Capítulo Dezoito

Eu passei o crepúsculo inteiro sentada na sala de Kalanova, sem dizer uma palavra sequer, olhando fixamente para uma parede. Se chorava ou não, jamais saberia dizer: havia entrado em um estado tão caótico que tudo ao meu redor parecia se movimentar rápido demais para que eu pudesse acompanhar. Cada batida de coração era sentir meu peito prestes a explodir a qualquer momento; eu estava no modo desligado, sem uma reação que pudesse usar como gancho para retornar à sanidade.

Quanto tempo havia demorado me afogando na ideia de que eu tinha uma vantagem e, por não tê-la usufruído, agora Helena estava morta? A culpa era minha, certo? Caso tivesse contado a alguém o que me fora dito, ao invés de me concentrar em coisas inúteis, talvez minha amiga estivesse viva. Os "e se..." que permeavam pelas memórias daquilo que não foi, eram mais do que uma punição: ela estava morta.

E foi como se eu mesma tivesse puxado o pino da granada.

As coisas não poderiam ficar assim — Andora era a primeira e eu não iria guardar o que sabia e o que acontecera por um capricho infantil e mortal. Geralmente, quando alguém morre, é isso, acabou: não existe uma forma de pedir desculpas pelos erros do passado; mas não para mim. E havia algo em especial que eu poderia fazer.

Usei meu gancho.

― Kalanova ― sussurrei, num sopro de voz que eu mal sabia que ainda tinha. Ele me encarou, os olhos mais profundos do que nunca. ― Talvez esteja na hora de sermos honestos um com o outro, pelo menos uma vez na vida. ― Sua expressão transfigurou da confusão inicial para um fio de entendimento invisível que pareceu nos ligar. Sem sequer dizer uma palavra, fez um sinal para que todos ali saíssem (eu nem notara que haviam rostos desconhecidos na sala) e então, sentou na minha frente; não com aquele ar superior de diretor, porém, como meu semelhante.

― Você está certa, Katherine. Ainda que eu tenha prometido à sua mãe, não posso te proteger do mundo eternamente ― seu olhar se desviou de mim, em direção a um passado longínquo; certamente havia começado a se recordar de algo que eu tratei logo de cortar.

Não seria fácil contar aquilo, porém, diante da situação em que nos encontrávamos, era necessário. Além disso, Kalanova era considerado como família por minha mãe e ainda que nossa relação se baseasse em um desafeto mútuo, eu poderia confiar plenamente nele, certo? Esperava realmente que sim.

― Eu preciso revelar algo a você que eu nunca contei a ninguém, além de Freddie e Jason ― assim, ganhei sua total atenção. ― Quando Alafer morreu, pouco depois, aconteceu uma coisa comigo também, que nem mesmo Peter ou minha tia Irina sabem. E que eu nunca cogitei contar a você. Bom, pelo menos até agora. ― Tremi de leve, aninhando-me ainda mais no grosso cobertor que se encontrava em meus ombros. A imagem do que restou de Helena voltou para minha mente mais uma vez e eu tratei de expulsá-la antes que se alojasse ali eternamente. Tive de me segurar para não chorar. ― Eu consigo falar com minha mãe quando quero.

― Katherine, isso é perfeitamente normal e nã...

― Não é isso! ― grunhi. ― Eu posso viajar para Lancart. A hora que eu quiser.

Então, seu silêncio pensativo dominou o ambiente. Enquanto ele digeria as informações, eu tomava mais um gole da infusão que alguém ― que presumi ser Lucien ― trouxera para mim e que já estava fria; aqueci-a, esperando que o calor da bebida acalmasse a montanha russa que funcionava sem pausas em meu estômago. Estava amargo no ponto que eu gostava e eu deveria agradecê-lo, principalmente por ter deixado seus sentimentos de lado num momento tão tenso como aquele.

― Quando isso começou? ― foi a única pergunta que ele fez.

― Três meses depois. Eu achei que fosse um sonho, mas não era. Era Lancart e Alafer estava lá, esperando por mim.

― E por que você acha que essa é a melhor hora para contar isso pra mim?

― Porque a última vez que eu falei com ela, nós não estávamos sozinhas. Havia outros espíritos e eles me alertaram sobre uma coisa ― numa forma de reunir toda coragem que eu tinha, respirei fundo, muito fundo... ― Um grupo extremista chamado "Filhos do Éden". Eles disseram que... alguém morreria. Acreditavam que fossem um dos futuros sacerdotes; um de nós sete.

