Capítulo 8
Por um minuto ou dois a chuva diminuiu mas então retornou com força, dessa vez a intensidade era ainda maior que a interior. De dentro da pensão era possível ouvir o resultado do impacto das gotas contra o chão e o telhado. Dulce estava inexpressiva. Sua tristeza era enorme e visível, mas não estava chorando como antes. Não porque a dor havia passado, mas porque chorar não resolveria nada. Taís pelo contrário ainda emitia algumas lágrimas de vez em quando.
Todas as pessoas próximas à ela tinham consciência da situação que havia entre eles, sempre brigavam. Mas Dulce aturava o máximo que podia o "encosto", forma com a qual ela o chamava vez ou outra. Seus olhos baixos denunciavam que o encosto não existia mais, apesar de ainda ocupar uma considerável parte do piso da sala, e ter manchado o tão querido carpete que ela gostava de apresentar aos hóspedes.
Ela piscou algumas vezes saindo do transe das memórias e focando na sua frente, o homem que se identificou como detetive já começava a encarar minuciosamente o corpo.
Santos levantou o pulso para poder olhar as horas no relógio.
03:40.
Estamos a pelo menos dez minutos aqui embaixo e isso quer dizer que Taís encontrou o corpo por volta de 03:30. Fui para o meu quarto lá para 23:25, então o crime ocorreu depois disso.
O sangue já havia parado de sair e agora a mancha já estava escura e seca. Santos observou as feridas com calma. Eram três perfurações presentes, duas na barriga e uma no peito. As da barriga eram próximas o suficiente para ele pensar que foram feitas em sequência. Provavelmente segurando o objeto, seja qual fosse, com a mão fechada e a parte cortante da lâmina apontada pra baixo.
Santos ligou a lanterna do celular e examinou as aberturas, não pareciam ser feitas de baixo pra cima. Apesar disso, não tinha como chegar ao fundo para saber o tamanho da lâmina pois a carne voltou a se pressionar normalmente, e tentar abrir a ferida poderia comprometer a cena e perder alguma evidência importante para a perícia. Ele teria que se virar com aquilo no momento.
Bem, eu nunca achei que ia ser fácil mesmo. Vamos supor que tenha sido usada uma faca.
Em seguida examinou a ferida no peito, logo em cima do coração.
Acredito que tenha sido a última.
Baseado em sua experiência, Santos supôs a partir do que via qual provavelmente era a pista principal daquele assassinato, a que indicava a parte mais importante do crime, o motivo.
Com essa suspeita já formada ele olhou de relance para os hóspedes que se encontravam alguns passos logo atrás e se perguntou quem entre eles teria motivo para fazer isso. Em seguida se inclinou analisando outras parte do corpo na procura de mais alguma outra ferida, mas não encontrou. Por fim se levantou ainda encarando o corpo.
Ele sabia que estava sendo vigiado e seus movimentos estavam sendo observados por olhos curiosos, duvidosos e alguns até de ódio apenas por ele ser um policial. E ele sabia quais os donos de cada tipo de olhar e que se quisesse sair vivo dali, deveria manter uma distância considerável de certos hóspedes.
Santos caminhou até a porta de saída puxando a maçaneta. Trancada. Seus olhos foram até as janelas dos dois lados da porta. Também fechadas.
- Tudo bem – ele retornou para perto do corpo. Dulce se levantou ansiosa em ouvir o que o homem teria a dizer. – Agora vamos conversar.
Um burburinho se estendeu entre os outros hóspedes que ainda estavam no saguão, aos poucos partilhavam suas suposições a cerca do que tinha acontecido e do que viria a seguir.
- Um interrogatório? - questionou Dulce.
- Exatamente, com todos vocês – disse aumentando o tom de voz para que os de trás conseguissem escutar. – Ninguém sai dessa sala, e muito menos da pensão. Uma pessoa acabou de ser assassinada, alguém que está aqui dentro fez isso, e vamos descobrir quem foi.
- Não pode nos acusar! – gritou Lucas. – Não tem nenhuma prova contra nós.
- É o que vamos descobrir – Santos respondeu.
- Quem pode nos garantir que você não é o assassino?
- Ninguém. Mas eu sou o policial aqui, não é de mim que você deveria duvidar.
- E onde está seu distintivo?
Santos colocou a mão no bolso da calça e retirou o objeto prata reluzente e circulado por couro preto. Ele levantou a mão o deixando bem visível para todos.
Lucas então girou a cabeça automaticamente para o lado em direção a mulher que o havia repreendido a minutos atrás. Vestia uma camisola em forma de vestido cor bege e, por cima disso, uma pequena blusinha de bolsos um pouco mais escura. Ela devolveu o olhar de desconfiança.
Em seguida ele olhou de soslaio para os homem atrás de si. Um era o que ele diria ser "mal encarado", enquanto o outro demonstrava uma expressão mais leve no rosto. Lucas pensou por um instante se ele não parecia estar aproveitando toda essa confusão, e então voltou a cabeça para frente imediatamente ao ouvir o outro raspar a garganta.
- Não se preocupe senhor... – Santos começou, mas fez uma pausa esperando que a frase fosse completada.
- Troduster – ele respondeu cruzando os braços. – Lucas Troduster.
