Onde a mágica acontece

Um alçapão.

Kennedy só me mostra a sua 'carta na manga' depois que o show termina e o bar esvazia. A esse horário, só sobramos nós dois e a Tabitha limpando as mesas do Harvey's. O mágico abre a porta secreta no chão, e gesticula com as mãos me pedindo para fazer as honras da casa.

— Quer que eu entre aí? — Pergunto com uma entonação de 'não vou nem ferrando'.

Ele ri.

— Relaxa, Barbara... eu sempre faço isso e nunca encontrei nenhuma barata. — Desconfiada, eu coloco o primeiro pé para dentro, e é quando ele solta: — Uma vez achei um rato, mas era bem pequenininho.

— O quê? — Dou um pulo.

— É brincadeira! É brincadeira! — Gargalha. — Entra logo, eu prometo que não tem bicho aí dentro.

Receosa, eu me aventuro saltando para dentro do estreito quadrado escuro no chão. Kennedy entra logo atrás de mim, e nós precisamos andar com as cabeças abaixadas para não bater no teto baixíssimo.

— É aqui onde a mágica acontece!

Ele puxa o alçapão, fechando, e tudo fica um breu. Passa com o corpo rente a mim, tomando a frente, e me guia pelo caminho estreito.

— Cuidado com o degrau — avisa tarde. Eu quase tropeço, e me seguro em seu corpo por instinto. — Tudo bem?

— Tudo.

É uma escadaria em caracol, subindo, e então Ken abre a porta de madeira para dentro de uma sala de estar mobiliada com utensílios dos anos 90. Só não mais escura e fria do que o porão de onde acabamos de sair. A sensação é de que fizemos uma viagem pelo espaço-tempo, mas só andamos alguns metros.

— Onde nós estamos?

Eu analiso o ambiente. A televisão é um grande caixote marrom, com antenas no topo. Tem uma máquina de costura em um canto, e o retrato antigo de uma mulher bonita sobre a lareira. Tudo encoberto por uma espessa camada de pó.

— Na casa do Harvey — ele explica. — O bar fica onde antigamente era o porão.

— E a gente pode entrar assim?

— Relaxa. — Ri. — Ninguém mora aqui há anos. Vou trocar de roupa.

Penso que ele vai para o outro cômodo, mas apenas começa a desabotoar a camisa social. Eu pigarreio e olho para o outro lado, me entretendo com as fotos antigas. Posso imaginar que Harvey seja o jovem magricela usando jaqueta de motociclista nas imagens em preto e branco dos anos oitenta.

—Você conhece ele? — Pergunto. — O Harvey?

— Acredite ou não, ele era o professor mais excêntrico que eu tive na faculdade.

— Você fez faculdade? — Eu o encaro, surpresa.

Kennedy veste uma camiseta preta por cima da cabeça, bagunçando os cabelos castanhos. A blusa social é largada sobre o sofá verde-musgo.

— Três anos de administração de empresas, mas perdi último — conta.

— Por quê?

Ele vira de costas para desabotoar a calça. Respeitando a privacidade, eu me distraio analisando os livros empoeirados na estante velha. Que tipo de monstro se muda e abandona os livros?

— Problemas. Acho que ainda dá tempo de voltar, mas meio que mudei de ideia.

— Sobre o curso?

— Sobre tudo. — Solto apenas um "hm", e ele prossegue: — Sou novo demais para dizer que não aguentei a pressão?

Dou risada.

— Acho que não.

Meus dedos correm pelo exemplar de Orgulho e Preconceito da Jane Austen. É um dos meus clássicos favoritos, e essa é uma edição linda com capa dura. Olho sobre os ombros, Kennedy ainda está de costas. Discretamente e com cuidado, eu escorrego o livro para dentro da minha bolsa, o coração acelerado.

— Vai levar isso embora?

Salto, quase tendo um infarto. Ele estava lá, e agora está bem atrás de mim.

— O quê?

— O livro. Você colocou na bolsa.

— Eu só estava pegando emprestado — me justifico.

Kennedy ri.

— É claro. — Junta as peças de roupa que ficaram no sofá, enroscando-as no ombro. — Vambora antes que a polícia venha atrás de você.

Eu rio, culpada.

Kennedy fica diferente com jeans e uma blusa casual. Mais jovem. Ele não deve ter mais que uns vinte e dois anos e fez faculdade, o que me faz perguntar como acabou se tornando um mágico no bar decadente do seu ex-professor.

— O que o Harvey ensinava? — Puxo o assunto.

— Comédia — diz. Eu franzo o cenho.

— Que tipo de pessoa estuda 'comédia' na faculdade?

— Eu sei, é uma escolha estranha... — Admite. — Mas meu orientador de carreira achou que eu precisava fazer algo para trabalhar a habilidade com público.

Ele fala sobre a própria vida de um jeito descontraído. A porta da frente range ao ser aberta. Descemos um pequeno lance de escadas, e estamos na rua do bar outra vez. A luz amarela dos postes ilumina a escuridão do caminho que seguimos para casa.

— Se você se pergunta onde os palestrantes aprendem a fazer piadinhas ruins para quebrar o gelo, é nesse curso que eu fiz. — Ri.