Com essas únicas palavras, a expressão de Kalanova se modificou para algo sombrio e completamente assustado. Por mais que eu já soubesse que aquela infeliz história era verdade, vê-la estampando o rosto dele me fez querer chorar de novo.

Algo muito errado estava acontecendo em Ambrosia...

― Eu fui honesta com você. Agora eu quero que você seja honesto comigo ― minha respiração falhou e eu senti que iria sufocar antes que ele terminasse de ponderar e me respondesse. ― O que eles querem?

― Eles querem libertar Éden do vaso ― então, ele fez tal como Helena antes fizera e andou de um lado para o outro, sem parar. Eu senti vontade de gritar.

Aquela ideia era loucura demais, até mesmo para um grupo que achava que Éden estava certo; era indigesto.

― Eles não podem fazer isso!

― E não vão ― a seriedade em sua voz me trouxe um pouco de confiança. ― O vaso está seguro e não tem como nenhum deles chegar até ele. É perda de tempo. ― Ele então me encarou e eu reparei que seu nariz e olhos estavam um pouco vermelhos. Aquilo me fez engolir a seco toda a dor antes de formular uma resposta.

― Então qual o sentido de matar Helena? Isso foi obra deles, não foi? ― tomei mais um gole do chá e fiz o que podia para controlar meu ritmo cardíaco.

Mesmo que houvesse um porquê, não mudaria que o gesto deles fora horrível e cruel ao extremo. Não traria paz alguma saber seus motivos, apenas desencadearia mais ódio, ao menos da minha parte. Éden havia tirado Alafer de mim e agora seus "filhos" roubaram a vida da melhor amiga que eu já tive.

Se eu descobrisse quem havia feito aquilo com ela, quem havia tirado sua vida, eu faria essa pessoa pagar na mesma moeda: uma vida, por outra.

― Provavelmente. Talvez eles queiram nos desestabilizar internamente antes de uma exposição maior. É uma tática boa, mas que não vai funcionar.

Pelo menos comigo já estava.

― Como você pode ter tanta certeza? ― inalei tanto ar quanto podia. Meu peito ardia em uma chama que fazia doer, embora fosse necessária para o momento.

Kalanova sentou em minha frente, fixando seus olhos nos meus, impassíveis, antes de responder a minha pergunta: ― Porque antes nós apenas especulávamos bastante; agora temos certeza da existência do grupo. É o suficiente para entrar num estado de alerta. Eles saíram de onde quer que estivessem se escondendo.

Tive medo do resultado daquilo, eu conhecia bem o que poderia acontecer.

― Isso significaria outra guerra?

― Talvez sim. Talvez não. ― e torceu os bigodes, pensativo. Eu só queria que a situação não piorasse. Perder Helena fora o suficiente. ― Depende de como tudo caminhar. Satisfeita? Podemos retornar àquele assunto de antes? ― Mas antes, perguntei o que Freddie e Jason desempenhavam ali; se estavam por perto só para prevenir minhas fugas ou se havia outro motivo. ― Sim ― Ele falou, desviando o olhar e fazendo parecer com que mentia... E no entanto, não me importei, não era o assunto mais importante do momento. ― Você não poderia ficar livre, leve, solta e fugitiva em tempos tão complicados. Se os outros fossem como você, também teriam guarda-costas em suas colas.

Suspirei e baixei a cabeça; as coisas finalmente começavam a fazer sentido para mim...

― Você sabe o que teremos de fazer, não é? Não teria me contado se essa não fosse sua intenção inicial, não é? Ótimo. Então... Como você costuma fazer isso?

Expliquei a ele então como funcionava, que geralmente acontecia quando eu precisava muito de Alafer, ou eu sentia um mal súbito e acabava desmaiando. Kalanova pareceu prestar atenção nos detalhes e assim que terminei de falar, quis saber se eu estaria bem para fazer aquilo no dia seguinte.

Mas eu não queria deixar para amanhã, eu queria naquele momento.

― É tarde e você passou por muita coisa ― ele falou em seu melhor tom de complacência. ― é melhor que...

