ESPECIAL SC #01 | VEINTICUATRO (Versão da Iliana)

I L I A N A

O que foi que eu fiz?

Meus pensamentos se perderam em um caleidoscópio desconfortável enquanto a dor no meu peito vinha em ondas intensas. Baixei a cabeça sobre o volante e tentei respirar fundo. Uma, duas, três vezes. O ar saiu entrecortado, raso, como se eu estivesse sendo asfixiada.

Trêmula, levei a mão direita até a minha garganta e pisquei; estava tudo bem, tinha que ficar. Mas eu não conseguia respirar. Meu corpo sufocou um soluço e eu fechei os olhos.

E de repente a minha mão pertencia a ele; o meu carro não era mais um carro, mas sim um quarto de hotel. O meu banco era uma parede. Eu não quero morrer, pensei, mas esse não era o meu maior desejo desde o que aconteceu? O que mudou? Eu não conseguia respirar. Não consigo respirar. Pisquei e vi pontos de cores na minha visão; rosa, azul, vermelho, preto, e de repente eu só conseguia pensar em seus olhos. Fui tomada por um medo irracional — tão real que me machucou.

Tive a sensação esmagadora de estar perdendo a consciência, no entanto eu estava bem acordada. Vi-me suplicando com o olhar e me senti ridícula por ter implorado para viver — como inconscientemente implorei durante muito tempo. Vi-o finalmente me soltando.

Meus lábios tremeram e tentei me acalmar. Era só uma crise. Preciso entrar na minha casa, disse uma voz bem no fundo da minha consciência, mas eu não conseguia ouvi-la. Duas lágrimas pesadas escorreram pelas minhas bochechas ao mesmo tempo e meus dedos vacilaram, finalmente soltando a minha traqueia.

Suspirei e consegui puxar o ar profundamente enquanto limpava o meu rosto. Estava na minha garagem, a casa inteira tomada em um silêncio sepulcral. Precisei conter a vontade de voltar ao Mondragón Hotel; Belladonna não iria querer falar comigo, não depois de tudo o que eu a disse.

Eu havia estragado tudo. Assim como estraguei meu casamento e a minha própria vida.

Levei a mão até a maçaneta do veículo e abri a porta. Uma lufada de ar frio e bem-vindo atingiu meu rosto febril, e só assim eu percebi o quanto eu estava quente. Fechei os olhos por um instante. Só um minutinho. Uma onda de náusea me atravessou e me fez estremecer. Respirei pela boca, tão tonta que estava com medo de me colocar de pé.

Estava tudo acabado.

Meu estômago revirou de maneira desconfortável e senti meu coração se acelerar mais uma vez. Perguntei-me se conseguiria fugir de novo — para onde? —, tudo para não contemplar a expectativa de ser encontrada por quem não deveria. Senti uma pontada forte na cabeça e tentei respirar. Estou bem, estou bem... Exceto que eu não estava, não sabia se um dia ficaria.

Eu odiava aquilo, a expectativa de passar o resto dos meus dias vivendo com medo de descobrirem que eu morava em Playa del Carmen. Às vezes pensava que era mais fácil simplesmente não viver.

Mais uma respiração pesada. Não, eu não podia fazer isso. Tudo o que fiz em Hollywood foi minha escolha e agora eu tinha de lidar com as consequências. Não podia fugir para sempre.

Você deixou acontecer.

Engoli a seco.

Foi tudo minha culpa.

Com as pernas trêmulas, me apoiei na porta do carro para finalmente deixar o veículo, tão tonta e enjoada que tive a péssima sensação de que passaria mal. Segurei o meu celular firmemente e olhei para a tela, minha visão tão turva que tive dificuldade em encontrar o nome de Belladonna.

Meu polegar hesitou por um instante. Merda. Merda. Eu não sabia o que fazer. Sabia que precisava ligar para Antero e alertá-lo a respeito do paparazzo para começarmos a nos mexer a fim de impedir que aquelas fotos chegassem à mídia, mas estava completamente paralisada. A única coisa em que conseguia pensar era que eu havia magoado Belladonna de um jeito que ela não merecia.

De um jeito imperdoável.

Mesmo que tivéssemos tido nossas desavenças no início, ela jamais havia usado minhas vulnerabilidades contra mim. Meu coração bateu mais forte, dolorosamente, quando pensei na expressão que ela tinha no rosto quando eu a deixei para trás. Minha mente caiu em um abismo de culpa, ódio, nojo de mim mesma. Belladonna, que sorria o tempo todo, dava pulinhos quando ficava animada, usava óculos de sol roxos e tinha as piores piadas do mundo. Eu causei sua dor. Belladonna com as lágrimas escorrendo pelo seu rosto, os olhos vermelhos e os lábios trêmulos. A única coisa que sabia fazer era machucar.

Pressionei seu nome. O celular chamou uma, duas, cinco vezes.

Vazio. De novo.

Ela não me atenderia. Ela me odiava. Eu me odiava.

Ergui a cabeça, respirei fundo e senti vontade de morrer.

Eu ainda tinha contatos, dinheiro e, em certo grau, influência, e talvez isso pudesse deter o fotógrafo — na verdade, eu tinha quase certeza de que sim. Por um breve momento, me permiti ser um pouco otimista. Seria bem pior se eu não tivesse visto; da forma como aconteceu, eu tinha tempo para negociar e me preparar.

Não perderia meu anonimato, só perderia Belladonna.

O problema era que o parecia demais.

Enxuguei as lágrimas e entrei na minha casa. Luzes acesas, pés descalços e TV ligada porque eu detestava o quanto a minha residência era silenciosa na maior parte do tempo. Sentei-me no sofá, enredei os dedos no meu cabelo, baixei a cabeça e senti vontade de gritar.

