T R Ê S
Boulder, 2021
Duas caixas com arquivos do caso do Colecionador estavam no quarto de Harry quando ele chegou ao hotel naquela noite. A lista de pessoas nas quais confiava era de conhecimento de Annelise, então deduziu que ela havia deixado as caixas com Kate, na recepção, e ido embora. Em qualquer outro dia Parker teria esperado o parceiro voltar, mas ela estava brava demais para sequer deixar uma mensagem de aviso. Harry não podia culpá-la: depois que saiu do aeroporto, desligou o celular e não voltou para a delegacia.
Precisava de um tempo com Melanie. Um tempo que não poderia ser interrompido. Um tempo sem distrações, porque todos sabiam o que acontecia quando se baixava a guarda perto daquela garota.
— Chique — Melanie comentou ao colocar sua mala sobre a cama. Claramente, por se tratar de uma espelunca, estava sendo irônica. — Você vive aqui?
Harry colocou as chaves sobre uma das cômodas e foi até o banheiro testar o chuveiro. Não era raro que ficasse sem água quente, e por mais que Melanie não merecesse a sua preocupação, achou melhor checar. Tudo estava funcionando.
— Eu atravessei o globo e você não vai nem falar comigo? — Melanie sentou na cama com um pulo, testando-a e parecendo desaprová-la. — Muita falta de consideração, pai.
White parou com a mão direita embaixo da água quente e respirou fundo, então saiu do banheiro e atravessou o quarto em quatro passos rápidos e pesados. As paredes pareceram tremer diante de sua repentina fúria. Ele parou na frene de Melanie e tentou não gritar, mas era evidente que queria muito.
— Eu não pedi para você vir, ok? Na verdade, eu nem te queria aqui. Você me ameaçou. Então, não, Melanie, nós não vamos ter longas conversas ao pôr-do-sol! E não me chame de pai.
— Uau — ela riu nervosamente. — Você ainda está bravo.
— É. Pode-se dizer que sim.
Harry foi até a cômoda e pegou as chaves novamente.
— Tem uma máquina de salgadinhos no fim do corredor. Pode pedir para a Kate colocar qualquer coisa na minha conta.
Ele quase saiu do quarto, mas pensou melhor e voltou para pegar as caixas com os arquivos do caso. Melanie levantou da cama em um pulo.
— O quê? Onde você vai?
— Kate está com todos os quartos lotados, e eu não vou dormir com você. Mas, não se preocupe, eu não sou como algumas pessoas que desaparecem por dezesseis anos.
Ele fechou a porta assim que terminou de falar, deixando uma Melanie consideravelmente chocada para trás. Aquele era um Harry totalmente diferente daquele detetive de Londres. Parecia muito mais amargurado e ferido, mesmo que fosse impossível imaginar alguém mais amargurado e ferido que o homem que conhecia.
Melanie sentou na cama e observou a própria mala. Enquanto pensava que não queria colocar suas roupas no armário mofado daquele quarto, também pensou que precisaria de muito mais esforço para se aproximar de Harry do que imaginou a princípio.
Uma dor horrível nas costas foi a primeira coisa que White sentiu naquela manhã, quando abriu os olhos e encarou o teto incrivelmente branco de uma sala de estar vagamente conhecida. Evitou gemer. Se recusava a admitir que estava ficando velho e quebradiço; iria fingir que tinha 30 anos até alguém jogá-lo em uma cadeira de rodas.
— Bom dia, raio de sol.
Annelise apareceu de repente, seu rosto saindo de trás do encosto muito alto do sofá de sua sala. Ela tinha duas xícaras na mão e estendia uma para que White pudesse pegar. Ele sentou com cuidado, evitando as dores, e buscou se manter acordado.
— Você me trouxe um café? — aceitou a xícara. — Achei que estava brava comigo ou algo assim.
Na verdade, o conteúdo era uma mistura de chá com uísque, o que deixava tudo muito mais suspeito. Annelise sempre criticava aquelas misturas.
— Está envenenado — ela sorriu ao sentar na poltrona ao lado do sofá.
White tossiu e pensou em cuspir tudo de volta na xícara, mas achou melhor só ignorar.
— Eu tive que resolver uma coisa ontem. E o FBI já estava sabendo da digital de qualquer jeito.
Annelise balançou a cabeça, pensativa enquanto as duas mãos agarravam a xícara quente. Não parecia mais preocupada ou irritada com o fato de White ter sumido pelo restante do dia anterior e a deixado sozinha para lidar com o FBI. Era possível que a mulher tivesse vivido o inferno naquelas horas, com agentes ligando e e-mails chegando, mas havia passado. Agora, Parker estava preocupada em outra coisa, concentrada no problema enquanto fumaça subia e cobria parte de seu rosto, causando um tom de mistério.
— Reli todos aqueles arquivos e não consegui pensar em nada. E você?
White deveria ter imaginado que, se algo a preocupada, era o Colecionador.
— Não precisei. Tenho todos na minha cabeça há anos. Nunca vai fazer sentido.