Nem houve tempo de completar a sentença; a porta da sala foi escancarada com brutalidade, revelando uma presença que eu realmente jamais esperaria ver. Tia Irina e eu nos encaramos longamente antes dela atravessar o batente com toda sua elegância e superioridade. Em seu semblante, uma palidez mórbida extinguia a antes saudável pele cor de oliva que reinava, soberana na genética de nossa família ― havia algo de muito estranho com ela...

― O que você está fazendo aqui? ― soei mais ríspida do que pretendia, mas Irina pareceu deixar que esse fato se tornasse irrelevante e se apressou para chegar até mim.

― Estou aqui para ver você. Demorei, mas vim o mais rápido que pude logo que soube da notícia ― então, num gesto maternal (uma faceta dela que eu até então desconhecia/imaginava não existir) ela acariciou meu rosto e pegou em minha mão, apertando-a. Estava quente, o que me fez pensar no quão fria eu estaria. ― Você poderia me deixar sozinha com minha sobrinha? ― Falou para o diretor, que ainda estava sentado perto de mim, sem sequer mover o olhar. Assim que ele saiu, sem qualquer objeção, ela perguntou, ainda sem me soltar. ― Como você está?

As únicas três palavras que tiveram o dom de me tirar de um estado de choque para o outro: aquilo realmente soava como parecia? Em uma versão bizarra do mundo, Irina se preocupava em saber como eu estava? Ela realmente havia decidido se portar como parte da minha família, como uma tia preocupada.

Por mais que eu não quisesse acreditar na veracidade do fato, seu olhar conseguiu fazer o que eu jamais esperaria na minha vida: me desarmou.

Eu a encarei longamente, enquanto Irinieva parecia esperar uma resposta bem formulada ou não, qualquer coisa. No entanto, tudo que eu pude fazer naquele momento foi começar a chorar igual um bebê; e ela, apenas me aninhou, como deveria ter feito há mais de quatro anos. As palavras que tanto esperei que ela pronunciasse vieram atrasadas e capazes de fazer explodir a barreira que continha meus sentimentos; eu a lacrara com tanto afinco... Nas lágrimas que desciam, vinham as que eu guardara para chorar junto a ela por Alafer e pela mágoa que eu senti com as suas ações.

Mas agora, o que ela havia me dito durante nosso almoço no palácio começava a inundar meus pensamentos; será que chorara quase tanto quanto eu pela morte dela? No fim das contas, estava certa em uma coisa: éramos as últimas descendentes da linhagem de Landar ― éramos uma família. E isso, naquele instante, estava mais claro do que nunca para mim.

Quando Kalanova retornou, já tinha um bom tempo que eu estava deitada no colo de Irina, tentando tirar as imagens ruins da cabeça. O fato de que ela acariciou meus cabelos foi de grande ajuda para a situação. Enquanto o torpor da dor começava a passar um pouco, vinha com ele a realidade de que tudo aquilo era definitivo e real demais. No entanto, eu me obriguei a manter a calma e intensificar o restinho de sanidade que ainda pendia no precipício; aquela não era a hora para enlouquecer, ainda havia algo a ser feito e eu o faria sem pestanejar.

― Kalanova, eu acho que eu deveria ir agora ― sussurrei, tentando soar destemida, embora o medo me consumisse sem dó.

― Sim, eu concordo. Dormir irá te fazer bem ― ele respondeu e me desanimou. Mas não seria isso a domar minha vontade.

― Eu quis dizer à Lancart ― grunhi e recebi um olhar confuso de Irina.

― Não é uma boa hora. Você vai descansar antes e amanhã, quem sabe...

― O que está acontecendo? ― minha tia perguntou a ele.

Eu não tinha forças para argumentar, então só fiz o que parecia requerer menos esforço: obedeci. Fui embora dali com os Ahnkalov que estavam do lado de fora e deixei que Kalanova explicasse os pormenores a Irinieva.

Ao acordar, no início do entardecer do dia seguinte, deparei-me com o fogo ardendo pela minha janela. O sol descia lentamente e pintava o céu em tons quentes e supostamente acolhedores, porém, não naquele dia; não quando a única memória que pulsava em minha mente era a da morte.

O meu corpo se permitiu, então, sentir.

Aquele era o momento ideal para ser abraçada por Alafer, ouvir suas palavras de conforto, dizendo que tudo ficaria bem, mesmo que não ficasse. As pessoas subestimam os dons que gestos como este tem e só percebem o seu real poder no instante em que não podem tê-lo. Durante minha infância, na época em que eu ainda tinha pesadelos, só o som daquela voz cantando era capaz de me animar: o que eu não daria para despertar e ouvi-la me acalentando como eu merecia?