As minhas crises de ansiedade haviam melhorado um pouco ao longo do tempo. Antes, quando era casada com Dante, eu costumava me machucar de maneira inconsciente. Meus braços viviam cheios de arranhões e às vezes essas marcas se estendiam ao meu rosto também, principalmente no nariz, como uma forma de autopunição involuntária. A terapia e os remédios me ajudaram com isso, fazia alguns anos desde a última vez que aconteceu, porém naquele momento eu me vi com medo de regredir. Medo de desta vez ser intencional.

Não vou conseguir sozinha.

Olhei para a imagem turva na televisão e senti um pouco de suor frio escorrer pela minha testa. Respirei pela boca. A dor estava passando, no entanto eu ainda estava entorpecida e um pouco enjoada. Era a crise mais forte que eu tinha desde que...

Eu odiava pedir ajuda, mas estava paralisada.

Peguei o celular. Antonella atendeu no primeiro toque.

— Oi, bebê. Como você está?

Tranquei o maxilar para não começar a chorar.

— Ella — Minha voz tremeu de forma involuntária. — V-você pode vir aqui?

Ouvi a minha melhor amiga se levantar de supetão e o distinto barulho de alguns lápis caindo no chão. Fechei os olhos. Era claro que ela estava desenhando, eu era uma idiota.

— Não — Sacudi a cabeça. — Eu estou bem, pode ficar aí.

Eu era uma boa mentirosa, mas Sánchez me conhecia o bastante para saber quando eu estava fazendo isso. A espanhola bufou.

— Já era, Iliana. Chego em dez minutos e não tem nada que você pode fazer para me impedir. — Pausa. — Precisa que eu fique na linha?

Embora eu estivesse muito tentada a dizer que sim, neguei.

— Ok. Não faça nada que você vá se arrepender depois. Já tô chegando.

E desligou.

Olhei para o teto e desejei conseguir chorar mais, entretanto senti apenas vazio.

O vazio que eu sabia que vivia dentro de mim mesmo quando não deveria.

🍉🍉🍉

Antonella entrou na minha casa de supetão — eu havia me esquecido de trancar a porta — e um pouco esbaforida, tão sem ar que eu me perguntei se ela havia literalmente corrido. Ela olhou em todas as direções e, assim que me viu sentada no sofá, veio andando a passos rápidos e com os saltos altos fazendo um som alto no meu piso.

— Ah, Lia. O que aconteceu?

Não esbocei reação.

Ela estava usando um coque desleixado, camisa branca dobrada até os cotovelos e uma calça preta de alfaiataria. Ela jogou a bolsa em cima do sofá e se abaixou para ficar da minha altura, segurando minhas mãos geladas com delicadeza.

— Olha pra mim — pediu e eu obedeci. — O que aconteceu? Cadê a Bella, vocês não iam viajar pra Tulum?

Engoli a seco e desviei o olhar. A expressão de Antonella ficou mais séria.

— Ela fez alguma coisa com você? — Trincou o maxilar. — Te magoou, te machucou?

Abri a boca para responder que não, que eu que havia feito merda, mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Ella estava se levantando com as narinas infladas e uma expressão de ódio.

— Onde ela está? Você quer que eu moa ela na porrada? Eu sei que não tenho tamanho e nem peso, mas sou rápida por causa do futeb...

Eu não aguentei e comecei a rir. A ideia de Antonella batendo em Belladonna chegava a ser engraçada de tão absurda.

— Iliana! Eu tô falando sério.

Segurei-a pelo punho e a puxei para se sentar no meu colo. Ela bufou e fez bico.

— Você não vai moer ninguém na porrada, Antonella.

Sánchez franziu a testa e olhou atentamente para o meu rosto na tentativa de analisar a minha expressão. Com certeza viu os meus olhos inchados e o medo estampado no meu rosto, pois falou em seguida:

— Certeza?

Aquiesci.

— Fui eu. Eu a magoei.

Antonella inclinou a cabeça e saiu do meu colo para se sentar no sofá. Respirei fundo e me levantei, felizmente sem tremores. Ela era boa em me trazer de volta para a realidade.

E assim, andando de um lado para o outro, eu comecei a contar tudo, desde o que aconteceu em relação à Evie Lawson até a minha briga com Belladonna no hotel. Quando acabei, Antonella estava com um pequeno sorriso nos lábios.

— O que foi? — indaguei, me perguntando se ela havia prestado atenção em pelo menos 10% do que eu disse.

— Iliana, você gosta dela.

Pisquei, confusa. Minha cabeça estava latejando.

— É claro que eu gosto dela.

Minha melhor amiga balançou a cabeça.

— Não, não é isso que eu quero dizer e você sabe disso. Você gosta mesmo dela.

Abri a boca para retrucar, mas nada saiu. O sorriso dela se tornou tranquilizador e ela bateu no lugar ao lado dela do sofá.

— Você vai ficar tonta se não parar de andar de um lado pro outro. Anda, ficar nervosa não vai adiantar de nada agora. Não vai trazê-la de volta.

Dei um suspiro resignado e me deixei cair ao lado dela. Antonella prontamente me aninhou em seus braços e beijou a minha testa de maneira protetora, quase maternal, e eu afundei em seu cheiro doce e no seu abraço macio. Sempre pensei que ela tinha o toque muito suave, tão confortável que às vezes eu tinha vontade de morar em seus braços. Era fácil se sentir bem quando Antonella estava por perto, ela tinha uma aura de cura ao seu redor.

Apesar de ela aparentar ser maluca quando estava de férias, eu a conhecia como aquela pessoa tranquila que conversou comigo — uma desconhecida para ela — e me acalmou em um dos piores dias da minha vida. Uma das coisas que eu mais gostava era que ela realmente olhava para as pessoas. Minha melhor amiga era uma mulher sorridente, sempre engraçadinha demais, e fazia uma falta absurda quando estava longe.