- Pois bem senhor Troduster, se o senhor for inocente, não tem problema nenhum em lhe fazer algumas perguntas não é mesmo?
Ele hesitou por um instante.
- Não, não tem – respondeu dando de ombros.
- Primeiro, vou avisar do incidente para que os responsáveis venham buscar o corpo o mais rápido possível, depois conversamos.
Ele tirou seu celular do bolso e digitou o número da polícia. Do lado de fora a chuva não dava trégua, às vezes parecia que acabariam derrubando o telhado tamanho era o barulho que chegava aos ouvidos. Os pingos d'água não acertavam mais o chão, mas sim a água. Corredeiras dela haviam se formado na entrada na pensão, e por toda a estrada. Muita água assim só tinha um mesmo destino: o rio. Esse barulho, parecido ao que é feito quando se chacoalha a água na boca, era o único que interrompia o silêncio do outro lado da linha de chamada, até que depois de alguns toques alguém respondeu.
Uma voz feminina disse uma frase totalmente no automático, consequência do hábito, então Santos lhe informou do ocorrido e na sequência o endereço que ela lhe perguntou. Apesar da pensão não possuir um nome, ele tentou explicar a localização como pôde, da forma que se lembrava.
- É, isso. Fica entre o município e a capital. Se você vier do município, você vai passar por uma ponte de madeira. A pensão fica alguns minutos depois dela.
A chamada estava quase no fim e a atendente ainda fazia perguntas quando a linha ficou muda e a ligação caiu. Santos ainda disse alguns "Alô?" esperando alguma resposta mas por fim afastou o telefone para frente do rosto encarando a tela do mesmo, o sinal tinha sumido. Ele tentou buscar rede mas não obteve sucesso. Sem esperanças de que voltasse, ele guardou o telefone no bolso. Ainda tinha um trabalho a fazer e, de mais a mais, já tinha dado a localização do lugar para a atendente.
Ele se virou e percebeu, dessa vez com total clareza, que ele tinha passado a ser o foco da atenção. Todos o observavam atentos o seguindo com o olhar, esperando seu próximo movimento, analisando sua próxima fala.
- Todos para a cozinha – anunciou. – Vocês vão aguardar lá dentro até que eu chame seu nome para conversármos – eles olharam desconfiados uns para os outros mas logo acataram a ordem e seguiram sem muita reclamação. Mas, como toda regra tem uma exceção, obviamente Lucas estava reclamando de alguma coisa, mas Santos ficou aliviado com o fato de que o outro já estava longe o suficiente para não conseguir escutá-lo.
- Ei moça! – chamou, Taís e André se viraram rapidamente para trás.
- É Taís – ela corrigiu.
- Isso mesmo, tinha me esquecido. Taís, vamos começar com você, já que foi quem encontrou o corpo.
André ainda estava abraçando a namorada e não parecia querer largá-la. Eles começaram a caminhar na direção de Santos.
- André – Santos falou. André levantou os olhos. – Você não pode ficar. Só ela. A conversa é em particular.
- Não vou deixar ela sozinha aqui com você – ele rebateu.
Santos recebeu a acusação com uma certa decepção. A horas atrás estavam conversando, Santos era um gênio para ele e agora a confiança tinha se dissipado por completo. Os olhos de André demonstravam dúvida, mas Santos relevou o fato já que o rapaz tinha motivos para tal sentimento.
- Tudo bem – Santos tentou acalmá-lo. Ele entendia que com toda essa situação, André estava completamente na defensiva. – Só vamos conversar. É necessário.
- Tudo bem André – Taís saiu de debaixo do braço dele. Ele a encarou assustado. – Eu vou. Temos que fazer isso pra saber quem matou Inácio.
- Você quer ficar aqui com ele?
- Não é questão de querer ficar aqui com ele ou ir com você. Nós temos que descobrir que matou Inácio, você não acha?
- Não vai demorar muito – Santos interrompeu ganhando a atenção dele. – Porém a conversa precisa ser em particular.
- Não sei se você deveria – ele insistiu novamente.
- Já disse, está tudo bem. Vá logo para a cozinha, daqui a pouco nos encontramos.
Ainda relutante, André soltou as mãos de Taís e seguiu para o cômodo já repleto de várias outras pessoas.
- Onde está Taís? – Dulce perguntou assim que ele entrou.
- Com o policial. Ele queria conversar com ela primeiro, já que foi quem encontrou o corpo.
- Ah, sim.
André se acomodou encostando em uma bancada perto do tanque de lavar louça logo após Suly e Lucas. Nessa mesma bancada repleta de utensílios de cozinha e de frente para a porta de entrada, estava Dulce de pé com as mãos no rosto encarando o piso. André ficou mais próximo dela e observou que do lado direito deles os irmãos Lima estavam encostados em outra bancada ao lado do fogão, e no meio de tudo estava a mesa de centro da cozinha que era grande e cobria quase todo o espaço. André temia que eles tentassem alguma coisa com a presença de Santos ali, já que agora eles também estavam em perigo.
A mesa poderia separá-los fisicamente mas não impedia os olhares afiados e acusatórios que atravessavam o espaço em todas as direções. A dúvida sobre quem era o assassino era algo quase palpável e a tensão da situação parecia preencher todo o cômodo tomando o lugar que antes pertencia ao oxigênio.
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