Gatinha criminosa

Christian passa o dia todo fora. Não manda mensagens ou liga, e eu aproveito para deixar a casa em ordem. Leio um livro, tento me distrair, mas meu peito está preenchido por uma angústia que me mantém acordada depois que a noite vira madrugada.

Estou revirando no lençol quando ouço batidas fracas na porta. Eu penso que é o Chris de volta, então escolho simplesmente ignorar os chamados, deixá-lo dormindo do lado de fora.

As batidas insistem. Eu me arrasto para fora da cama com um suspiro insatisfeito. Estou vestindo uma camisola de cetim rosa-choque. Abro a porta, e eu tenho certeza de que vai ser o Christian, mas me deparo com o mágico.

Ele está com a gravata solta no pescoço, o cabelo meio bagunçado, e as mangas da camisa social arregaçadas como geralmente fica depois de beber alguns copos de cerveja pós-show. O paletó pendurado no ombro.

— Está sozinha? — Ele pergunta não muito alto.

Eu olho para as suas mãos ao invés dos olhos, porque estou com vergonha do que ele pode estar pensando agora.

— O Christian vai voltar a qualquer momento.

— Tá... — Ele reflete por alguns instantes que parecem a eternidade. Nota meu ferimento fechado com curativo. — Ele fez isso?

— Não foi nada — minto, passando a mão pelo braço cortado.

— Vem comigo. — Kenny segura a minha mão, entrelaçando os nossos dedos, me puxa para as escadas. Diz: — Sei de um lugar onde a gente pode conversar de boa.

Não tento protestar contra.

Subimos dois lances de degraus pela escadaria escura, e Kenny empurra o portão de ferro que dá acesso ao terraço. Não é bonito, nem nada. É só o chão de concreto escuro, algumas antenas enferrujadas e o barulho da água enchendo a caixa. Eu ainda estou só com a camisola de cetim rosa-choque, e a brisa gelada beijando o meu corpo me faz estremecer.

— Veste isso. — Ele põe o paletó preto sobre o meu ombro. Eu enfio os braços dentro das mangas largas. Sinto seu cheiro impregnado no tecido abraçando o meu corpo, e me envolvo um pouco mais para me aquecer. — Só para saber, eu paguei a Tabitha hoje, então não precisa correr nem nada quando cruzar com ela nas escadas.

Eu rio. Ele se senta no chão, recostando na parede. Me sento ao seu lado, abraçando os joelhos.

— Bom saber que pelo menos por isso eu não vou me ferrar.

Kenny ri brevemente, mas engole. Suas feições assumindo um tom mais sério quando me encara.

— Eu não quero me meter onde eu não fui chamado — diz. — Só que eu passei o dia todo tentando, e não consigo parar de pensar nas coisas... Quer me contar o que está acontecendo?

— Não tem nada acontecendo.

Ele ri. Derruba a cabeça para trás, coçando os cabelos. A noite é escura e não tem estrelas no céu. As poucas luzes ao redor vêm dos prédios mais altos que esse.

— Eu devia ter desconfiado com tudo que você me falou ontem, mas eu não pensei que... Merda! Você vira outra pessoa do lado dele, sabia?

— Você não devia ter se metido nisso, Ken.

— Por que está protegendo o cara?

Não estou protegendo o Christian, Ken. Eu estou protegendo você.

— Eu não estou protegendo ninguém. É sério. Fica na sua. Não tem nada acontecendo.

— Então eu estou vendo coisas? Ouvindo coisas? Todo mundo diz que eu sou louco mesmo, deve ter sido isso, né? Eu pirei de ciúme de você?

Ciúme? — Provoco, lançando o meu ombro contra o dele. Kenny ri. Sacode a cabeça, e umedece os lábios.

— É lógico que eu não gosto da ideia de você transando no quarto ao lado, quando eu queria que estivesse na minha cama, Barbie — confessa. — Vou pular a parte dos joguinhos, porque é óbvio que eu estou curtindo você.

Sorrio. Ele não percebe, mas não estava tão óbvio assim. Não para mim, pelo menos. É legal escutar isso da boca dele.

— E não vou mentir que não tenho ciúme, mas eu respeito a sua escolha. Sério. Eu não quero me meter na sua vida pessoal, nem ficar forçando nada. Tudo bem se não me curte do mesmo jeito.

Eu curto, penso, mas nem tenho tempo de falar, porque ele prossegue sem uma pausa:

— Só não me pede para ficar na minha, porque eu não consigo. Não se eu acho que ele vai te machucar. Não dá.

