Capítulo 3
A luz alaranjada emitida pela solitária lâmpada conseguia, sem muito esforço, iluminar o cômodo no qual estava. As gotas da chuva deslizavam pela janela lateral em filetes que mais se pareciam com mini-cachoeiras correndo para o mesmo destino.
Suly caminhou até uma pequena mesa sob a qual deixou sua bolsa e seus brincos de esmeralda. Eram valiosos demais e, mesmo que não precisasse, preferia carregá-los para onde fosse toda vez que se retirava de casa. Não confiava em nenhum dos empregados, por mais gentis que parecessem ser. De forma alguma deixaria aquilo debaixo dos olhos de qualquer um que não fosse os de si mesma. Suly retirou os anéis de ouro, recolheu todas as jóias e as guardou no fundo da bolsa na qual estavam vários outros adereços parecidos. Esses porém, bijuterias baratas.
Ao pé da cama, ainda de pé e vestida com seu casaco de pele, sua visão foi roubada pela própria sombra projetada na parede. Era gorda, muito gorda. De certa forma, até mesmo deformada pelas dobras das vestido. Seus olhos estavam grudados na imagem.
Uma mulher desse porte jamais conquistaria um bom casamento.
Casamento.
Essa era a palavra da qual não deveria se lembrar. Mas se lembrou e então lembranças e memórias invadiram sua mente como em um tsunami. O que ouviu, o que sentiu ao ouvir. A noites mal dormidas, o desespero, a total falta de esperança... O medo. A realidade anterior que era terrível. Seus olhos marejaram e impulsivamente arrancou o casaco, se livrando dele como se o mesmo estivesse pegando fogo. A peça foi arremeçada agressivamente para cima do móvel e, se dobroando sob si mesma, escorregou pelo lençol sendo levada pela inércia em direção ao chão. Então passou a ser uma figura mais magra que estava desenhada pela sombra. Qualquer um diria se tratar de alguém doente de tão magra. Uma figura esguia. Mas aquele era o padrão, o qual era considerado bonito. Ainda mais para pessoas que vivem sobre tanta exposição.
Ela vestia apenas uma blusa fina e cor de pele, de mangas longas e bolsos na altura da cintura. Suly descançou os braços deixando os cair ao lado do corpo e então sua mão direita esbarrou em uma superfície um pouco mais rígida atraindo sua atenção. Ela enfiou a mão no bolso e retirou o objeto, era uma foto sua no set de uma das novelas mais conhecidas que havia feito. Ao seu lado na imagem estava aquela que fez o papel de sua irmã na trama, e de certa forma não só nas telas pois a amizade se estendeu para o cotidiano após o término das filmagens.
Um barulho no andar de baixo a retirou das memórias boas e então ela recolocou a foto no bolso e voltou a atenção para si. Assim que ajeitou sua bolsa debaixo da cama, gritos e palavrões soaram a distância. Vinham do andar de baixo. Devagar, ela caminhou até a porta sem saber se a iria abrir. A curiosidade era muita para saber do que estava acontecendo. Antes porém que tomasse qualquer decisão, passos pesados resoaram pelo corredor, uma voz invadiu o silêncio do segundo andar e uma nota mental foi proferida. Sem perder tempo, suas pálidas e ágeis mãos se movimentaram até a chave trancando a porta decididamente. Depois do que houve, um pouco de cuidado era essencial.
O acontecimento acabou por refrescar sua memória.
Do lado de fora a chuva espalhava seu barulho natural e do lado de dentro do carro Suly era acompanhada por uma música clássica de sua orquestra favorita, o volume do rádio denunciava esse favoritismo. Sua condição era de cuidado extremo visto que mal conseguia enxergar direito por causa da chuva, porém a possibilidade de bater com o carro não a impediu de desviar sua atenção de forma prioritária para a mecha de seu cabelo amarelo como o sol que estava fora do lugar. Rapidamente retirou a mão do volante e o posicionou debaixo do chapéu que estava usando. Pronto.
Estava perfeito novamente.
Uma espécie de pensão apareceu em sua frente quando a luz dos faróis atingiram a porta de entrada. A varanda era de madeira e já se apresentava desgastada, o lugar não era de primeira linha, mas isso não era impedimento, o objetivo era outro.
