e tinha medo do demônio, mas sim uma fera abençoada pela Lua e pelo Gamo. Arrancou a cabeça do pároco com suas fortes garras e deu para seus irmãos. Uivou de emoção e riscou sua face com o sangue a marca de sua bestialidade.
Acordou sob uma árvore e viu a dourada luz do sol atravessar seus olhos. Estava diante de um lago repleto de juncos e com as margens cobertas por grandes árvores, sentia o sangue seco em seu rosto. Olhou suas pernas humanas pela primeira vez em tempos. Ouviu ao longe alguém gritando, a voz ficava mais alta até que conseguiu enxergar um homem sobre uma canoa.
- Cê tá bem, sinhô? Quê que aconteceu? Cadê as suas roupa? Te machucaram, foi?
Não conseguiu responder, pois não se lembrava das palavras. O homem então se aproximou, sentiu o cheiro de algo bom, parecia peixe.
- Tá com fome, né?
Ele lhe deu um pescado que foi devorado mesmo cru. Mas queria ainda mais, queria tudo. Esperou o homem se aproximar e o pegou desprevenido batendo sua cabeça na lateral de seu pequeno barco. Pegou os peixes e começou a comê-los, depois vestiu os trajes apertados do pescador e andou pelos juncos a procura de algum lugar seguro. Seguiu um córrego até encontrar outro lago atrás de um palácio onde pessoas entravam e saiam carregando coisas. Era próximo de um bosque onde encontrou um grande freixo, decidiu descansar.
Acordou com o brilho da fina lua entre nuvens, seu corpo tremeu, sua raiva aumentou junto com seus sentidos. Havia garras amareladas em suas mãos quando tocou a casca da árvore sagrada e andou pisando no peito de seus pés. Riscou o desenho da lua e deixou marcas de garras. Seguiu seus sentidos andando pela clara noite para seus olhos bestiais. Ao longe ouviu um som de cavalos vindo pela estrada que passava pelo bosque. Correu na direção de suas presas com suas garras enfiadas na terra e a respiração arfante. Pulou sobre o primeiro homem derrubando-o e agarrando seu pescoço com a boca, o arrasta até a floresta onde quebra sua coluna. Ele grita, mas não pode mais se mexer. Os outros cavaleiros param e tiram suas armas gritando. Tentam ver, mas não conseguiam enxergar sob a luz da fraca tocha aos olhos humanos. Ataca o cavalo de um que empina e derruba o cavaleiro que é jogado no bosque, mata-o com um rasgo em sua garganta. Grito e latidos se aproximavam, vê um cavaleiro ao longe levantando uma tocha, pula sobre ele ouvindo os latidos dos cães e rasga seu braço arrancando do corpo. Os animais o atacam tentando mordê-lo, mas ele o espanta com sua vontade de senhor de matilha, eles seriam seus aliados. Os cães mordem os cavalos dos homens os derrubando e os matando. Ouve um cavalgar rápido e alguém o acerta com uma lança fazendo-o cair no chão e rosnar. Tentou correr, mas sua perna estava ferida. Ouve zumbidos e flechas são cravadas em suas costas.
Uma dor explode em seu corpo fazendo despertar, mas de olhos abertos enxerga apenas a escuridão. Sente a ferida aberta escorrendo o líquido quente e o pouso de insetos. Estava amarrado, ouve sinos e gritos enfurecidos não muito longe. Querem me matar! Uma figura vestida de negro com grosso capuz e carregando uma tocha aparece por uma porta de madeira.
- Logo chegará o inquisidor de Banho que te julgará.
Não conseguiu se soltar das correntes e restou esperar pelo tal padre. Desmaiou e acordou novamente com a porta se abrindo e monges encapuzados surgiram, agora acompanhados do tal padre de túnica branca e vermelha sob uma grossa capa cinza.
- Vamos acabar logo com isso, o senhor Silvério, bispo de Banho, me enviou para o julgamento e condenação. Sabe falar, animal?
- Vai se fuder!
O padre riu da resposta e prosseguiu com uma ladainha em língua antiga. Ele o interrompeu.
- Vai me matar de tédio? Qual o seu nome?
Os monges seguraram seus braços e pernas e o arrastaram para o lado de fora do casebre. Dezenas de camponeses e alguns nobres seguravam tochas e gritavam por morte em nome de Deus. Tentou lutar, mas eles o espancaram. Foi arrastado até uma pilha de madeira seca com uma cruz de madeira onde seria queimado vivo. Em fúria gritou, mas o brado foi se tornando um uivo, cães se juntaram com seus latidos e as pessoas sentiram medo. Mais um soco no estômago e mergulha no universo de dor e névoa.
- Qual o seu nome, animal?
Olhou na cara do padre sem responder. Ele perguntou novamente, sem obter resposta. Com raiva estapeou a sua cara e ordenou:
- Diga o seu nome, escória dos infernos!
Marco cuspiu em seu rosto e levou outro soco.
- Não preciso saber o seu nome, pois já está morto! Condeno-te a sangrar cada gota de sangue que derramou e que se purifique no fogo santo da pira do Santo Sacrifício. Sentirá um gostinho do inferno. Mas antes irei te fazer cantar!
Marco viu a satisfação do padre quando ele pegou um alicate e se aproximou.
- Segure ele bem firme.
Tentou lutar, mas os braços dos monges eram como barras de ferro. O padre arrancou uma das unhas e um pedaço da carne de seu dedo. Gritou muito, era uma dor diferente, mais aguda, fazia sua cabeça tinir sem pensamento algum.