Antonella colocou uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha e eu senti meus olhos arderem.

— Eu estou com medo — confessei em um sussurro, meu peito doeu. — Tanto medo.

Ela me apertou mais contra si, embora não soubesse exatamente sobre o que eu estava falando. Medo de como seria o dia seguinte, medo de ser encontrada, medo do que eu fiz.

Medo de quem eu me tornei.

— Eu sei, Lia.

Mas ela não sabia. Não tinha como saber.

Ouvi sua respiração por alguns segundos.

— Eu não queria ter agido assim — Ergui o olhar para encontrar o dela. Apesar de tentar disfarçar, ela estava com o maxilar cerrado e uma ruguinha de preocupação entre os olhos. — Não quero...

Não quero perder mais do que já perdi, mas me detive.

— Eu sei que não foi a sua intenção — Ela deu uma pausa curta. — E acho que a Bella sabe também. Dê um tempo a ela.

Quis dizer que eu não queria dar tempo nenhum, entretanto me mantive quieta. Ouvi os ponteiros do relógio se moverem. Tic tac, tic tac.

Eu não queria admitir, mas estava com medo de Belladonna ir embora no dia seguinte.

A voz suave de Antonella rompeu o silêncio.

— É tão ruim assim? — indagou num tom pensativo.

— O quê?

Ela hesitou por um momento.

— Descobrirem onde você está — falou e o meu coração afundou, engolido pelo medo. — Já faz oito anos desde que você fugiu. A mídia faria barulho por um tempo, acho, mas acredito que não duraria. Não é como se fosse recente.

Olhei para seus olhos castanho-claros e por um momento, não pela primeira vez durante todos aqueles anos de amizade, me senti tentada a despejar a verdade nela. Dizer que eu não temia a mídia ou a atenção, mas sim as consequências que viriam com isso. Temia as pessoas que poderiam chegar até mim caso vazasse que eu morava em Playa del Carmen e, principalmente, o que poderiam fazer comigo. Eu não queria que as pessoas e a imprensa descobrissem sobre isso, não tinha qualquer sede de vingança. A única coisa que eu queria era paz.

Uma paz impossível.

Mas eu conhecia a minha melhor amiga, portanto sabia que ela não seria capaz de deixar o que aconteceu comigo para lá.

— Não acho que seria tão rápido assim — respondi simplesmente.

Ela me olhou por um longo momento.

— Você nunca quis voltar?

Eu não sabia se era capaz de responder aquilo. Ela pareceu entender, pois assentiu.

Alguns minutos em silêncio.

— O que está pensando? — inquiri.

Antonella mordeu o lábio inferior em hesitação.

— Pode falar — insisti.

Ela deu um suspiro, como se estivesse tomando coragem para falar.

— Você já parou para pensar que talvez uma parte do seu inconsciente quer ser encontrada?

Senti um aperto no coração. Eu me lembrava de Belladonna dizendo algo parecido quando transamos pela primeira vez.

— Hmm...

— Não precisa me responder — Antonella se apressou em dizer. — Mas às vezes eu sinto que você sente falta de atuar. Eu sei que você teve seus motivos para ir embora e que você não se sente pronta para compartilhá-los comigo, é só que... O nome do hotel, você ter se envolvido com a Belladonna, que é uma jornalista. Antes disso, quando você era casada com Dante, até certo ponto você frequentava eventos com ele. Não é como se você não soubesse que a notícia poderia vazar em algum momento. Você não é ingênua.

Uma pausa.

— Eu não estou dizendo que você fez isso de propósito e nem tentando te culpar pelo que aconteceu na sua viagem, mas a nossa mente prega umas peças às vezes — Ela acariciou o meu cabelo. — Talvez no fundo você queira ser vista, ouvida, e suas ações estejam refletindo isso.

A cor sumiu do meu rosto. Antonella suspirou.

— Enfim, são só devaneios. Você quer que eu cozinhe alguma coisa para você jantar? Eu já comi, mas posso fazer algo sem botar fogo na sua cozinha. Já bebeu água depois que chegou?

Fiz que não com a cabeça. Ella se levantou rapidamente e voltou um minuto depois com um copo de água gelada. Entregou-me e me encarou por alguns segundos.

— Vou fazer macarrão com brócolis para você, tudo bem? Deixa que eu ligo para o Antero e explico a situação. Descanse um pouco, se quiser nós passamos a noite assistindo TV.

Abri a boca para protestar.

— Sim, vou dormir aqui — Deu de ombros. — Ou não dormir. Vai depender do que você quiser fazer. Depois eu roubo um dos seus pijamas.

Dei um risinho baixo e bebi um gole de água. Antonella me olhou de maneira atenta, como se ela quisesse me dizer alguma coisa. Deu um passinho para trás e pareceu tomar uma decisão.

— Lia?

— Hm?

Ela lambeu o lábio inferior.

— Você sabe que pode me contar tudo, não sabe? Você pode confiar em mim — Sua voz era quase um sussurro. — Eu não quero te forçar a nada, mas se um dia você quiser... Eu tô aqui. Nada nesse mundo me faria te amar menos.

Baixei os olhos, um pouco envergonhada.

Eu deveria contar, mas não conseguia.

— Eu também te amo, Ella. Obrigada.

Sánchez sorriu timidamente e se afastou para ir até a cozinha.

Tentando não pensar em tudo o que conversamos, me aconcheguei no sofá e fechei os olhos.

Eu a entendia.

Nada nesse mundo me faria amar menos Antonella Sánchez.