As lágrimas me sufocavam e o aperto que se fazia no peito dava a impressão de que eu desmaiaria a qualquer momento, contudo, não aconteceu. Lá fora, o mundo ainda escurecia e eu ainda estava naquele pesadelo. E dali jamais sairia.

Fiquei encolhida na cama tempo o suficiente para que apenas existisse um filete de luz por detrás das árvores e montanhas. Tempo o suficiente para que Irina aparecesse e me perguntasse se eu estava pronta ― Kalanova devia ter lhe contato sobre tudo, o esperado. Mas como eu poderia estar pronta? Eu não estava. Ainda assim, não hesitaria e me esconderia o resto do dia na cama, afinal, Helena precisava de algum tipo de justiça e eu, de ter a plena certeza de que de alguma forma, ela descansava em paz.

Irinieva me levou até o diretor, em uma sala que antigamente era usada para estudos da natureza, tratos com plantas. Ao seu lado, Lucien, segurando um vidrinho contendo algo que assim que experimentei, soube ser uma poção com efeitos relaxantes. Sentada a rígida mesa de madeira, meu respirar tentava se acalmar e retomar ao ponto em que eu estava tranquila; em algum momento, eu precisaria aprender a controlar minha habilidade e talvez fosse aquela a hora.

O ar preenchia em meus pulmões os tons e cores das plantas, uma a uma... Era como ter uma afinidade antiga com elas, mas presumi que fosse a influência do espirito forte de Alafer, convocando-me mais uma vez. Então, um peso sufocante; a sensação de estar debaixo da terra, me afogando nela: as pálpebras tremeram e a escuridão me levou, finalmente.

― Mãe...? ― a ideia de que poderia ter ido mais uma vez para o vaso me atingiu com uma força absurda, a ponto de fazer com que eu quase não conseguisse me levantar do chão. Minhas pernas tremeram.

Lancart estava como sempre: iluminada com uma aura espectral. Parecia ser um dia eterno ali, um dia quente e feliz.

Paz.

― Kate ― alguém me abraçou por trás. Mesmo sem assimilar bem a voz, eu soube num instante quem era.

Quando Helena me soltou, pude vê-la.

Era como se nada tivesse mudado, como se não fosse aquele bolo de carne desmembrada e... Estava como sempre estivera ― tremeluzindo, ecoando como a bela canção que era: uma criatura linda, doce e delicada. Foi um alivio constatar que, ao menos fisicamente, estava bem.

― Como você se sente? ― perguntei, pondo a mão em seu ombro. Era estranho o quão palpável me parecia, ainda que já não fosse mais.

― Estranhamente feliz. Em paz. Não sei. ― ela riu, meio contida. ― É mórbido, mas há algo de especial aqui.

Devolvi o gesto.

Ao menos não estava sofrendo e isso já me satisfazia um pouco.

― O que aconteceu? Quem fez aquilo com você? ― um pouco tensa, observei enquanto ela sentava em um tronco caído; uma sensação de deja-vu bateu em mim.

― Não vi. Me pegaram por trás. Eu não senti muita coisa, para dizer a verdade. Só um calor súbito e nada ― deu de ombros, já não parecia muito confortável em falar sobre aquilo, então não falei mais nada. ― Como está a minha mãe?

Neguei com a cabeça, indicando que não sabia como Filia estava naquele momento. Ninguém havia me contado, muito menos eu perguntado. Talvez devesse ter me importado com pouco com isso, mas estava tão absorta no que acontecera...

Então, Helena chorou e me tirou da divagação.

― Eu não achei que fosse acontecer tão cedo. Achava que ia ascender, ter filhos, ser uma boa sacerdotisa e morrer bem velhinha, vendo minha herança fazer um bom trabalho. Isso é súbito demais.

Não hesitei em sentar ao seu lado e abraçá-la. Suas lágrimas molharam a minha camisa, mas nem sequer eram reais.

Eu sabia que devia ser difícil para ela, sempre tão vivida, certa de que aquele era seu trabalho, sua missão. Jovem demais para ser levada assim, de modo tão brusco e assustador. Aquilo me doeu tanto que não pude contar o meu choro também.

― Eu realmente queria ser uma sacerdotisa ― ela se soltou e secou o rosto, se queria parecer forte, não sei. Contudo, estava.