— Eu posso lidar com o Christian, Ken. Eu já faço isso há muito tempo.

— Então eu não estou errado? Estou? Ele ia mesmo te machucar?

— Eu não sei o que ele ia fazer — confesso com um suspiro. Desvio os olhos, porque tenho vergonha de admitir: — Ele já me machucou antes, se é isso que está perguntando.

— Merda... — Ele esfrega os cabelos castanhos, parecendo nervoso e frustrado. Me encara. — Por que você ainda fica com esse cara, Barbara?

— Nem tudo é preto no branco. As pessoas ficam em relacionamentos ruins por todos os tipos de motivos.

— Mas você? Eu não entendo como uma garota tão legal e bem resolvida pode acabar numa dessa.

— Pois é... Mulheres inteligentes também entram em relacionamentos abusivos.

— É por amor? — Ele quer saber.

Algo no tom da sua voz me faz sentir que a ideia de eu amar o Chris não parece agradável para ele. Também não parece agradável para mim, então nego com a cabeça.

— Eu costumava amar o Chris — admito. — Mas não consigo mais amar.

— Então qual o motivo?

Eu reflito. Reclino a cabeça e solto um suspiro. No começo, Christian foi uma linda rota de fuga quando a minha vida parecia uma maldita prisão. Ele me tirou da casa da minha mãe e aquilo era tudo que eu precisava no momento. Agora ele é mais como uma nova prisão, da qual eu tento, mas não consigo escapar.

Estou com ele para proteger a mim, a minha carreira, a minha identidade, e também as pessoas de quem eu gosto, inclusive Kenny.

— O Christian está exatamente onde eu preciso que ele esteja. Onde ele não vai estragar a minha vida inteira e nem ferir ninguém. É só por isso que estou com ele.

— Se você está com problemas, me deixa te ajudar, Barbie.

Eu o encaro. Nossas cabeças encostadas na parede. Os rostos próximos. Ele fala tão sério, que não parece o mesmo mágico brincalhão e irritante de sempre. Gosto do jeito que ele normalmente me diverte, mas é nesse instante de seriedade que — sem qualquer explicação ou motivo — surge um vislumbre de luz na minha mente. Kennedy segura a minha mão, e eu não tinha percebido até agora, mas é muito mais que um lance físico ou atração, eu estou mesmo apaixonada por ele.

Está em tudo: No jeito que ele me olha. No jeito que me toca, com carinho. No jeito que ele poderia estar seduzindo qualquer outra garota com seus truques de mágica essa noite, mas prefere estar aqui, falando sério comigo e oferecendo ajuda.

Eu gosto dele. E é por isso que eu não quero que ele pague pelos meus erros. Eu me coloquei nessa situação sozinha. E é assim que eu também pretendo sair dela.

— Já disse. Eu não sou uma princesa. E eu não preciso que você me resgate.

Kenny sorri. Leva a minha mão até o seu rosto, deixando o dorso passear pela barba áspera. Eu não me canso de adorar essa sensação.

— Eu sei que você é forte, Barbie feminista. Já entendi que paga as suas contas e dá conta dos seus próprios assuntos. Se eu quero te proteger, não é porque eu te acho frágil, nem nada, é só porque me importo demais com você para não me envolver.

Eu sorrio. Chacoalho a cabeça.

— Você não sabe onde está se metendo, Kennedy.

— Acho que não mesmo — admite. — Mas eu estou adorando descobrir você.

Com um sorriso, ele se aproxima devagar. Toca os lábios nos meus com cuidado, e o meu coração acelera. A mão no meu rosto, encaixada atrás da orelha. As bocas úmidas se encontrando, se desencontrando, e se reencontrando, sem nenhuma pressa. Coloco a minha mão em seu peito e o afasto com pouca força.

Desculpa — murmuro.

— Desculpa eu — ele pede baixinho, se afastando. — Esqueci que não posso mais fazer isso.

Dói como arrancar um band-aid, porque eu quero tanto beijá-lo, mas sei que não deveríamos. Não enquanto as coisas com Chris continuarem tão mal resolvidas. Se ele descobrisse talvez matasse a nós dois num acesso de raiva. Aperto os lábios em um sorriso e encosto a cabeça no seu ombro.

— O seu beijo é o meu favorito — confesso. — Se tudo der errado, você devia escrever um livro "como beijar para leigos". Seria um serviço à humanidade.

Ele ri brevemente.

