Invasão de propriedade
Eu juro que estou me esforçando para gostar do lugar onde eu vim morar. O problema é que — apesar ter feito uma bela maquiagem na minha Kitnet por dentro — por fora, o bairro continua horrível e o edifício ainda está caindo aos pedaços.
Escondo o colar sob a blusa ao descer do metrô. E para não precisar passar perto de uns caras estranhos, eu faço o caminho mais longo. Quase cinco quadras. Já é noite, e as ruas estão pacatas. O único movimento que vejo é em um barzinho na rua de trás. Aperto os passos e chego exausta.
Meu apartamento fica bem de frente para a rua, em cima de um armazém abandonado. Olhando por fora — e por dentro também —, o prédio parece uma daquelas construções embargadas pela prefeitura, que aguardam uma data para demolição. A tinta da fachada já descascou quase completamente, tem infiltrações no teto e a parede cinza é recoberta por pichações.
O acesso é por um portãozinho estreito de ferro maciço, que range alto ao ser empurrado. Tudo nessa construção é velho, enferrujado, meio emperrado e pouco funcional. A lâmpada da escadaria, por exemplo, queimou, então eu sou obrigada a subir no escuro pelos degraus estreitos até o segundo andar.
Pego o meu chaveiro cor-de-rosa da Barbie, e enfio uma das chaves na porta. Tento girar, mas está travada. Tento a outra, não é. Volto para a primeira. Forço um pouco. Nada. Giro a maçaneta, empurro. Não abre. Tiro a chave, tento colocá-la de outro jeito. Não entra. Tento de novo, forço mais, e quando penso que está prestes a girar, CRECK!
Ela quebra do lado de dentro. Eu dou um soco forte na madeira, descontando a raiva.
— Filha da mãe!
Acho que uma casa nunca se esforçou tanto para não ser um lar, quanto essa kitnet está fazendo comigo. É como se cada centímetro desse lugar estivesse se empenhando para me expulsar.
Como se até o próprio prédio soubesse que o lugar de uma Bittencourt não é entre as paredes dessa construção caindo aos pedaços. Só que eu não sou de verdade uma Bittencourt, e não tenho grana para passar a noite em outro lugar.
Sem escolha, me abaixo para espiar o buraco da fechadura, e vejo o pedacinho da chave ali, emperrado. Tento pinçá-lo com a ponta dos dedos, mas as minhas unhas não são longas o suficiente.
Abro a minha mala cor-de-rosa de qualquer jeito, no chão sujo. Tudo ali dentro é metodicamente organizado, então eu não tenho dificuldades de encontrar a minha pinça de sobrancelhas. Uso ela para remover o pedaço partido com precisão cirúrgica.
Comemoro quando isso dá certo, e então é a vez do grampo de cabelo.
Nos filmes, essa parece uma técnica fácil. Enfio as perninhas do grampo no buraco da fechadura e fico mexendo, feito boba, tentando fazer a porta se abrir milagrosamente. Eu devia ter pensado que, se nem a chave conseguiu fazê-lo, não é o grampo que conseguiria.
Estou ocupada tentando operar um milagre na fechadura quando ouço primeiro o barulho de passos se aproximando pela escada, no escuro, depois um resmungo, e então tudo se quebrando e se espalhando pelo chão imundo. Rolando pelas escadas. Acontece rápido demais para que eu possa pensar em impedir.
— Não! Não! Não! A minha base da MAC, não! — Falo dramaticamente, pegando rapidamente os restos mortais de um frasco de base líquida estilhaçado.
Sem tempo para lamentar o luto dessa terrível perda, eu vejo todos os meus outros produtinhos espalhados pelo chão, e a minha mala da Barbie completamente virada. Com toda a urgência que a situação requer, eu começo a juntar cada um deles, abraçando-os junto ao meu peito.
— Minha paleta de contorno — choramingo. — Meu lip tint!