― Você teria sido fantástica ― disse. E acreditei. Dentre todos nós, Helena era a única que era exatamente o que uma sacerdotisa precisa ser: benevolente, carismática e gentil. Era a única que realmente merecia aquele posto.

Ela sorriu para mim por alguns segundos, antes de colocar uma expressão confusa no rosto. Parecia que havia se dado conta de algo, que só se confirmou quando me perguntou, sem rodeios: ― Como você está aqui? Você também não...

― Não, eu tenho um dom da Morte ― foi minha vez de dar de ombros. ― Só não contei a ninguém.

Sua ponderação só tomou alguns segundos. Ela sorriu, fingindo uma dissimulação que não tinha; nem um pouco.

― Então o meu hanir não foi tão útil e especial quanto eu esperava.

― Eu fiquei feliz pelo gesto ― dei um sorriso para ela, assentindo com a cabeça. ―, isso é o que conta, na realidade.

― E você veio até sua mãe, no fim das contas? ― ela pareceu ansiosa, mas o sentimento murchou quando neguei com a cabeça. ― Para onde você foi então?

― Eu... eu entrei no vaso de Éden.

A expressão em seu rosto só não foi pior do que ouvir o sonoro "não" proferido pelos lábios de minha mãe, logo à minha esquerda ― assim que a ouvimos, Helena e eu já estávamos a encarando. E, é claro, o olhar devastador que ela tinha quando me aproximei.

Meu coração só começou a doer quando Alafer iniciou um arquejar sofrido e eu me senti mal por falar de seu assassino em um lugar onde ela poderia estar. Entretanto, quando ela começou um ecoar de palavras sem sentido... Algo estava errado, muito errado. E o que eu supus ser apenas medo por mim, acabou por se mostrar algo pior assim que as palmas de suas mãos se apertaram contra o meu rosto e as frases, até então desconexas, alcançaram um certo tom de sentido.

― O que houve? O que ele te falou? ― pareceu tentar buscar uma resposta em meus olhos, já que dos meus lábios não saia nada; eu estava absorta em choque. ― Katherine, ele falou algo para você? ― Pisquei repetidas vezes, enquanto ela parecia transitar em um estado de loucura nada passageiro. O que estava acontecendo com minha mãe? ― Eu não posso, eu não posso... Eu não posso te contar, querida, mas também não posso mais esconder isso de você. Não agora, depois do que aconteceu ― Ela chorava de uma forma que eu nunca vi em toda a minha vida e nós convivemos por tempo o bastante para que eu pudesse vê-la chorar vez ou outra.

― O que foi? O que você está escondendo, mãe? ― segurei-lhe os pulsos, afastando aquelas mãos de mim. Algo me dizia que era errado que me tocasse, que aquilo me machucava mais do que gelo.

― Você precisa saber, Katherine, você precisa. Mas eu não consigo dizer as palavras ― ela ergueu os ombros, emanando uma aura de culpa que me sufocou. ― Agora que você... Ele... Eu não consigo...

Eu precisava de um pouco de sentido e por isso, respirei bem fundo.

Já bastava que Alafer estivesse fora de si.

― Quais palavras? Só as diga. Está tudo bem. São só palavras. ― eu afirmei, ainda que estivesse certa de que as palavras não eram só isso. Do jeito que minha mãe estava, não poderia ser.

― Não são só palavras. É uma verdade. ― ela tinha dificuldades pra sorver o ar e eu estava começando a ver o sentido em sua súbita loucura. Definitivamente, Alafer tinha que dizer aquelas drogas de palavras. ― É maior do que uma verdade: é...

― Uma mentira ― a soltei, andando para trás, longe dela, como se carregasse uma praga. E de alguma forma, o fazia.

― O que? ― seu passo em minha direção me fez tremer.

O sentido definitivamente doía. Era uma traição.

Quem é meu pai? ― grunhi, com uma raiva flamejante lambendo minhas feridas e não permitindo que a verdade fosse impedida de se acomodar ali. Sua reposta não veio e lágrimas de ódio me agarraram pela garganta, apertando-a se piedade. ― Mãe, não fica em silêncio. Só diz a droga da palavra. Quem é o meu pai? Fala o nome dele. ― Tentei novamente, mas não houve resposta. Apenas duas garotas desesperadas; ela parecia mais jovem do que nunca naquele momento; parecia comigo. Agora, eu já nem tentava evitar que o choro viesse com tudo. ― Mãe, por favor, ele não mentiria para mim. O Donovan não mentiria para mim se precisasse, mas por você sim, não é? ― Doía tanto que eu sentia como se fosse morrer a qualquer momento. ― Se um dia as palavras viessem até mim, a verdade, ele protegeria a sua omissão com uma mentira, certo? Mas ele não é meu pai, não, não é... então... Então...