🍉🍉🍉

Passamos a noite enroladas no sofá, a sala de estar escura e a televisão ligada em Arquivo X. Antonella foi gentil o bastante para não me perguntar nada nas vezes em que eu inevitavelmente comecei a chorar; ela só me puxava para si e dizia que ia ficar tudo bem. Antero resolveria tudo, ninguém me encontraria.

Em algum momento, nós duas acabamos adormecendo.

Eu não estava mais em crise quando acordei. Forcei-me a comer alguma coisa e me olhei no espelho quando fui escovar os dentes; apesar de não estar mais enjoada e com dor no peito, me sentia estranhamente anestesiada, como se nada no dia anterior tivesse acontecido. Além disso, a crise havia cobrado seu preço no meu corpo. Meus membros estavam doloridos e bolsas arroxeadas pesavam sob meus olhos. Forcei um sorriso.

Era como se estivesse encarando uma estranha.

Tentei ligar para Belladonna, mais uma vez sem sucesso. Antero nos avisou que estava tentando descobrir se as fotos já haviam sido vendidas, mas tudo o que eu conseguia era pensar nela. Seus olhos. Ela indo embora magoada.

Eu a perdi e não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso.

O dia se arrastou. Eu queria me esconder e chorar, mas toda a água do meu corpo havia ido embora. Nuvens de chuva começaram a se formar no céu e eu as assisti irem e virem enquanto o mundo ficava um pouco mais cinzento. Ouvia Antonella falando em voz baixa com alguém da Lynster pelo telefone, mas ao mesmo tempo eu não a escutava.

Houve um trovão e meus olhos arderam. Não me encolhi, somente me perguntei se haveria algum furacão na Riviera Maya naquele ano.

Um relâmpago iluminou meus olhos como o flash de uma câmera. Se Belladonna estivesse no aeroporto, talvez seu voo atrasaria. Valeria a pena me expor ao mundo para ela, por ela?

Assisti as gotas se prenderem ao vidro da minha janela. Escorreram uma a uma como se o céu estivesse chorando, como se ele pudesse me sentir. Eu sentia falta de muita coisa. De dançar, de dar estrelinhas, de passear à noite, de ir a luaus, de quem eu era.

Um dia eu fui verão. Fui dourada, quente, feliz. Agora eu era a chuva. Com sorte, eu aprendi a dançar nela, mas sempre havia um raio para cortar o meu céu. Eu me assustava e tinha medo de tentar de novo.

Mas e se eu tentasse?

A voz de Antonella me tirou dos meus pensamentos.

— Lia.

Desencostei-me da janela e olhei para ela. Sabia que estava com uma expressão melancólica, mas eu não tinha mais forças para fingir.

Ela me entregou o celular e eu o olhei, confusa. Depois de meio segundo, finalmente entendi que se tratava de uma mensagem.

Era Belladonna perdida na Zona Urbana de Cancún e sem bateria, só para ajudar. Ela havia mandado um endereço e um "pelo amor de Deus, eu devia ter roubado o carregador". Franzi a testa.

— Vá atrás dela — Antonella disse com firmeza. — Não a deixe ir, mas se ela for, dê aquela corridinha brega no aeroporto. Juro que te defendo quando te chamarem de gay.

Meu coração disparou.

— Já falei que te amo? — perguntei.

Antonella deu um sorriso convencido.

— Não tanto quanto deveria. Anda, a menina vai morrer de frio.

Beijei seu rosto, peguei o meu casaco que estava no cabide — para Belladonna, não para mim — e desci até a garagem.

Rezei o caminho todo para ela me perdoar.

🍉🍉🍉

A chuva já estava forte quando eu a avistei.

Ela estava anormalmente quieta enquanto observava a rua. Vestia camisa e calça — ambas molhadas —, estava com sua bolsa da Chanel pendurada no ombro, uma mochila preta que não tinha nada a ver com o resto do seu look e com os óculos roxos enroscados sobre seu decote.

Decidi que se fosse lhe dar alguma joia um dia, seriam ametistas.

Buzinei para tirá-la de sua distração. Quando ergueu seus olhos, o olhar pairou sobre o meu carro e a placa, reconhecendo-o. Me reconhecendo. Ela hesitou e eu baixei o vidro enquanto um relâmpago a iluminava.

Seus lábios se abriram levemente em surpresa e seu queixo tremeu, talvez de frio ou de nervosismo. Uma pontada atingiu o meu coração quando percebi que ela parecia prestes a chorar. Sua expressão estava triste, quase resignada, enquanto ela me olhava como se eu tivesse matado uma parte sua que ela lutava para manter viva.

Eu me perguntei se eu conseguiria fazê-la ficar.

— Entre, Belladonna — Mantive a voz calma.

A jornalista titubeou um pouco, mas por fim abriu a porta para entrar atrás. Ouvi o som de sua mochila caindo de maneira descuidada sobre o assoalho e me encolhi ligeiramente. Permaneci com a mão no volante, respirando fundo, esperando, esperando...

— Eu trouxe um casaco para você — Tentei não deixar a minha voz denunciar a minha ansiedade. Inclinei-me, pegando a bebida que eu havia comprado para ela no caminho até lá — Acho que você não gosta de café, então trouxe um pouco de chocolate quente.

Ela estendeu a mão para pegar o copo da minha e nossos dedos se encostaram. Um pequeno arrepio tomou meu corpo. Ignorando-o, virei-me para frente mais uma vez e a observei sorver um pouco do líquido através do retrovisor.

— Eu pensei que Antonella viria — Belladonna disse depois de alguns goles.

Olhei para a chuva, inquieta.

— Eu estava por perto e ela me avisou — Uma mentira que fiz parecer ser verdade.

Ela nunca saberia que dirigi por quase uma hora apenas para buscá-la.