— Tão ruins quanto essa? — Eu provoco. — Parabéns, mereceu o diploma.

Ele também dá risada, mas não sai com o orgulho ferido.

— Se quer saber, eu era o primeiro aluno da minha turma.

— Eu não tô duvidando. — Rio. — Agora, me diz... O que se ensina em uma aula de comédia?

Eu olho para os meus próprios pés, caminhando sem muita pressa pelo pavimento.

— Tinha um pouco de teoria, mas às vezes a gente tinha que fazer esquetes e apresentar para a turma — conta. — Como eu adorava brincar de mágico desde criança, eu tive a ideia de fazer umas apresentações misturando ilusionismo e stand-up. O Harvey é um daqueles professores com quem você cria um vínculo, sabe?

— Espera! Você é um daqueles puxa-sacos de professor? — Dou risada.

— Não é puxar saco — garante. — É que o Harvey se tornou um modelo para mim. Uma inspiração. — Estou em silêncio, olhando meus próprios pés enquanto caminho e presto atenção na conversa. — Desculpa, eu estou sendo muito chato agora, né?

Nego com a cabeça.

— Gosto de ouvir histórias.

— Tá, resumindo — prossegue. — Eu sempre ficava conversando com o professor Harvey depois da aula.

"Puxa-saco" digo fingindo um espirro. Ele dá risada, mas prossegue.

— Então ele me contou que reformou o porão da casa dele para transformar em um bar alternativo e tal, e ele sempre dizia que eu devia me apresentar aqui a qualquer hora.

— E você veio mesmo.

— Acabei vindo. — Sacode os ombros. — Não foi na melhor das circunstâncias. Era para ser temporário, mas eu meio que me apaixonei pelo bar e... aqui estou.

— Pelo bar? Ou será que se apaixonou pela barista? — Eu dou uma cotovelada de provocação.

— A Tabitha? — Ele sobe uma sobrancelha grossa. Eu assinto. — Nah... Eu só implico com ela por diversão. Ela nem é meu tipo.

— Para de ser cara de pau, Ken! — Acuso. — Você transaria com ela que eu sei!

— Eu nunca disse o contrário! — Dá risada. — Mas é sério. Não tem nada ver com a Tabitha. É que eu já viajei para todas as partes do mundo, e nunca me senti tão eu em um lugar quanto eu me sinto aqui. Todas essas pessoas que vêm para beber e voltam porque curtem o que eu faço, sei que é bobo, mas, sei lá, é importante para mim.

— Não é bobo. O seu trabalho é legal.

— Só não paga as contas.

Chegamos ao prédio, e eu vou pegando a chave do portão para entrarmos rápido. Já é madrugada, e eu não gosto de bobear por aqui a esse horário.

— Onde pensa que vai? — Kennedy confisca o chaveiro cor-de-rosa.

— Entrar.

— Nem pensar! — Ele ri. Abre a porta do carona da Mercedes preta que está estacionada junto da guia, em frente à entrada. — Você me deve um encontro.

— Sério? Agora?

— Não vou correr o risco de deixar para depois e você desistir. Seu humor é muito oscilante. — Dá risada. Estende a mão para mim. — Vem logo.

Eu me rendo.

Estou me divertindo com ele, e eu não tenho nenhum compromisso pela manhã, então tudo bem ficar acordada até um pouco mais tarde.

Me apoio em sua mão e me abaixo para entrar no carro que só tem dois lugares. Os bancos são de couro vermelho, contrastando com o volante e o painel brancos. Kennedy bate a porta, e dá a volta para entrar pelo lado de lá. Enfia a chave na ignição e faz o motor roncar ao dar a partida.

Antes de sair, liga o rádio, que parece ser o original do veículo. Sintoniza as estações analogicamente, girando o botão, até o chiado ser substituído pela voz de Lil Nas X cantando Old Town Road.

— Espero que goste das mais tocadas da rádio. Vou ficar devendo o Spotify — brinca. — Não faziam smartphones em 1958.

— Eu curto essa música.

Ele acelera pelas ruas escuras do nosso bairro. Se depara com alguns semáforos vermelhos, mas não tem nenhum trânsito então ele avança sem pestanejar. Eu giro a manivela prateada para fazer o vidro abrir. Preciso admitir que isso tem certo charme vintage, mas nunca entrei em um carro tão antigo.

Algumas pessoas têm carros velhos porque é o que podem pagar, mas esse não parece um carro barato, e eu me lembro de como Kennedy o defendeu com unhas e dentes, então acho que realmente gosta de dirigi-lo.

— Você gosta de carros velhos?

— VELHO? — Pergunta com choque. — Não vamos ter essa discussão outra vez. Uma Mercedes 190 SL não fica velha, Barbie. É um clássico.

— Um clássico velho — rebato.

— Só para saber, a Mirtes causa inveja em qualquer feira de automóveis antigos que você quiser ir.

— Mirtes?

— É o nome dela. — Dá três tapinhas no painel.

Eu gargalho.

— O seu carro tem nome de mulher?

— É! E a Mirtes é sentimental, então não chama de velha que está magoando ela.

Eu chacoalho a cabeça, ainda dando risada.

— Alguém já te disse que você é doido, Ken?

— Escuto isso maisvezes do que gostaria.


***

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