― Éden é seu pai. ― ela, por fim, falou as palavras. Pareceu descarregar todo o peso do mundo ― confirmou o que estava quase óbvio. E, de alguma forma, eu morri. ― Éden.

Gritei para que floresta inteira pudesse me ouvir, para que o som da minha dor alcançasse os extremos de Ambrosia, para que chegasse ao local onde estava guardado o vaso e que penetrasse os ouvidos dele. Era por causa dele que eu estava sofrendo e ele tinha que eu saber que a ideia ― a verdade dentro da mentira ― de que nós compartilhávamos um laço de sangue era tão ruim para mim que me machucava.

Que me matava.

Eu quis gritar com ela, dizer o que agora se entalava no meu estômago e que o fazia arder e me ferir, mas Alafer estava com sorte naquele dia.

A realidade me trouxe de volta, inescrupulosa, rindo de mim sem qualquer piedade e eu abri os olhos. Ainda estava na sala, cercada pelas plantas e por rostos conhecidos. Aquele despertar tinha conseguido ser pior do que o eu tive quando saí do vaso; era uma concretização que me fez vomitar no chão, perto do pé de Lucien. Mas quando Irinieva tentou tocar o meu ombro para me alentar, eu não consegui: tudo que podia ver era Alafer em seu rosto, sua mentira. E dela, a única coisa que eu agora queria era distância.

Saltei para o chão, pisando e quase escorregando no liquido que consistia apenas em bile, e desapareci pela porta, antes que eles pudessem ter alguma reação e me impedir. Eu iria correr até o fim do mundo, até alcançar o sol, para me jogar sobre, queimar e morrer, porque nunca que a ideia de morrer havia me parecido tão sensata. Pelo menos até eu lembrar que morrer significava estar no mesmo lugar que ela.

Pela primeira vez desde sua morte, eu não queria estar ao seu lado.

Uma parte de mim queria odiá-la, a outra, entende-la. Adivinha quem estava ganhando?

― Katherine! ― ouvir meu nome me fez parar. Eu estava cega, incapaz de prosseguir, cansada demais para não tropeçar e cair no chão.

Meus joelhos não aguentaram e então, eu estava exatamente onde deveria estar.

Frederick me ajudou a levantar e eu não o afastei, muito pelo contrário: enquanto me carregava no colo, meus braços envolveram o seu pescoço, buscando um tipo de conforto que eu não imaginava que poderia receber dele. Ele me levou até o quarto, ajudou-me a tirar os sapatos e deitou comigo do mesmo jeito que Peter costumava fazer durante os momentos em que eu estava triste. Eu fiquei em seu colo, agarrada a seu peito, usando sua respiração como um tipo de guia para a mim.

De alguma forma ele entendia meu inconsciente e sabia o quão agradecida eu estava por seu silêncio reconfortante. O tempo passou estranhamente devagar e só voltou a caminhar no ritmo certo quando Kalanova abriu a porta violentamente. Nos ver daquele modo pareceu o oferecer algum tipo de compreensão, e por fim, e o mandou sair dali, de perto de mim.

― Eu não sei o que aconteceu com você e sinto muito, pelo que quer que seja. Mas isso acaba hoje. Eles não são seus amigos, não estão aqui para confraternizar. Se você precisa de alguém para isso, chame um dos seus consortes ― suas palavras eram frias como gelo. Então, virou-se para Freddie e Jason, que estava logo atrás. ― Ouviram bem? É o único aviso que vou dar. Ou vocês agem como o que são, guerreiros, ou eu encontrarei outros que façam esse trabalho melhor, entenderam?

Ele esperou uma resposta dos Ahnkalov.

Os dois me encararam longamente, antes de proferirem as palavras que só pioraram o meu estado emocional: ― Nós sentimos muito, sacerdotisa.

Num golpe mortal, os três partiram, sem nem se importarem se eu ficaria bem ou não. No fim, eu estava sozinha, de novo: a linha havia voltado a ficar nítida.

