Kitnet da Barbie
Esse lugar começa a ficar com cara de casa.
As caixas de papelão deixadas no canto - perto da porta - foram finalmente esvaziadas, quase tudo já foi guardado no armário, e o primeiro quadro acaba de ser pendurado na parede rosa-bebê. Tudo, claro, executado com muito capricho pelas minhas próprias mãos cautelosas.
Menos o prego! Esse o inquilino anterior deixou fincado na parede antes de se mudar, graças a deus! Se eu fosse fazer isso, provavelmente teria martelado um dedo ou dois, e quebrado todas as unhas antes de acertar. Sendo assim, apenas alinho a moldura com cuidado, até que esteja retinha, para satisfazer a minha necessidade exagerada de organização - ou, melhor dizendo, perfeição.
Me afasto dois passos para conferir o resultado.
Está perfeito. Até mesmo a minha mãe estaria orgulhosa, e ela nunca se orgulha de nada que eu faço, então sorrio satisfeita.
Emoldurado em um fundo branco, está desenhado em aquarela um par de olhos fechados, maquiados, cílios longos e, em baixo, uma frase que diz: A vida é curta, os cílios não. Esse é o novo lema da minha vida, desde ontem, quando eu achei essa peça perdida no toilete feminino do shopping Pátio Royal.
Tudo bem, admito, não estava tão perdida assim e ainda bem que eu estava munida de uma bolsa grande. O quadro estava pendurado na parede, perto do espelho, chamando por mim. Mas, bem, não estava à venda e eu precisava dele, como nunca precisei de alguma coisa na minha vida antes de vê-lo ali - bem ao alcance dos meus dedos ágeis, sem ninguém para vigiá-lo.
Ou... Espera! Teve outra coisa. Aquele vestidinho de paetê rosa pink que eu levei para o provador na semana passada. Precisava dele, como nunca precisei de mais nada antes daquilo. Por que é que eu ainda insisto em entrar em lojas que vendem produtos a preços exorbitantes que eu não posso pagar? Ah, claro! Porque eu me tornei melhor amiga de uma shopaholic - a palavra em inglês bonita para denominar uma pessoa que é viciada em comprar.
Algumas pessoas quando estão deprimidas se afundam em sorvetes. Dominique se afunda em sacolas laranjas da Hermès, e ela sempre dá um jeito de me arrastar consigo em suas terapias intensivas de compras.
Sim, ela própria. Dominique Diaz Baski, você já deve ter ouvido falar dela: Blogueira, fashionista, estilista, influenciadora e, claro, minha amiga pessoal - Mini, a única pessoa no mundo inteiro que não classifica como 'loucura' a minha paixão doentia por cor-de-rosa e organização.
Uma pena que ela nunca vai conhecer a réplica da Casa da Barbie em que eu transformei esse apartamento caindo aos pedaços. Aliás, eu apelidei carinhosamente a minha nova casa como Kitnet da Barbie - porque eu só consegui alugar um lugar de dois cômodos (30 metros quadrados), e, bem, a Barbie em questão sou eu: Barbara Bittencourt, a maquiadora.
Você provavelmente ainda não ouviu falar de mim, mas eu prometo que vai escutar.
Bom, a verdade é que eu maquiei esse cubículo alugado com tanto capricho quanto faço com o rosto dos meus clientes. As infiltrações no teto foram cobertas com tinta branca. A parede, antes um branco-bege-sujo, foi revestida de rosa claro, que é a cor de quase tudo aqui dentro: O sofá retrô que comprei num brechó, a colcha na cama de solteiro, os armários velhos da cozinha que eu mesma pintei.
Após um longo dia de trabalho duro, ficou do jeitinho que eu imaginei.
O espaço é bem pequeno, claro, a única separação entre a cozinha e o quarto é um balcão pequeno, mas as portas espelhadas do guarda-roupa conferem uma sensação de amplitude um pouco maior. Para não dizer que a minha casa inteira cabe em um único cômodo, o banheiro é separado por uma porta com privacidade.
Mas quem é que precisa de privacidade quando mora sozinho?
Nem acredito nisso. Meu primeiro apartamento! Um apartamento todinho para mim! É claro que nessa pequena reforma eu gastei todas as poucas economias que consegui juntar ao longo dos meus dezenove aninhos de vida, e ainda fiquei endividada, mas com certeza valeu cada centavo.