Belladonna murmurou alguma coisa em concordância e colocou o copo sobre o apoio. No segundo seguinte, ela estava vestindo o casaco por cima da roupa molhada. Tensa, mantive o olhar sobre a chuva.

Ela fechou os olhos durante alguns segundos. Tive medo de ela estar se lembrando da noite anterior.

— Podemos ir? — indaguei com urgência.

A loira fez que sim com a cabeça e eu dei a partida.

Passamos o caminho inteiro em silêncio. Eu dirigi devagar — apesar da minha mente estar a mil quilômetros por hora — por conta da tempestade que continuava a cair. Pensei em muitas formas de começar a me desculpar, mas a minha voz ficava travada, presa dentro da minha garganta, cada vez que eu sentia seu olhar sobre mim. E quando eu menos esperei, nosso tempo estava acabado.

Estávamos de volta a Playa del Carmen.

Mordi o lábio e, em vez de deixá-la no hotel, eu passei reto.

— Onde você pensa que está me levando? — Quebrou o silêncio.

Não respondi e continuei a dirigir.

— Iliana! — Sua voz veio mais alta, insistente.

Suspirei para ter coragem de falar.

— Estamos indo para a minha casa, Belladonna — murmurei pacientemente. — Precisamos conversar.

— Eu não quero conversar.

Ela levou alguns segundos para processar a informação.

— Iliana, me deixa no hotel — falou.

— Você não vai embora sem conversar comigo — Meu tom saiu um pouco mais desesperado. Eu torci para ela não perceber.

Belladonna bufou. Merda.

— Iliana, sério. Pare o carro.

Eu parei, mas já estávamos na minha casa.

— Pronto.

Alguns instantes de quietude. Meus olhos arderam.

— Faltou alguma coisa para me falar depois de ontem? — debochou. — Não? Chega, Iliana. É a minha vez de falar.

Tentei me manter impassível, sem conseguir olhar para ela. Peguei o controle que abria a garagem e o apertei, mas o portão não se moveu.

— Belladonna, eu...

Eu nem sabia como começar.

— Não. Agora você vai ouvir.

Ela pegou a mochila que não parecia pertencer a ela e a abriu. Pasma, eu a observei tirar todas as cópias das minhas fotos. Uma câmera, um celular, um notebook...

Senti a minha voz se perder.

— Tá vendo isso tudo? A sua Barbie imatura conseguiu. Enquanto você estava jogando todos os meus erros na minha cara e fazendo eu me sentir um lixo, eu resolvi tudo e ameacei o paparazzo para pegar as fotos. Tá tudo aí, pode olhar. Nem sei o que se passou pela sua cabeça pra me acusar de fazer aquilo. Eu não sou assim, Lia. Nunca fui.

Abri a boca para dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas Belladonna começou a falar mais rápido.

— Sabe o que isso me custou? A minha dignidade, já que eu literalmente precisei ameaçar o cara e fingir ter uma superficialidade que não tenho — Sua voz falhou. — Eu nunca, nunca faria nada disso com você. Não importa se eu ia ou não embora no mês que vem. Quantas vezes eu perguntei como você estava se sentindo? Eu te dei liberdade para isso, Lia. Você fingiu estar bem porque quis e eu não sou adivinha, não jogue essa responsabilidade em mim. O que você achou que eu fiz... Isso afetaria a sua vida pra sempre e eu tenho noção disso. Eu nunca quis te destruir, Iliana. Tudo o que eu queria era você.

Era. No passado.

E eu quis explicar para ela que eu errei e o motivo de eu ter errado. Quis dizer que estava com medo, que aquela não era eu, que não foi a minha intenção, mas no fundo eu sabia que estaria mentindo. Aquela era eu. A minha parte quebrada, que eu não gostava de mostrar. Que eu jogava bem no fundo da minha consciência e torcia para não aparecer.

Era a parte que fez Dante deixar de me amar.

A parte que me fazia acreditar que eu não merecia amor.

— Eu tenho meus defeitos e estou consciente deles, mas não sou uma pessoa horrível — continuou. — Eu nunca faria algo que você não quisesse. Pensei que essas semanas que passamos juntas te fariam entender isso, mas acho que eu estava errada.

Minha garganta doeu e eu desejei não chorar.

— Belladonna...

Ela tentou puxar a maçaneta do carro, sem sucesso porque estava travado. Em desespero, apertei o botão novamente para abrir o portão. Nada.

— Destrave a porta — pediu. — Eu vou embora.

Neguei com a cabeça.

— Não — Minha voz sufocou. — Escute o que eu tenho a dizer, por favor.

Eu queria que ela soubesse que eu estava implorando, mas quando tive coragem para olhar para seus olhos de novo, percebi que ela estava se esforçando para não chorar.

— Não é só você que está arriscando aqui, Iliana. Eu estou arriscando a minha carreira e Deus me livre se descobrirem que deixei passar o furo da década — Lágrimas escorreram pelo seu rosto e a culpa pesou mais ainda em meu peito. — Eu menti por você, roubei um paparazzo por você, passei por cima do meu orgulho por você... tudo por você. E sabe o que é pior? É pensar que provavelmente não faria isso por mais ninguém.

Por favor, eu pensei. Por favor, por favor...

— A droga dessa garagem não abre. Eu não queria... Eu...

Tentei inutilmente conter a minha vontade de chorar. Você é a única coisa boa que eu tive em muito tempo.

Por favor...

— A porta, Iliana.

Fechei os olhos e de repente eu não tinha forças. Eu não tinha mais forças para lutar, para chorar, para ficar. Estava condenada a sentir nojo de mim mesma e a morrer dia após dia em silêncio. A me sentir culpada por ter sido a responsável por fazer o sorriso em seu rosto sumir.