Se não for uma pensão, pelo menos devem poder me indicar a mais próxima daqui. Essa estrada está um caos.
Na recepção, uma senhora gentiu a atendeu com um sorriso aberto.
- Boa noite - cumprimentou.
- Boa noite. Deseja um quarto? - perguntou. Ultimamente as pessoas só adentraram ao local para pedir informação.
- Sim, por favor.
- É uma mulher chique – comentou a atendente. – Deve querer o melhor quarto do estabelecimento, não é mesmo?
- Sim, por favor - respondeu educadamente mesmo imaginando que não deveria haver muita diferença na qualidade.
- Muito chique mesmo - uma voz masculina disse. Suly olhou de soslaio e viu um homem velho e barbudo se levantar se escorando na mesa. - Cheia de anéis de ouro e pedras...
Ele se aproximou esticando o braço para tentar tocá-los mas Suly deu um passo para trás afastando a mão do homem de perto de seu rosto.
- Uhnn - resmungou. - O que foi? Não gostou de mim? Só porque sou pobre?
- Ser pobre não torna ninguém mal educado ou tira sua dignidade, mas percebo que você é uma exceção. - respondeu depois de um tempo. Em seguida se virou para a senhorinha. - Minha chave, por favor?
- Quarto número cinco, senhora. No fim do corredor.
Antes que a mão esquerda de Suly alcanssasse o objeto cor de ferrugem, um braço gordo e peludo surgiu pelo lado direito se antecipando. O homem se afastou segurando o objeto na altura do olho.
- Não vai se hospedar no meu estabelecimento se não me pedir desculpas.
Suly o encarou cerrando os punhos mas antes que dissesse qualquer coisa, a mulher saiu de trás do balcão o empurrando e tomando a chave da mão dele.
- Nada aqui pertence a você. - disse, aumentando o tom de voz. - Vá embora logo, quero você longe daqui antes de fechar!
- Você acha que pode me expulsar assim? - ele inspirou deixando sua postura intimidadora mais clara, a atendente afastou-se assustada.
- Ela disse para você sair - Suly respondeu ao entrar na frente do homem, ficando entre ele e a mulher.
- Fique quieta que a conversa não é com você - falou. O bafo da cerveja foi arremessado em direção ao rosto dela que remexeu o nariz e afastou a cabeça por um instante enquanto escutava.
- Você não manda aqui - respondeu.
- Precisa aprender a ficar quieta, mulher.
- Está me ameaçando? - Suly sussurou se aproximando, ela era alguns centímetros menor do que ele. O homem não se moveu. O silêncio tomou conta do lugar enquanto a chuva caía lá fora.
Suly então esticou a mão para dentro de sua bolsa e abilmente retirou um canivete sem que ele percebesse. Assim que ele ameaçou abrir a boca, a ponta fina e afiada do objeto foi pressionada contra sua barriga. Logo acima do umbigo. Seus olhos correram para baixo encarando a origem da pontada que havia sentido. A pressão era constante e a mão que parecia ser fina e frágil até para se dar um tapa, não tremia nem mesmo por um instante. Estava firme e decidia a proteger a senhorinha.
Em meios ao pensamentos atordoados pela bebida, quando ele começou a pensar no que fazer ou dizer a seguir, sentiu um calafrio percorrer pelo corpo, a pressão estava aumentando.
Suly continuou empurrando a ponta do canivete e Inácio percebeu que não demoraria para perfurá-lo.
- Da próxima vez, escute o que a dona... - fez uma pausa e se virou para a senhorinha esperando uma complementação.
- Dulcinéia, mas pode me chamar de Dulce - disse a mulher, um pouco assustada.
- ... o que a dona Dulce diz. E não me ameace novamente, o último homem que fez isso não acabou nada bem.
Suly não conseguiu definir com clareza se era a bebida afetando o tempo de resposta do cérebro ou se fora o medo que o travou, mas ele não respondeu. Sua boca nem mesmo se mexia.
O canivete então foi fechado e guardado novamente. Se virando para Dulce, ela pegou sua chave e saiu em direção à escada para o segundo andar, suas mãos tremiam, e ela não sabia como conseguiu aguentar aquilo por tanto tempo.
- Mulher nenhuma me ameaça, você está ouvindo! - gritou o homem, mas não gerou nehum efeito de resposta. - Mulher nenhuma!
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