Vou juntando tudo e colocando de volta na mala. Sinto um aperto no coração ao ver minha paleta Naked ali, toda aberta e destrambelhada. Deslizo minha mão para acariciá-la. Sopro com cuidado, removendo a sujeira.
— Você está bem? — Pergunto para o cosmético.
— É. Acho que sim. — A voz, vinda do outro lado do corredor, me faz notar a presença de outra pessoa.
O responsável pelo desastre está caído no chão, e eu solto um grunhido de raiva ao reconhecê-lo.
— Você de novo!? — Constato irritada. — Não olha por onde anda? Olha só o estrago que fez agora!
De joelhos, eu continuo a juntar meus cosméticos caros, todos espalhados pelo chão empoeirado de concreto queimado.
— Olha o que você fez ontem na escada — ele rebate.
Então exibe em minha direção seu Iphone preto última geração com a tela trincada, como se a culpa da bagunça dele fosse todinha minha.
— Se você não andasse por aí olhando para essa porcaria o tempo todo, não ia chutar e estragar as coisas dos outros desse jeito — acuso sem me preocupar em encará-lo.
— Se você não deixasse essa... — Ele aponta para minha mala, um pouco confuso. — Que porcaria toda é essa afinal?
— Não é porcaria! — Protesto ofendida. — É a minha mala de maquiagem!
— Se você não deixasse essa mala de maquiagem no meio do caminho, não faria as pessoas tropeçarem no corredor.
Ele levanta do chão se recompondo e dá algumas batidas fracas na calça social para espanar a poeira. Está vestindo smoking de novo, como se estivesse acabado de sair de um evento de gala. Preto e branco, sem colete, mas com uma gravata borboleta e botas pretas lustrosas. Um sorriso arrogante nos lábios finos, como se pensasse que é o dono do prédio todo. Não é.
— Não tente me culpar se você não olha por onde anda!
Ele ri. Ajeita os cabelos, e desliza a língua pelo lábio inferior.
— Desculpa, eu faltei a última reunião de condomínio — fala com sarcasmo. — Então ficou mesmo decidido que o corredor principal ia virar um salão de beleza improvisado?
Reviro os olhos de um jeito exagerado.
— Há-há-há.
Fecho o zíper quando termino de juntar todas as minhas coisas. Puxo a mala para perto de mim. Vejo pelo canto dos olhos que ele atravessa até o 203, e coloca a chave na fechadura. Tinha que ser, penso. O mesmo babaca que atrapalhou o meu sono de beleza transando alto.
Ignoro a sua presença indesejada e volto a focar na minha missão: Colocar o grampo dentro da fechadura da porta.
Quase posso sentir seu olhar me examinando enquanto eu o faço.
— Que eu saiba invasão de propriedade é crime — provoca. —Então você quer se explicar ou eu já posso chamar as autoridades?
— Por que você não cuida da sua própria vida para variar? — Pergunto parando o serviço. Me levanto para encará-lo, impaciente e irritada demais para tolerar piadinhas. — Não tem mais nada para fazer?
Ele se aproxima, desafiando. Desvia do meu corpo, encosta o ombro largo na porta e engancha os dedos na maçaneta.
— Essas portas tem um truque — fala mexendo com cuidado o grampo. — Você tem que dar uma levantadinha, e... Voilá.
A porta se abre para ele como num passe de mágica.
Eu não sei se ele pensou que eu ficaria grata, mas a única coisa que eu consigo pensar é que o meu vizinho babaca — possivelmente um pervertido, um maníaco ou um assassino de aluguel — consegue abrir a porta do meu apartamento a hora que quiser.
Que tipo de pessoa sabe abrir uma porta desse jeito? Com certeza não do tipo bom.
— Arrombamento é crime — eu o lembro. — Dá próxima vez que você só pensar em chegar perto da minha porta, eu juro que chamo a polícia.
Ele ri achando graça, e se afasta. Me encara antes de entrar em seu apartamento:
— De nada, vizinha.
— Eu não pedi ajuda para você — rebato.
— DE NADA!
Ele entra e bate a porta com força.
***
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