Charminho de Mágico

Ao acordar, não consigo me lembrar com clareza qual parte da minha noite foi real, e qual foi apenas um sonho, mas tem uma carta de baralho com o meu nome assinado, jogada debaixo da minha porta.

Kennedy.

Preparo uma vitamina verde de abacate, e tomo sentada no meu sofá cor-de-rosa, onde o livro foi abandonado de qualquer jeito. Folheio as páginas, até encontrar o capítulo onde parei ontem. Cruzo as pernas como um índio, e prossigo a leitura. Esforço-me para me concentrar nas palavras, mas a minha mente está muito dispersa.

Acabo deixando o livro de lado e pegando o celular. Várias notificações. Entre elas, uma me chama a atenção:

@Misterioso.quem começou a seguir você.

Me pego rolando pelo feed dele, tentando descobrir qualquer coisa que eu ainda não saiba, mas o perfil existe há pouco tempo, e ele não posta nada muito particular. Só compartilha coisas de mágica que acha legais, e às vezes fala sobre os seus shows.

Sigo de volta.

Na minha página inicial, rolo o feed por vários minutos, curtindo os vídeos de gatinhos, e os tutoriais de maquiagem. Vejo uma foto nova de Dominique, usando um traje típico indiano, cor de laranja. Os cabelos enrolados em um lenço, somente a franja curta aparente, caindo sobre as sobrancelhas. Ela está em posição de meditação, com as palmas unidas e as pernas cruzadas. A legenda:

"Um encontro comigo mesma". Fico feliz que ela esteja tirando esse tempo para si, mas sinto falta de quando conversávamos diariamente. Clico no "coração". Continuo rolando o feed, e uma mensagem salta no topo da tela.

@Kyle.molina: Quer sair hoje?

Eu faço uma careta de desgosto. Posso estar precisando de uma transa, mas eu tenho um senhor orgulho que não me deixa me humilhar a esse ponto.

@Barbie.makeup: Tenho compromisso hoje, quem sabe outra hora.

@Kyle.molina: Quando? Sabe que não fico na cidade pra sempre...

@Barbie.makeup: Agenda lotada no trabalho essa semana. A gente vê.

@Kyle.molina: *carinha triste* saudade de te beijar.

Eu reviro os olhos, pendendo a aceitar o convite, mas me proíbo. Apago a tela, deixando-o com nada mais que o meu silêncio como resposta. É melhor eu voltar para o meu livro.

Já é fim de tarde quando eu finalmente termino a leitura. O meu estômago está roncando, mas eu apenas o forro com uma maçã pequena, depois me preparo para tomar um banho.

Passei o dia todo dentro de casa, revezando entre o sofá e a cama, então dispenso a necessidade de lavar o cabelo. Giro o registro, abrindo a ducha morna e cubro os meus fios com uma touquinha de plástico rosa.

Não faço nada de especial, nenhum mimo para a minha pele, então não demoro mais do que dez ou quinze minutos. Ao fechar a água, eu me sinto estranhamente observada. Estou para sair, quando me deparo com ela ali, perto do ralo, me encarando atenta e as anteninhas se movem.

Não penso. Um grito estridente apenas estoura a minha garganta ao me ver completamente nua e desamparada, bem diante de uma enorme barata saída do esgoto. Analiso as minhas opções. Não tenho um chinelo em mãos para atacá-la. Se eu mexer na cortina, ela pode se assustar e correr, e eu posso nunca mais encontrá-la. Não vou conseguir dormir em paz sabendo que tem uma barata dividindo o quarto comigo.

Antes que eu decida, ouço batidas firmes na porta da frente.

— Tudo bem aí, Barbie? — Reconheço a voz do meu vizinho.

Eu me divido entre pensar "puta merda!" e "graças a deus!". Acabo optando pelo "graças a deus!". Nunca me senti tão grata pela péssima acústica desse prédio velho.

— EU PRECISO DE AJUDA! — Berro sem me mover.

Ele dá outras três batidas.

— Abre a porta!

Eu olho para a barata. Ela olha para mim. Considero.

— NÃO DÁ! — Decido. — Você vai ter que fazer aquela mágica! É urgente!

— Tá!

Eu ouço o som da fechadura se mexendo. Tec, tec, demora só um instante e então o ranger da porta abrindo.

— Aqui! No banheiro! — Chamo.

— Posso entrar?

— Rápido!

A porta sanfonada não está travada, então ele entra. Com cuidado, eu afasto a cortina rosa do box, encobrindo o meu próprio corpo com ela, sem jamais desviar os olhos da dita cuja.

— O que foi? — Ele parece assustado.

Eu sinalizo a bicha com os olhos, e então ele a vê.

— Puta merda! Sério? Uma barata?! — Ele esfrega o cabelo com as duas mãos e bufa. Me dá as costas. — Eu pensei que você estivesse morrendo ou, sei lá. Está doida de gritar desse jeito?

Volta a me olhar. Estou com os olhos arregalados, me encolhendo no cantinho da parede, o mais longe possível do inseto.

— Faz sua mágica aí, ou o que tiver que fazer! Mas some com essa bicha daqui, pelo amor de deus, Kennedy!

Ele ri. Sacode a cabeça em negação. Tira o chinelo do próprio pé, e ataca nela, acertando em cheio e de primeira. Uma mira de dar inveja. Meu corpo se derrete em uma sensação de alívio instantâneo.

— Satisfeita?

— Tira ela daqui! — Soa como uma súplica, enquanto escondo o rosto.

