Pastor alemão adestrado
Christian só aparece na segunda-feira.
Depois que está mais calmo, e o efeito da bebida passa, ele fica manso com um pastor alemão adestrado. Chega e não me ataca, mas continua farejando pistas onde ele sabe que vai encontrar. E eu sei que ele vai encontrar.
— Acabei de ver o vizinho saindo naquela Mercedes que está sempre parada aí na porta... — Comenta entrando pela porta, como se não houvesse desaparecido sem qualquer explicação pelo final de semana inteiro. Eu estou concentrada, sentada de frente para o espelho, passando delineador. — Ela deve valer pelo menos cento e cinquenta mil. Não é o tipo de carro que se espera ver rodando por um bairro desses, concorda comigo?
Reflito sobre o que ele diz. Sei que Kenny gosta de carros e coisas antigas, mas é bastante caro. Eu queria saber de onde vem o dinheiro dele, porque de suas apresentações como mágico tenho certeza que não vem o suficiente para comprar um carro desse valor.
— Esse cara tem muita sujeira escondida. Aposto que pego ele com tráfico.
Quero defender o Ken. Quero dizer para deixá-lo em paz. Ele não tem nada a ver com isso. Mas eu sei que, se eu fizer, isso apenas vai aguçar ainda mais a curiosidade de Chris, e atiçar o seu desejo de ferrar com o meu vizinho.
— Se ele for mesmo traficante talvez ele seja perigoso. Você devia deixar isso para lá, Chris. O cara é nosso vizinho, ele pode se vingar depois. Nunca se sabe.
— Você não me conhece, boneca, se acha que eu vou perder a chance de colocar um criminoso atrás das grades. É isso que eu faço.
— Tem certeza que é só por causa do seu trabalho?
— Tem outro motivo que eu deva saber? — Me desafia.
Faço que 'não' com a cabeça, e desvio o assunto discretamente.
— Onde você esteve o final de semana todo?
— Agora se importa?
Eu reviro os meus olhos. Não vou perder tempo com essa discussão infundada. A verdade é que não me importo. Juntando os meus cosméticos de volta na bolsinha, eu levanto do chão. Dou uma ajeitada na saia rosa amarrotada.
— Onde você pensa que vai desse jeito? — Indaga ao que eu me dirijo para a porta.
— Tenho uma cliente para atender em meia hora — falo.
— A menos que pretenda abrir as pernas para sua cliente, é melhor trocar essa minissaia por uma coisa que cubra suas coxas.
Eu inspiro muito fundo.
Poderia discutir com ele. Poderia insistir, ou simplesmente sair do jeito que eu quero, mas, depois da sua ameaça, a última coisa que eu quero é irritá-lo. Conto até dez mentalmente. Penso: Só preciso sobreviver a isso por tempo suficiente para traçar um plano.
Troco a saia por um jeans justo rasgado, deixo um beijo rápido na boca dele antes de sair. Já estou atrasada quando desço as escadas correndo, escorrego os dedos pelo corrimão para não cair. Acelero os passos de salto alto, até dobrar a esquina.
De longe, reconheço a Mercedes estacionada em frente ao bar, que hoje está fechado. A capota rebaixada. O som ligado tocando Havana muito mais alto do que o necessário. Kenny veste uma camiseta branca lisa, recostado na lateral do veículo. Tão lindo, que poderia posar para uma revista.
Ele olha para mim e sorri. Eu só penso: Esse sorriso ainda vai me demolir inteira. É instintivo sorrir de volta.
— Demorou — ele fala.
Me cumprimenta com um beijo demorado na bochecha. A mão grande toca o meu braço. A barba fricciona o meu rosto. Seu perfume de canela invade as minhas vias aéreas sem um respingo de piedade. Requer o esforço de uma maratona para não me virar e "sem querer" beijar a boca dele.
— Desculpa. O Chris me fez trocar de roupa de novo. — Pigarreio ao dizer isso.