- É servo de Satã?
- Não!
Com raiva o homem arranca duas unhas e pergunta gritando:
- É um servo de Satã, fera pecaminosa?
- Não, não sou!
O padre arrancou o resto das unhas dele.
- Tragam o chicote.
Os monges o colocaram ajoelhado e sentiu cortes rasgando sua carne.
- Admita que serve o demônio! Admita que bebe sangue humano a sua homenagem! - Falava enquanto o açoitava violentamente.
- Admita que adora Satanás e que come a carne de suas vítimas!
E mais e mais chicotadas o flagelavam, ele gemia e urrava. A dor alucinante o fazia gritar como um louco, não iria aguentar mais.
- Sim! Sirvo ao demônio!
- Repita miserável!
- Pare! - Alguém gritou de súbito.
Caiu no chão babando sangue. O padre se afasta, mas não entende o que está acontecendo, mal conseguia enxergar. Até que reconhece Henrique. Lembrou-se de cada encontro que tiveram e de que foi o seu rosto a última imagem a ver quando ainda era o caçador. Por causa dele será um homem melhor, estava livre, era uma besta em contato direto com o Gamo.
- Ainda não terminei com ele, soldado!
Henrique empurrou os monges e quebrou a corrente com sua espada.
- Corre Marco!
Marco, é este o meu nome!
Correu o mais rápido que podia seguindo apenas seus extintos. Ouvia um uivo crescendo em seu peito e quando estava encima da colina gritou sendo respondido por todos os lobos e cães da região. Depois se embrenhou no mato a procura de seu santuário, a procura do uivo que o chamava em suas entranhas. Continuou correndo atravessando névoas e passando por diferentes florestas. Em algumas delas voltava a ser o lobo e em outras o Marco-homem. Não tinha noção de tempo, nem de lugar e nem mesmo de quem era. Apenas seguia guiado pelo uivo que o chamava, invocava. Para diante de um velho freixo de cascas com ranhuras acinzentadas e cachos em flores amarelas. A lua brilhava fina iluminando as marcas de garras na árvore. Tocou e sentiu um poder nelas, era magia e estava em algum lugar sagrado. Ajoelhou-se e ouviu a voz que a tanto esperava.
- Bem-vindo a sua casa!
Viu se aproximando o grande ser meio homem meio cervo, com o corpo coberto de símbolos estranhos, alguns deles presente na árvore,. Carregava sua harpa e sua lança. De seus pelos saiam às névoas místicas e seus olhos brilhavam o mais âmbar das luzes. Seus cascos prateados batiam forte no chão fazendo a terra tremer e os animais e plantas se calarem. Eram apenas os dois agora, um deus e um servo.
- As garras te representam, Marco. Representa o homem, o céu e a terra ligados. É um símbolo dos Filhos da Alcateia, os lobisomens. E a Lua Crescente será seu guia
Era um homem e um lobo. Via as garras nas mãos ensanguentadas como ossos brancos, os pelos que crescia no rosto e peito, sentia o cheiro de mil substâncias e a sede de sangue. Olhou para o Gamo e ele era soberano, a floresta parecia recuar com sua glória e Marco sentiu de dentro de seu peito um temor e uma admiração terrível.
- Sou aquele a quem deve orar por direção e conforto. Aquele que guia seres como você e que lhes ensina suas artes místicas secretas. O primeiro de todos e o ultimo. Sou O Cervo.
Marco ajoelhou-se de imediato contemplando-o.
- Nasceu sobre o signo da Lua Crescente e ela guiará sua jornada. É também um Guia e como tal está próximo do véu que separa os vários mundos. Sob a Lua do segundo auspício e apenas por ela conseguirá falar comigo, ver e viver como um lobo-profeta. Ela lhe mostrará mais verdades que queira saber, mas também lugares inacessíveis a outros, pois nenhuma barreira não poderá transpor. Você, um Filho da Alcateia da tribo dos Guerreiros Justos, de uma linhagem tão antiga quanto à ilha. Carrega consigo os dons de antigos bardos e troncanciões, da antiga magia e a ligação com o povo fada. Tribo de magia e sangrentas lutas. Tem amor e ódio em excesso, fidelidade e brutalidade em demasia, isso será sua sina e sua força. E eu, Gamo, serei o seu guia.
Era um filho da alcateia, um guerreiro justo de sangue antigo e Guia, mas guia de quem? Era do sangue dos antigos verdes, sangue que tanto odiou por o culparem pela morte de sua mãe. Estava confuso.
- Leve o filho de Ilhasanta de volta para seu povo.
Ele foi embora, mas os símbolos ficaram no grande freixo. Na floresta encontrou seu caldeirão sobre uma fogueira perfumada e mais do líquido azulado. Manchou seu rosto e sentiu uma força em seu peito crescente, boa, que completava o que faltava. Um pedaço de alma que voltava e seu peito na hora de esclarecimento e bem ao fundo, distante, tão distante como o outro mundo ouve um uivo. Olha para o lado e um mar de brumas o cobre por completo formando o véu entre este mundo e permitindo que o uivo ficasse cada vez mais forte, alto e palpável. E longe entra as árvores vê saindo da névoa o focinho e as patas negras de um cão lupino e corre na direção de Marco. Rosnam, se mordem e toca seu rosto com seu focinho negro, estava novamente completo junto de Besta.
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