Só os deuses sabiam o quanto Peter me fazia falta naquele momento e...

Peter. Sua carta.

Corri até alcançar Frederick, puxando seu ombro para trás violentamente. A expressão em seu rosto foi de preocupada, direto à assustada. Mas o ignorei, da mesma forma que havia feito comigo.

― Onde está a carta dele?

― Na gaveta. Ao lado da sua cama.

Eu não precisava de mais nada. Peter me traria conforto, como sempre trouxe, mesmo que fossem apenas as suas palavras. Estas eram sempre boas.

Praticamente arranquei a gaveta da cômoda e puxei a carta com os meus dedos que tremiam inconscientemente. Abri tão rápido o papel dobrado que o amassei, sufocando com o desespero, e comecei a ler as linhas que as palavras traçavam firmes na caligrafia de Peter Solomon.

"Haiknan,

Como começar essa carta? Talvez soe impessoal demais, mas espero que o dia do seu aniversário tenha sido bom. Eu sei como essa data é difícil para você e realmente sinto muito por não poder estar aí neste dia. Provavelmente você está com raiva de mim e não vai ler essa carta até essa sensação de traição te abandonar. Até lá, eu espero que você me perdoe.

Parece que não nos vemos há décadas; o mundo sem você tem a estranha mania de andar com os passos de um passarinho. E espero que você não esteja sentindo minha falta tanto quanto eu sinto a sua. Chega a doer quando penso no seu sorriso, nos seus olhos... Todo dia você está na minha cabeça. Não devia ter partido assim, mas como eu poderia dizer não se te contasse e você me pedisse para ficar? Você sabe que eu não consigo negar nada a você e esse foi um dos motivos que me levaram a tomar essa difícil decisão. Tudo que faço é pensando em você e no seu bem estar, você sabe que eu nunca te deixaria apenas para te ferir, não é? Se eu parti foi porque eu percebi que não posso te defender, porque sou fraco e não conseguiria evitar de fazer aquilo que te deixa feliz, mesmo que acabe te prejudicando.

Eu te amo. Eu preciso aprender a fazer o que é melhor para você. E é por isso que não vou voltar ainda. Sinto muito.

Korana haik,

Peter."

Eu nem tive tempo de digerir as palavras terríveis escritas naquela carta maldita: só gritava em minha mente que Peter não voltaria para mim, que eu teria de esperar mais por ele, que eu sofreria sozinha. Nenhum dos meus consortes poderia ocupar o lugar dele, não saberiam lidar comigo, não me conheciam tão bem mentalmente, apenas no físico.

Nós não tínhamos nenhuma ligação.

Não havia ninguém que pudesse me consolar.

Uma batida na porta e meu coração iludido esperou que fosse Peter, que tivesse arrependido de ter mandado a carta, que havia voltado para mim. Uma alegria me inundou e eu acelerei para o nosso reencontro, que não aconteceu.

Aquilo era algum tipo de teste para ver quanto tempo eu durava até que tomasse uma decisão desastrosa?

― Você está bem? ― a voz de Caleb fez me doer os ossos. Ergui o olhar, encontrando seus olhos esverdeados preenchidos com um sentimento de preocupação.

― Não ― neguei também com a cabeça, entorpecida então pela dor tão profunda. Tão entorpecida mesmo, que as palavras escapuliram da minha boca e eu só me dei conta do quanto elas amargaram, quando as falei. ― Éden é meu pai.

Quanto mais ele me olhou, sem entender o que elas significavam, pior foi ficando a vontade de chorar mais ainda; e o fiz. Num lampejo de loucura, tentei beijá-lo, mas Caleb tomou meus pulsos e impediu antes que o estrago fosse feito. Em seu olhar, pena e a certeza do que estava fazendo.

― Não é assim que você vai resolver seus problemas, Katherine. Mas eu estou aqui se quiser conversar. ― e então, me puxou para um abraço. Eu fiquei ali, no seu calor, chorando e tremendo: ele estava certo.

Buscar qualquer tipo de consolo que resultasse em sexo não melhoraria as coisas. Poderia fazer eu me sentir melhor por alguns instantes e era só isso: nenhum conforto, satisfação, nada mais. Afinal, por mais que eu quisesse negar...

Helena estava morta.

Peter foi embora.

E Éden... era meu pai.

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