É o suficiente para fazer Kenny ganhar uma distância segura, se empertigando.
— Não respondo por mim se ele fizer algo ruim com você, Barbie.
Eu aperto os lábios em um sorriso, percebendo que não posso imaginar o Kennedy como alguém agressivo. Esse bom humor e esse rostinho lindo não combinam com uma briga.
— Não consigo te imaginar fazendo alguma coisa violenta — confesso. — Você é sempre tão tranquilo.
— Devia ter me visto quebrando aquele aquário.
Eu rio. Sacudo a cabeça em negativa. Por que eu continuo rindo dessa história? É tão estúpido e despretensioso o jeito que eu rio com ele. Gosto disso. Gosto muito mesmo. Um pedaço meu se pergunta o que aconteceria entre a gente se Christian nunca houvesse aparecido.
— Por que me chamou aqui? — Vou direto ao assunto, lembrando que eu tenho um compromisso importante marcado em menos de uma hora.
— Quero te mostrar uma coisa.
Kenny coloca a mão no meu ombro, me guiando escada abaixo, para dentro do Harvey's. Tem uma chave no bolso da calça que abre a porta principal. Está tudo escuro e silencioso. As cadeiras vermelhas empilhadas sobre as mesas.
— O quê?
Ele puxa a alavanca grande que faz todas as luzes se acenderem e eu ouço o barulho da turbina do gerador começando a funcionar. Noto que o palco está todo elaborado com cortinas vermelhas, e "Misterioso Quem" estampado no telão ao fundo. Tem uma câmera grande posicionada perto das mesas.
— Eu estou precisando de grana, então decidi começar a gravar vídeos de mágica para internet. — Revela. — O Harvey me deixou usar o lugar. Queria contar para você primeiro, porque você é toda inteligente e ambiciosa. E a Tabitha provavelmente vai mandar eu me foder de qualquer jeito.
—Você arrumou isso tudo sozinho? — Chego mais perto para examinar. Ele montou um cenário bastante digno, com luzes e decorações. Tem mesas pretas para os truques de um lado, o cofre metálico do outro e cartas de baralho em tamanho gigante penduradas no teto.
— Você não tem noção de quantidade de coisa que dá para fazer quando se acorda antes das seis.
— Deus me livre. — Dou risada. — Você não tem noção da quantidade de sono que dá para colocar em dia entre as seis e as onze.
Ele ri também.
— Eu me inspirei em você, para ser sincero — diz. — Naquilo que você disse uma vez sobre não existir um "roteiro" certo para viver. Daí eu percebi que podia fazer algo que me deixasse feliz e ainda pagasse o aluguel, como a maquiagem é pra você. Espero que não ache muito ridículo.
Balanço a cabeça que não, sorrindo.
— Eu acho bem legal. Você é bom nisso. Se você ficar famoso, eu vou poder dizer que transei com uma celebridade.
Kenny dá risada.
— Eu te convidaria para fazer o papel da loira bonita que eu corto pela metade na caixa preta, mas o meu orçamento está meio restrito, então acho que vou ter que contratar uma loira menos bonita.
— Ah! Cala a boca! — Eu o empurro fraquinho entre risos. — Eu te ajudo no que precisar, inclusive, faço questão de fazer sua maquiagem de palco. Mas você vai ter que me pagar com divulgação, claro. Eu não sou barata.
— Uau! Vai me deixar bonitão para as câmeras? — Levanta uma sobrancelha.
Reviro os meus olhos, rindo. Caminho em direção à saída, e Kenny me segue.
— Você ao menos se enxerga, Kennedy? — Empurro a alavanca e todas as luzes se apagam.
— Isso foi um elogio? — Ele parece surpreso. — Ou uma ofensa?
— Foi um "vambora que eu estou atrasada". — Fujo da resposta.
Óbvio que foi um elogio. É só olhar para ele. Ele nem tem defeitos. Que ódio!
***
Votem!!!!
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