Obedecendo, ele junta a barata esmagada com papel higiênico, e joga na privada, dando descarga em seguida. Não consigo evitar uma careta de nojo ao assisti-lo fazer.

Meus ombros relaxam.

— Fico te devendo eternamente! — Agradeço.

Ele me alcança a toalha rosa. É quando eu lembro que estou completamente nua, envolvida em uma cortina de banheiro, e me sinto ridícula.

Enrolo o corpo na toalha, prendendo-a sobre o seio direito. Arranco a touquinha do cabelo, engancho no registro e saio do chuveiro. Kennedy me olha e dá um riso breve.

— Poxa! Achei tão sexy aquela coisinha na cabeça.

Eu reviro os olhos. Ele está na pia lavando as mãos, de modo que interrompe a passagem estreita da porta. Fica confuso com a quantidade de cosméticos que eu tenho ali.

— Isso é sabonete? — Pergunta sobre o frasco amarelo, lendo o rótulo, mas está em francês.

— Esse é só para o rosto — explico. — Para as mãos é esse aqui.

Entrego o frasco correto para ele, que enche a palma. Enquanto esfrega, continua analisando os muitos produtos que eu tenho organizados no nicho ao lado do espelho.

— Para que tanta coisa, hein? — Se deixa perguntar com o cenho franzido.

— Óleo, hidratante, tonificante, antioxidante, espuma, máscara — vou enumerando enquanto aponto os frascos um a um. Não são tantos assim, e estão muito bem organizados.

Ele seca as mãos na toalha de rosto rosa. Anotação mental: Lavar a toalha. Ele tocou numa barata com essa mesma mão.

— O que é isso? — Pega a minha escova facial, curioso. Antes que eu possa responder, ele aperta o botão, e ela começa a tremer. — Uuh... É algum tipo de console sexual?

Parece interessado e está rindo.

— Não é um console! — Me ofendo. Puxo da mão dele, com raiva, e desligo. — Nem parece um console.

— Vibra como um. — Ken provoca entre risos.

— O celular também vibra e não é um console!

— Isso não é um celular. — Rebate com gosto.

Agora examina a própria imagem refletida no espelho, de um modo narcisista. Coça com a ponta dos dedos a barba que começa a crescer em sua mandíbula marcada. Reparo que ele está sem camisa. Seu peito é liso, raspado. Higiene e vaidade são características que eu aprecio num homem. O abdômen é forte, sem chegar a formar gominhos. Droga! Ele é gato!

Desvio os olhos. Por que eu estou secando ele?

— Isso serve para massagear e limpar o rosto — explico enquanto guardo no lugar.

Desconfiado, ele cede. Sacode os ombros.

— Que seja.

Dá uma ajeitada no cabelo e caminha para fora do banheiro. Analisa a minha decoração enquanto passa. Anda até o balcão da cozinha e se reclina nele, apoiando os cotovelos. Vê a carta de baralho assinada ali e engancha entre os dedos indicador e médio. Pondera um pouco analisando ela.

Eu ajeito a toalha para não cair, e vou até o meu armário. Abro a gaveta para caçar uma roupa limpa.

— O que aconteceu com você ontem? — Kennedy quer saber.

— Não estava aqui — minto.

Pego o meu pijama e fecho a gaveta com uma batida.

— Estava sim — ele rebate, convicto. — Só não entendi porque não quis me atender.

— Eu estava ocupada — minto de novo.

Caminho até a porta de entrada e a abro. Arqueio as sobrancelhas em um discreto sinal de: Dá o fora!

— E hoje você vai estar livre? — Ele não se move.

Eu cruzo os braços, impaciente.

— Hoje você não se apresenta — lembro. — E eu preciso me vestir agora. Então... se me der licença...

Aponto para a porta. Ele ri. Umedece o lábio com a língua.

— E aquela coisa de 'fico te devendo eternamente'? — Kennedy cobra o favor, pretensioso.

Ele caminha em minha direção. Os olhos castanhos fixados aos meus. Com uma mão empurra a porta de madeira até fechar. Agora estamos perto demais, eu ainda estou sem roupa — só de toalha — e meu coração acelera.

O jeito que ele passa a língua nesse lábio, faz a sua boca parecer extremamente apetitosa.

— Pode começar a me pagar se quiser — provoca.

É como um balde de água fria. Kennedy sempre sabe a coisa errada para dizer.

— Não sou prostituta, seu babaca!

Desvio do seu corpo para passar, e nossos ombros se esbarram. Ele está rindo.

— Não foi isso que eu quis dizer!

Estou irritada. Me viro e o encaro.

— Mas foi o que disse! Você matou uma barata... grande coisa! Não vou chupar seu pau por causa disso! — Estou falando alto.

— Eu não ia mandar você...

— Te orienta, Kennedy! — Interrompo. —Vai caçar outra garota para cair no seu charminho de mágico, porque comigo isso não cola. Não ficaria com você nem que fosse o último homem vivo do planeta, se quer saber!

Ele abre a boca para responder, mas fecha sem dizer nada. Umedece o lábio outra vez, só então consegue soltar:

— Tá... —Arqueia as sobrancelhas. Engancha os dedos na maçaneta, saindo de costas. — Então eu vou indo lá... e... — Ele hesita, parando junto ao batente antes de sair. — Desculpa... eu não quis te ofender.

— Some logo da minha frente, mágico! — Eu esbravejo.

Bato a porta na suacara e passo a chave. Eu odeio, odeio, odeio, odeio Kennedy.

***

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