Eu estragava tudo o que eu tocava. O nome dela era veneno, mas era eu quem machucava, matava, sufocava até não haver mais possibilidade de vida.

Até não haver mais possibilidade para mim.

Aquiesci antes de destravar a porta e ela saiu. O carro fechou com um estrondo, e depois silêncio.

Eu solucei antes mesmo de as minhas lágrimas começarem a cair. Escondi o rosto nas mãos e deixei a tempestade abafar o som do meu choro, tão dolorido que parecia fazer o meu corpo inteiro vibrar.

Ela não merecia alguém como eu. Talvez fosse melhor assim.

Belladonna sempre seria o meu quase mais bonito. Isso bastaria? O quase me bastaria?

Levantei o olhar.

Ela estava parada na frente da minha casa, o corpo dobrado e o braço direito protegendo seu estômago. Belladonna tremia — eu não sabia se de dor ou de frio — e tentava em vão parar de soluçar, mas o choro vinha apenas com mais força, como um grito de agonia que talvez ela estivesse guardando durante muito tempo. Sua adolescência conturbada, seu transtorno alimentar, sua ex que nunca se importou com ela. Mas ela se importava, se importava tanto que se arriscou por alguém que havia a magoado.

Belladonna era linda. Linda, doce, inteligente e gentil. Mais do que isso, ela era intrinsecamente boa.

Eu não sabia se alguém já havia se preocupado em dizer isso a ela.

A chuva me recebeu como uma velha amiga quando saí do veículo. Belladonna deu alguns passos que não dariam em lugar algum.

— Belladonna, por favor — E desta vez eu implorei.

Implorei de verdade, com a voz embargada e um olhar de desespero estampado em meu rosto. Sem atuação, sem mais nada.

Ela parou e se virou para mim. Eu me aproximei devagar. Sentia a roupa grudada no meu corpo, mas a única coisa que eu conseguia me importar era com ela. Apenas com ela.

— Eu não confio em você e acho que não consigo confiar em ninguém.

Minha voz saiu estranhamente rouca, embargada. Minha garganta doeu e eu engoli minhas lágrimas. Não queria que fosse assim. Não queria deixá-la ir.

Eu queria ser diferente; queria que o meu passado não existisse e que eu só conseguisse olhar para frente. Para ela.

Não a machuque, eu disse a mim mesma, mas eu já tinha feito isso. Belladonna desviou o olhar e eu coloquei a mão em seu rosto. Ela estremeceu levemente — por frio ou por causa do meu toque — e me encarou. Seus olhos estavam vermelhos por conta do choro e, seus lábios, trêmulos. Eu não ouvia seu coração, entretanto eu podia jurar que conseguia senti-lo. Ela estava com tanto medo quanto eu. Tão vulnerável quanto eu.

Tão perdida quanto eu.

Sua bochecha estava fria, mas de alguma forma seus olhos ainda conseguiam transmitir calor. Olhá-la era como encarar a mesma luz que eu não conseguia mais encontrar em mim.

Gotas quentes escorreram pela minha face e de repente a chuva era composta por possibilidades. Eu vi tudo; vi como nosso verão poderia ser e os lugares que eu ainda queria mostrar a ela. Eu nos vi mergulhando no final da tarde e apostando corrida de bicicleta, contemplando estrelas e pulando na piscina do meu quintal em uma manhã quente. Quis aprender a fazer churros, novas receitas de cookies, mais sabores de geleia e até mesmo colocar menos pimenta jalapeño em seus tacos para vê-la contente quando não sentisse arder. E eu choraria quando ela tivesse de ir embora, mas sorriria no nosso último beijo porque eu queria que ela se lembrasse de mim assim, feliz. Feliz como eu queria ser, como ela me fazia ser.

Eu sabia que nunca a mereceria, no entanto queria merecer.

E bastava.

Respirei fundo para encontrar minha coragem e contive a vontade de limpar minhas lágrimas.

— Mas eu quero confiar em você e eu vou entender se você quiser ir embora. Eu não tinha o direito de te tratar daquele jeito, de descontar os meus fantasmas em você e ser uma completa idiota. Eu não deveria pensar o pior de quem só me deu coisas boas.

Os lábios de Belladonna se abriram, mas eu não a deixei falar.

— Eu me olho no espelho e me vejo feliz, brilhando. É como se eu olhasse para o passado, para alguém que eu pensei que nunca mais seria — Os cantos dos meus lábios tremularam em um quase sorriso. — Você trouxe o meu sol de volta, Belladonna, e eu nem sabia que o tempo estava nublado.

Seus olhos cintilaram sob a luz da lua encoberta, as pupilas tão dilatadas que tornaram o verde quase negro. O cabelo estava encharcado e seu nariz todo vermelho. Queria pensar que eu esperava que ela não ficasse resfriada, mas enquanto o momento ficava suspenso e o meu mundo inteiro se iluminava, a única coisa que a minha mente ecoou foi que aquela era a mulher mais extraordinária que eu já havia conhecido.

Minha expressão suavizou.

— E eu estou aqui, parada na chuva, pedindo para você me perdoar. Para você ficar — Sorri. — Eu também não faria isso por mais ninguém.

Levou apenas um segundo até ela me puxar e me beijar. Travei por um instante, surpresa, mas a familiaridade do gosto da sua boca me fez ficar.

Eu a puxei para dentro do carro porque entrar em casa demorara demais. Agradecendo aos céus pelo meu Mercedes ser espaçoso, a ajudei a se livrar de suas roupas e lambi as gotas de chuva da sua pele. Logo estávamos suadas, com calor, suspirando, sentindo, enfraquecidas. Belladonna bateu a cabeça no teto e eu não consegui conter a risada porque por mais que eu a fizesse abaixar, ela se esquecia de onde estava.