Quando lanço o corpo sobre o meu sofrido sofázinho de brechó, sinto sua espuma ceder, amaciada por outras tantas bundas ao longo dos anos, mas eu só consigo pensar uma coisa: Lar doce cubículo. Estou adorando ser dona do meu mini lugar.
Já é tarde da noite quando termino de arrumar tudo. Sentindo-me exausta, mas satisfeita com o resultado, empilho as caixas vazias e equilibro-as pelos dois lances da escadaria estreita, cheirando a mofo. Meu orçamento não me permitiu o luxo de pagar por um prédio com elevador.
Está escuro, e as luzes não se acendem automaticamente como deveriam. As caixas de mudança empilhadas tapam a minha visão do caminho, então eu apenas observo os meus próprios pés, tentando acertar os degraus, devagar. Um... dois... três. Já estou passando da metade quando, de repente, plaft! Num tropeço, as caixas se esparramam, ricocheteando no meu rosto.
Eu caio e o meu cotovelo bate bem na quina do degrau, causando uma dor aguda. Depois minhas costas, a bacia, os ombros, e eu vou rolando como um saco de batatas até estar no térreo. Aterrissando aos pedaços sobre um chão duro e frio.
- Droga! Au! - Gemo levando a mão até o quadril dolorido.
Estou estatelada no térreo e mal consigo me mover de tanta dor. O portão abre e, antes que eu possa soltar um som de aviso, o sujeito entra apressado e tropeça numa das caixas, fazendo um barulhão quando cai de cara na escada. Eu solto um "AU!" muito alto por que ele pisou bem na minha mão.
- Você não olha por onde anda? - Xingo.
- E você não olha por onde deita? - Rebate num tom debochado. - O que está fazendo no meio do hall? Merda...
O homem esfrega a mão direita sobre o ombro. Não está me olhando.
- Deitei para contemplar as estrelas - Ironizo. O prédio é todo fechado, não daria para ver estrelas daqui nem se eu quisesse.
Cada centímetro do meu corpo lateja de dor, mas eu me levanto. Junto as caixas de papelão esparramadas junto com o meu orgulho e volto a empilhá-las com dificuldade. O homem não faz nada mais do que levantar, dar uma ajeitada no seu Smoking social e pentear para trás os cabelos castanhos compridos até a altura do queixo, onde tem uma barba mal aparada.
Finalmente me encara.
- Você caiu? - Percebe.
- Gênio! - Reviro os meus olhos, continuando a empilhar as caixas.
- Está bem?
- Sim.
A alça fina da blusa cor-de-rosa escorrega pelo meu ombro, e eu uso a mão para ajeitá-la. As caixas se espatifam de novo, e eu solto um grunhido de raiva.
- Precisa de ajuda com isso?
- Não!
Se abaixa e pega uma das caixas, estende em minha direção. Arranco com força.
- Eu disse que não!
- Você é quem sabe. - Se rende erguendo as mãos. Com um riso, vai embora subindo as escadas.
Só depois que está longe demais para me escutar, eu solto um sonoro grunhido de dor, e amaldiçoo "filho da mãe grosseiro!". Pego as caixas todas e levo para o lado de fora, abandonando-as na lixeira rapidamente.
À noite, a rua estreita onde eu moro é pacata e silenciosa. As luzes amarelas oscilam iluminando os muros rabiscados de pichações. Tem carros estacionados em paralelo dos dois lados da rua, mas um chama mais atenção. A Mercedes muito antiga está parada bem em frente ao nosso portão. As rodas são brancas, a capota conversível de pano bege, e a lataria de um preto reluzente, muito bem encerado. Pelo reflexo no vidro fumê, vejo um vulto passar.
Um gato preto mia, e eu levo um susto quando ele passa ao meu lado rapidamente, desaparecendo para dentro do prédio. Engulo um grito. Com o coração acelerado, corro de volta para o hall.
O portão de ferro maciço range alto ao ser empurrado, e eu passo a chave. Recosto nele por um instante, até estabilizar os batimentos cardíacos. Não era ele, repito para mim mesma. Era só um gato. Era só um gato, falo baixinho. Ele não tem como me encontrar nesse endereço. De qualquer jeito, é melhor voltar logo para a segurança do meu apartamento.
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