— Para de me objetificar, Barbara! — Brinca. — Eu sou muito mais do que uma boca que beija bem, tá bom?

— Tem razão — eu concordo. — Você também não deixa a desejar quando a toalha cai.

Nós dois estamos rindo, quando ouço o barulho de alguma coisa passar no telhado, e meu corpo tensiona, cessando a risada.

Você ouviu isso?

— O quê?

Tem alguma coisa no telhado — eu apenas murmuro.

— Deixa eu ver...

Kennedy levanta corajoso, acende a lanterna do celular, e vai na direção do barulho, com cautela. Eu fico apreensiva. Ele aponta o celular para cima. Não consigo ver daqui.

— Barbie...

— O quê?

Ele ri. Por que ele está dando risada?

— Acho que encontramos o ladrão de calcinhas.

— Quê?

Levanto do chão com um salto e dou uma ajeitada no paletó para me aquecer. Espio na direção que está apontando a lanterna e então eu vejo: Uma gata preta se aventura no beiral do telhado com uma calcinha enganchada entre os dentes. Seus olhos verdes brilham, refletindo a luz da lanterna. Ágil, ela salta para dentro de um pequeno vão entre a parede e a caixa d'água. Kenny ilumina, e nós vemos várias peças íntimas femininas esparramadas pelo chão.

— Ei! Aquela rosa é minha! — Percebo. — Ela roubou tudo isso sozinha?

— Por que? Vai entregar ela para polícia? — Provoca.

— Pro Christian? — Debocho. — Nem ferrando.

— Vai ser o nosso segredo então. — Kenny sorri.

— Você acha que ela tem um dono?

Nega.

— Eu não acho que ninguém sobe aqui há meses — diz. — Seu Castanhares já teria tocado essa gata daqui faz tempo se soubesse. Aquele velho é um bronco.

— Você devia cuidar dela. — Dou uma cotovelada fraca.

— Só uma gatinha criminosa é suficiente na vida de um cara.

Kenny deixa escapar um riso.

— Ei! Não me chama de criminosa!

Eu o empurro fraco. Ele dá risada, me puxa. Os braços ao redor da minha cintura. Nossos olhares se encontram, muito perto. Ele morde o próprio lábio. Não precisa dizer nada. É só o jeito que ele me olha e eu tenho certeza: Kenny está apaixonado também. E eu não sei dizer se acho esse momento mais perfeito ou mais assustador. Enquanto o Christian estiver por perto, isso — nós dois — não vai acontecer.

— Posso fazer uma pergunta? — Assinto. — Quem roubou aquele colar?

Isso me pega desprevenida. Eu pedi para ele esquecer o colar. Era o que ele já deveria ter feito há muito tempo.

— Por que esse assunto agora?

— Só preciso saber — insiste. — Disse que ganhou de um ex. Foi o policial?

Olhando nos olhos castanhos dele, não consigo contar uma mentira convincente.

— Não ganhei de ninguém — respondo.

— Foi você?

— Posso ter pegado na casa de uma cliente — admito desviando os olhos, envergonhada. — Mas não foi por mal, foi só... impulso. Eu ia devolver.

Em silêncio, ele apenas assente. Eu não faço ideia do que ele esteja pensando agora, e isso me assusta. Ele me acha imoral? Ele ainda gosta de mim apesar disso? Ele me odeia? Acho que sim, pelo jeito que desvia o olhar do meu, reflexivo. Me solta.

A gente devia descer antes que o Chris apareça — murmuro.

Kenny assente. Descemos as escadas escuras em um silêncio torturante, mas em algum ponto a sua mão se engancha à minha. Na porta de casa, tiro o paletó e devolvo para ele.

— Você não vai roubar? — Ele ri.

Eu não acho graça, e a minha expressão facial diz isso.

— Desculpa. Foi insensível? — Percebe. — Só estava tentando quebrar o gelo.

— Tudo bem, Kenny. — Suspiro. — Não precisa fingir que você está "ok" com o fato de eu ter cometido um crime. É uma merda, eu sei.

— Não tenho a ficha tão mais limpa que a sua, Barbie. E Cleptomania é tipo uma doença, né? Você não controla?

Agora eu dou risada, mas é de um jeito meio frustrado.

— Não ajuda se me chamar de "louca incontrolável" também.

— E como eu posso ajudar você?

—Eu acho que não pode. — Suspiro longamente e abro a minha porta. — Mas foi bomconversar com você. Boa noite, Ken.

***

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