Havia sido uma péssima ideia, decidi depois de um tempo, porém eu também me esquecia disso quando olhava sua pele avermelhada, tão macia que me deixava com vontade de viver ali. O som da minha voz pedindo por mais e a sua respiração entrecortada, seus sussurros de Lia, Lia, por favor... Ela não era um quase, eu não queria que fosse.

Eu queria tudo. Eu a queria por inteiro.

Quando terminamos, ela se deitou sobre meu corpo nu e ouviu a minha respiração desacelerar. Traçou meu rosto com os dedos e eu os beijei com delicadeza, sorrindo.

Eu não sabia onde aquilo tudo nos levaria, mas eu queria tentar.

— Belladonna? — sussurrei.

Ela resmungou e se remexeu sobre os meus seios.

— Hmm?

Prendi o riso.

— Como assim você roubou o fotógrafo?

Ela me olhou e deu uma piscadela inocente.

— Não foi bem um roubo. Foi um malabarismo complexo, bem planejado, cheio de nuances — Arqueei uma sobrancelha, duvidando. — Prefiro chamar de suborno com apreensão de bens.

Ou seja, ela assaltou o homem e deu dinheiro para ele depois.

E algo de muito errado deveria estar acontecendo comigo, porque em vez de lhe dar bronca, eu gargalhei.

Antonella estava certa.

Eu gostava mesmo dela.

🍉🍉🍉

Assei cookies para Belladonna e a fiz me acompanhar em um chá. Estava com medo de ela ficar doente depois de toda aquela chuva, então insisti para que tomássemos alguma coisa quente. Sua expressão enquanto comíamos — já limpas e secas — ainda era um pouco abatida; eu podia ver os resquícios de suas olheiras e sua boca ligeiramente ressecada, mas havia um brilho no olhar dela que não estava ali quando eu a encontrei.

Conversamos amenidades. Ela me contou que havia devolvido o chip do celular do fotógrafo e eu sacudi a cabeça, sem conseguir imaginá-la soando ameaçadora para alguém. Ela não me perguntou como foi a minha noite passada e eu não falei, provavelmente fugiria do assunto se ela fizesse isso.

Fomos para o meu quarto, ela pegou o meu exemplar em inglês de Yo no soy tu perfecta hija mexicana e se deitou para ler. Eu me sentei e a avaliei durante alguns instantes, perdida em meus pensamentos. Se eu quisesse mesmo tentar com ela, teria de ser para valer. Eu não podia cometer o mesmo erro de novo.

Não estava pronta para dizer a verdade e provavelmente nunca estaria, mas enquanto eu olhava aquela moça com o olhar meigo e um pijama lilás na minha cama, eu percebi que queria ser sincera. Ela não merecia dor. Merecia somente o meu melhor, e se para ter o meu melhor ela precisava de alguma coisa honesta sobre mim, eu a daria.

Segurei o seu punho com delicadeza e seus olhos se ergueram em minha direção, tão verdes e brilhantes que me deram vontade de desistir.

Ela não precisava saber, mas eu queria que ela soubesse.

— Vem.

Um pouco confusa, ela segurou a minha mão enquanto eu a guiava até o meu closet.

— Eu me sinto estranha desde que você chegou — Minha confissão saiu baixa e eu tive vergonha por não conseguir olhar para ela. Eu era uma covarde. — Não tome isso como uma ofensa ou como se eu estivesse tentando te culpar sobre o que aconteceu ontem, passa muito longe disso.

Tomei um pouco de ar para continuar.

— A questão é que você traz à tona sentimentos que eu não sabia que ainda existiam. Já faz muito tempo. Eu os enterrei o mais fundo que consegui, mas acho que não foi o suficiente — Nunca era o bastante, como eu me esqueceria de tudo o que me aconteceu? — Isso me assusta. Você me tirou da minha zona de conforto e não sei se eu vou conseguir voltar.

No fundo, eu sabia que não conseguiria.

— Antes de dormirmos, há algo que preciso te mostrar.

Belladonna ergueu o olhar para o cômodo e o avaliou por alguns segundos. Eu não costumava passar muito tempo no meu closet por conta do que eu guardava lá. Era quase como se a caixa sempre me observasse e eu me sentia um pouco inquieta por causa disso. Naquele momento, entretanto, por mais incrível que parecesse eu estava me sentindo mais calma.

Os olhos de Belladonna focaram no canto e ela soltou a minha mão, indo até o cabide em seguida. Retirou-o dali e o ergueu.

Sua expressão se iluminou.

— É o vestido da Rainha Eleanor? — Ela tentou disfarçar o sorriso, mas não conseguiu.

Senti algumas borboletas no estômago. Belladonna era linda, linda demais.

Assenti em resposta e seus olhos se arregalaram um pouco.

— Como...?

Ergui uma sobrancelha, me lembrando do dia em que convenci a equipe a me deixar ficar com o vestido.

— Você não é a única que sabe fazer suborno com apreensão de bens — respondi simplesmente.

Ela me dirigiu um olhar de quem sabia das coisas e pendurou o figurino onde ele estava. Eu o olhei por alguns segundos e ponderei se ainda cabia nele. Se não, eu poderia pedir para Antonella ajustá-lo para mim.

Talvez Belladonna gostasse da surpresa.

Eu a guiei até o final do corredor e parei, finalmente olhando para a caixa branca que eu não costumava mexer. O olhar da jornalista seguiu o meu e, embora ela não soubesse ao certo o que estava ali, eu sabia que de alguma forma ela conseguia imaginar.

— Iliana, você não precisa... — começou a argumentar.

— Pegue para mim — interrompi-a de maneira serena. — Você é maior do que eu.