Por um momento, ficaram em silêncio. Annelise terminou de tomar o seu chá, e White sentiu o estômago revirar. Não chegou a beber mais nada do que havia em sua caneca, apesar de apreciar a oferta de paz da parceira. Estava preocupado demais para conseguir tomar chá.
— Você vai me contar o que aconteceu?
White acordou uma segunda vez naquela manhã, piscando diante do susto que a voz de Annelise causou. Havia se perdido em pensamentos e esquecido de que não estava sozinho.
— O quê?
— Por que precisou dormir no meu sofá?
White suspirou e pegou a xícara com o chá gelado. O gosto do uísque depois que o ardor passava era horrível, mas precisava ganhar tempo.
— Tive um problema no meu quarto de hotel. Hoje deve estar resolvido.
Claro que a mulher não acreditou em uma palavra do que o parceiro dissera. Ela sabia, melhor do que ninguém, que a mentira era sua segunda língua. Mas, talvez, não fosse realmente importante saber o motivo de ele estar ali; se White estivesse com algum problema, pediria ajuda. Poderia realmente ser um imprevisto e nada mais.
O telefone de Harry tocou, causando um segundo susto no homem. Annelise não sabia se ele era daquele jeito todas as manhãs, mas ficou difícil de acreditar na sua reputação diante daquela cena. Segurou o riso e permaneceu em silêncio enquanto o esperava atender a ligação, mas White só deligou o celular e o colocou de volta na mesa.
— Não era importante? — Parker arriscou.
— Hoje você está particularmente muito mais intrometido que o normal, sabia disso?
— Eu acho que tenho o direito. Por ser sua amiga e por você ter dormido no meu sofá.
— Não somos amigos — ele resmungou. — E esse sofá nem é seu. É da dona da casa. Você só alugou.
Annelise riu e levantou da poltrona.
— Nossa, você deveria fazer algumas palestras sobre agressividade defensiva.
White interrompeu uma resposta grosseira. Só serviria para provar que estava sendo agressivamente defensivo.
— Obrigado por me deixar dormir no seu sofá alugado — ele se levantou também —, mas preciso ir. Te encontro na delegacia em uma hora. Precisamos ir até a faculdade de Christine falar com os colegas dela.
Annelise ainda segurava o riso enquanto movia a xícara na frente do rosto. Era engraçado vê-lo fora do ambiente de trabalho. Às vezes se esquecia de que White era humano, e não só uma máquina de investigação com defeito.
— Claro, chefe. O que você quiser.
— Se continuar me provocando vai acabar entrevistando todo mundo sozinha.
— Não vou, não. Você gosta muito dessa parte do processo para me deixar ir sozinha.
White revirou os olhos. Era meio que verdade.
Pegou suas coisas sobre a mesinha de centro na frente do sofá, o casaco no cabide perto da porta e saiu. Annelise não se preocupou em acompanhá-lo, era totalmente desnecessário. Sabia, de alguma forma, que apesar de aquela ser a primeira vez que Harry dormira em seu sofá, com certeza não seria a última.
Deveria ter tomado aquela xícara de chá com uísque inteira, Harry pensou. Não que estivesse sendo ingrato, apesar de estar sendo ingrato, mas o sofá de Annelise era horrível — pior do que a sua cama de hotel, e isso dizia muita coisa sobre a qualidade de um móvel. Torcia para que Kate conseguisse liberar um quarto ainda naquela tarde. Não sabia se conseguiria sobreviver a mais uma noite mal dormida. Estava, como já observado antes, ficando velho demais para certas situações.
White não se preocupou muito com a qualidade de suas habilidades como motorista quando estacionou perto do hotel. Sua intenção era ser rápido. Só precisava tomar um banho e trocar de roupa, talvez fazer a barba — este último apenas se suas mãos não estivessem muito trêmulas. Se estivessem, seria preciso uma dose de uísque e White gostava de ficar sóbrio quando fazia entrevistas. Notou que era muito mais fácil conseguir a confiança das pessoas quando elas não suspeitavam de suas tendências alcoólatras.
Kate estava no balcão, como vinha acontecendo muito ultimamente. Há algumas semanas que White não via a mãe da garota por perto. Era como se tivesse desaparecido e deixado tudo nas mãos da filha de dezesseis anos.
— Aí está você! — Kate sorriu sem tirar os olhos do celular. — Achei que tinha fugido sem pagar a conta.
O detetive se aproximou do balcão.
— Eu nunca faria isso. Vocês sabem onde eu trabalho.
— Sabemos — levantou os olhos. — Sabemos muitas coisas sobre você.
Harry não entendeu muito bem o que ela quis dizer, mas achou que estava cansado demais para tentar descobrir.
— Onde está a sua mãe?
— Foi ao mercado. Acho que o pessoal do quarto 15 acabou com as nossas toalhas.
— Eles estão dando problemas para vocês?
Kate riu. Não era a primeira vez que o lado policial de White falava mais alto. No meio de conversas normais ele tendia a ver sempre o lado problemático perante a lei, e nada mais. Sua pergunta significava que ele queria saber, na verdade, se algum dos hóspedes estava fumando maconha ou quebrando as janelas em atos de vandalismo.