Ela hesitou por um momento, mas fez o que eu pedi. Peguei a caixa de suas mãos e a coloquei sobre um banquinho de madeira, em seguida a destampei com uma coragem que eu não teria se estivesse sozinha.

O vestido bordô desenhado por Victoria Delfin, mentora de Antonella, estava do mesmo jeito que eu deixei. Eu sinceramente não sabia o motivo de tê-lo guardado, a peça carregava tantas lembranças ruins que eu sequer conseguia olhá-la, mas ao mesmo tempo eu nunca me vi capaz de queimá-la como fiz com o vestido que usei na pré-estreia de Máscara de Vidro.

Respirei devagar e tirei o vestido da frente do Oscar. Alheia à reação de Belladonna, eu o olhei de verdade pela primeira vez desde que o guardei e senti vontade de chorar.

Por um momento, eu imaginei como as coisas poderiam ter sido. O meu discurso de agradecimento, os aplausos, o after party. Todos os filmes que eu poderia ter feito depois, todos os tapetes vermelhos, todas as entrevistas.

Eu teria conhecido Belladonna em outro universo?

— Brilha, não é? — Sorri melancolicamente. — Foi Logan quem me trouxe depois que eu fugi.

Belladonna permaneceu em silêncio.

— Eu vou ser sincera, Belladonna — Encontrei forças para falar. — Não me sinto pronta para contar a história toda e na verdade eu sequer sei se quero revirar essa parte da minha vida. Mas quero que você saiba que não falei nada da boca para fora. Eu quero confiar em você.

Como nunca quis confiar em outra pessoa.

Eu lhe estendi o troféu e ela o pegou, sentindo o peso por um breve momento. Ela o segurou com ambas as mãos, um pouco receosa.

O brilho dourado se refletiu em seus olhos e em seu cabelo.

— E há algo... — Deus, me dê forças. — Algo que você precisa saber sobre mim. O porquê de eu não querer tocar nesse assunto.

— Iliana, você não precisa me provar nada.

Mas eu queria. Belladonna olhou para a estatueta por mais alguns segundos. Não esperei seu olhar voltar a encontrar o meu para continuar:

— Acho que você me disse uma vez que eu nasci para ser uma estrela, algo do tipo. Que faz parte de quem eu sou. Talvez isso seja verdade.

Seu olhar encontrou o meu e eu senti medo da vulnerabilidade que encontrei refletida ali. Meu corpo inteiro vibrou quando eu percebi que queria lhe contar tudo. Eu não sabia por quanto tempo eu conseguiria esconder; o meu segredo me matava dia após dia.

Mas ela me odiaria, ela sentiria nojo de mim.

Ela me deixaria.

Mantive a minha expressão neutra enquanto eu sangrava por dentro. Perguntei-me há quanto tempo eu havia aprendido a fazer isso.

— O que você pode não entender é que essa decisão não foi entre ser famosa ou não, Belladonna — Se a primeira lágrima caísse, eu estaria perdida. — Eu não acordei no dia do Oscar e pensei que não queria mais fazer isso.

Belladonna me analisou por alguns segundos, então olhou para o prêmio em sua mão antes de me entregá-lo novamente. Eu hesitei em pegá-lo de volta, com medo dos sentimentos que me tomariam quando eu fizesse isso.

Perguntei-me se eu me arrependeria das minhas palavras seguintes algum dia.

— Eu quis deixar de existir em algum ponto. Tomei alguns comprimidos, escrevi um bilhete — sussurrei. Envergonhada, com medo e triste, tudo ao mesmo temo. — Era questão de tempo, Belladonna. Eu não fugi do Oscar, eu fugi de mim mesma. Do que eu queria fazer comigo.

Sem conseguir encará-la por mais tempo, desviei o olhar e minhas mãos ameaçaram deixar o Oscar cair. Eu o mantive firme, no entanto.

Havia pagado um preço muito alto por ele.

Belladonna se manteve quieta e algo em mim soube que ela estava esperando que eu continuasse, mas ela não me pressionou. Seria sempre assim, sem perguntas? Um dia a sua curiosidade venceria a sensatez?

Eu a encarei e senti um frio na minha barriga, como se ela estivesse vendo a minha alma. Perguntei-me se ela estava vendo a mesma coisa que eu: a minha parte vazia. Uma mulher quebrada, que não era digna de amor.

Minha boca tremeu levemente. Ela vai embora um dia, eu disse a mim mesma, e o que eu mais desejava era que ela ficasse.

— Naquela noite, eu compreendi que preferia viver como anônima a morrer como uma estrela.

Meus olhos se encheram de água. Eu estava cansada, tão cansada.

Uma lágrima brilhou na bochecha de Belladonna.

— A verdadeira decisão foi sobre deixar Hollywood me matar, Belladonna. Eu escolhi a vida.

Seus braços circundaram minha cintura e eu a abracei de volta, surpresa. Finalmente em casa.

Eu estava certa. Havia aprendido a dançar em meio à tempestade. Eu sabia me virar sozinha, fiz aquilo a minha vida inteira.

Mas enquanto ela me aninhava em seus braços e sussurrava que estava tudo bem agora, a única coisa em que consegui pensar foi que eu só queria que parasse de chover.

Apertei-a contra mim como se ela fosse capaz de tirar a minha dor. Eu queria tudo. Só mais um pouco dela, só mais um pouco de luz.

Só mais algumas flores.

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e o primeiro tinha que ser esse <3 pra quem tá relendo: fiz algumas mudanças. pra quem tá lendo pela primeira vez, essa é a visão da lia sobre tudo o que aconteceu depois daquela briga. acho que dá pra entender o motivo do capítulo não ter sido feito na visão dela.

votem, comentem e me contem o que acharam.

bjbj <3

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