— Não, detetive. Só usaram muitas toalhas.
White forçou um riso, precisando reconhecer que tinha certa tendência a exagerar.
— Se precisar de mim, sabe onde me encontrar — se afastou do balcão. Já estava atrasado, e não poderia deixar Annelise esperando de novo. Ela não o perdoaria uma segunda vez.
A presença — ou sequer existência — de Melanie havia sumido completamente da sua cabeça naqueles últimos minutos, por isso White levou o terceiro ou quarto susto do dia quando entrou no quarto. A este ele nem reagiu, só usou a maçaneta de apoio com a porta ainda aberta e suspirou.
— O que foi? — Melanie praguejou da cama, onde lia um livro. — Ainda estou aqui. Não fugi por mais dezesseis anos.
— Infelizmente — ele resmungou baixinho. Então entrou no quarto e fechou a porta.
Melanie sentou e deixou o livro sobre a mesinha de cabeceira.
— O que a gente vai fazer hoje? — perguntou animada. — Quero conhecer Las Vegas! Deve ser uma loucura aqui.
— Eu vou trabalhar. E você vai ficar aqui, quietinha, até eu voltar.
A decepção dela fez todo o quarto parecer um pouco mais escuro.
— Isso não é justo, sabia? Eu não posso ir com você?
White riu.
— Eu me lembro muito bem do que aconteceu da última vez que você se envolveu no meu trabalho. Você fica aqui. E quieta. Pede alguma coisa para comer, aluga um filme, se vira.
Melanie se jogou na cama mais uma vez e pegou o livro que havia abandonado.
— Alugar um filme — repetiu, imitando o sotaque agora meio americanizado dele. — Você é muito velho, sabia? Ninguém mais aluga filmes.
White decidiu ignorá-la e foi até o armário para pegar roupas limpas, então se trancou no banheiro e desejou que, quando saísse, Melanie tivesse desaparecido. Seria muito conveniente se ela fizesse isso. Acabaria com metade dos seus problemas.
Claro que suas preces foram em vão. A garota ainda estava lá quando o detetive deixou o banheiro já usando aquele terno que tanto odiava, mas era obrigado a vestir.
— Você não se vestia assim em Londres — Melanie observou.
White abriu a porta do quarto para sair, olhando-a uma última vez. Talvez fosse uma péssima ideia deixá-la sozinha, mas precisava dar a ela pelo menos um voto de confiança e, dentre todos que precisava escolher, aquele era o mais próximo de ser seguro.
— É. Muita coisa mudou desde Londres.
E saiu, pesaroso, torcendo para que a garota não começasse um incêndio ou algo do tipo durante a sua ausência.
— Olha só! Chegou no horário e fez a barba. É natal?
Annelise parecia realmente surpresa com aquilo, o que fez White se perguntar muita coisa. Dentre elas estava o nível de desconfiança que Parker depositava nele como ser humano. Por que era tão estranho que tivesse feito a barba e aparecido no horário marcado? Não era sempre que se atrasava.
— Sou um homem de palavra — sorriu. — Agora, onde Christine estudava?
— Em Reno. Eu dirijo.
White suspirou, desanimado com a ideia de ficar quarenta minutos preso em um carro, com a única paisagem sendo um amontoado de areia.
— Posso escolher a música?
— Não. Quem dirige escolhe a música.
Ainda mais desanimado, Harry acompanhou Annelise quando ela entrou no carro. Pelo menos o ar condicionado dela funcionava, o que já era uma vantagem em relação àquela lata velha que dirigia desde que chegara nos Estados Unidos. A américa não era um bom lugar para ter carros antigos, descobrira do pior jeito.
A estação de rádio que Annelise escolheu tocava alguma coisa suportável, então White conseguiu melhorar o humor com o passar nos minutos. Quando chegaram à universidade de Nevada, onde Christine estudava, ele já se sentia relativamente normal. Havia se esquecido de Melanie e até do sofá horrível de Annelise. Estava animado com o dia que teria entrevistando universitários inteligentes, mas pouco espertos, e nas pistas que conseguiriam recolher.
Tudo desmoronou quando ele desceu do carro, claro. Foi só um segundo de puro contentamento com o sol batendo em seu rosto e esquentando a pele fria pelo ar do carro, então acabou. Nem havia fechado a porta quando viu Melanie parada no meio dos estudantes que andavam pelo campus.
Soube, na hora, que teria preferido vê-la atear fogo em seu quarto de hotel.
x x x
Nota da Autora
ANDY PARA O ANDYVERSO1!!!
Como vocês estão? Espero que bem e seguros <3
Gostaria de dizer que esse foi um dos capítulos que mais gostei de escrever por conta da dinâmica. Eu havia esquecido de como amava ver M e Harry juntos. E vocês? Sentiram saudades? Acham que ela está aprontando alguma coisa? Eu nem sei o que pensar dessa menina hahahaha
IMPORTANTE: uma cena EXCLUSIVA desse capítulo será liberada para o assinantes do meu clube de leitores desse mês. Quem assinar enquanto ainda for Julho, recebe :D corre lá no link da minha bio pra ver!
beijão
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