Cartas na mesa

@TheRealDominique: Hey, Barbie. Só queria que soubesse que eu li a sua nota e sinto muito que isso tenha acontecido com você. Me magoa demais perceber que você nunca confiou em mim para contar essas coisas. Eu teria te amado do mesmo jeito, fosse você uma herdeira, uma bastarda ou uma pessoa qualquer. Eu teria te apoiado se tivesse problemas com homens, com dinheiro, com a justiça até. Eu teria estado ao seu lado, Barbie, e eu odeio o mal que esse homem fez a você! Mas quando alguém em quem se confia mente assim, por meses e meses, não dá para fingir que está tudo bem. Eu preciso de tempo para processar tudo isso, mas desejo só o melhor para você. Namastê.

Aperto os lábios em um sorriso triste, encarando a tela. É uma sensação agridoce, que eu não sei explicar. Por um lado, eu queria não ter magoado a Dominique, me sinto mal por isso. Por outro, é reconfortante perceber que Christian estava errado. As pessoas certas vão me amar pelos motivos certos, ainda que eu erre às vezes.

Dessa vez eu errei bem feio, admito, mas estou mesmo disposta a limpar a bagunça. A começar pela minha bagunça interior. Tenho fugido disso por anos, mas acho que uma boa terapia pode me ajudar a lidar com todos esses traumas — os recentes e os antigos, para eu nunca mais precisar roubar. Quero muito crescer acima dos escombros e me tornar uma pessoa melhor.

***

Desperto com batidas fracas na porta.

Peguei no sono deitada no sofá com o celular em mãos, e as molas antigas rangem quando eu levanto a cabeça para tentar enxergar pelo vidro. O sol ainda nem começa a rasgar o céu, então eu sei que é madrugada.

— Quem é? — Minha voz ecoa arrastada e sonolenta.

Não tenho resposta. Apenas outras três batidas na madeira. Esfrego o rosto, despertando aos poucos.

— Tabitha? — Arrisco.

— Advinha de novo.

Em um único salto, eu já estou em pé destravando a porta, sem sequer lembrar de dar uma ajeitada no visual para parecer decente. Estou no meu pijama de cetim rosa-choque, com a máscara de dormir enganchada à cabeça, e devo estar totalmente descabelada.

— Oi.

Meu coração bate-rápido. Da última vez que eu o vi, Kennedy estava deixando esse prédio espatifado em uma maca ensanguentada. Agora está de pé bem diante de mim. A barba bem maior do que eu me lembrava, os cabelos por pentear. Veste uma camiseta branca, ninguém devia ficar tão bonito com o visual recém-saído da prisão. Eu não consigo dizer ou fazer nada. A minha língua trava. O corpo também.

Ele primeiro sorri, mas, ao notar os meus ferimentos, tudo nele muda: A postura, o olhar, a voz. Toca o meu rosto com cuidado. Se aproxima e deixa um beijo sobre o hematoma arroxeado. Sinto a fricção da sua barba em minha pele e o aroma do seu perfume, como uma droga viciante.

— Você não estava na cadeia? — Finalmente consigo perguntar.

— Minha irmã pagou a fiança. De novo. Como você está?

Se afasta um pouquinho para me encarar.

— Não fui eu que levei um tiro. — Sorrio. Ele sorri. — Como você está?

— Melhor agora.

A mão enganchada atrás da minha orelha. Sinto vontade de beijá-lo, mas desvio os olhos. Tem muita informação ainda sendo processada pela minha cabeça. Tanta coisa aconteceu e mudou em tão pouco tempo.

Da última vez que eu chequei, nós éramos amigos e ele não era herdeiro de nenhum império bilionário.

— Acho que a gente tem muito o que conversar — confesso.

— Trouxe a Vodka e o Grenadine. — Kenny exibe as garrafas. — Posso te fazer um drink enquanto a gente fala?

Concordo. Fecho a porta depois que ele entra. O relógio marca quatro e qualquer coisa da manhã, mas eu acho que as madrugadas se tornaram o meu horário favorito para ter conversas íntimas e filosóficas, de preferência com ele. Sento na banqueta e apoio os cotovelos no balcão.

— Sem açúcar? — Kenny se certifica, mas eu passei por tanta coisa recentemente, que, quer saber...

— Eu mereço um pouco de doce na minha vida hoje. — Ele ri. —Não acredito que o Christian te deu um tiro! Eu jamais pensei que ele iria tão longe! Como isso aconteceu?

— Ele começou. Ficou me provocando, falando merda — conta de costas para mim, enquanto prepara a bebida. — Acho que ele estava tentando me tirar do sério de propósito. Eu não ia cair na dele, juro. Mas daí ele soltou seu nome, tipo... — Ele se interrompe. — Não vou repetir o que ele falou, mas eu perdi a cabeça e meio que soquei a cara dele...

— Socou a cara dele? — Levanto uma sobrancelha.

— Depois ele meio que puxou a arma, aconteceu tudo muito rápido. Ele podia ter me matado se quisesse. Achei muito gentil da parte dele me acertar de raspão, se quer saber.

Dá risada, irônico. Só consigo pensar: Eu odeio o Christian.

— Você não sabe o inferno que eu passei na delegacia sem ter notícia sua — confessa. — Sei que você não precisa de um herói, nem nada, mas eu estava preocupado. Espero que não me odeie por ter mandado o Boyanov te vigiar.

— O Frank me deu um baita susto — conto entre risos. — A Tabitha enforcou ele com um taco cheio de arame, o pescoço dele ainda está todo cortado.

— Aquela Tabitha? — Kenny arregala os olhos, fazendo um gesto para enaltecer a pouca altura da garçonete.

— Devia considera-la na próxima vez que for contratar um guarda-costas — brinco. — O que ela tem de pequena, ela tem de furiosa.

Nós dois damos risada. Por alguns instantes, só estamos nos divertindo juntos do mesmo jeito de sempre, mas daí ele me olha, coloca o copo do meu drink favorito no balcão à minha frente, e nós dois sabemos que tem muita história mal contada entre a gente.

— Cartas na mesa, mágico?

Ele assente.

Puxa o banco para se sentar à minha frente. Entre um gole e outro, Kennedy me conta sobre como foi de futuro-presidente da companhia Biscotti, para mágico de bar morando num bairro decadente. Fala sobre as pressões que tinha que aguentar, e sobre como a sua saúde mental acabou no buraco até o ponto de ter um colapso.

Quase todo mundo se virou contra ele: O pai, os amigos, a namorada, de modo que ele resolveu fugir daquele mundo e veio parar aqui.

— Jess é muito preocupada, por isso o Frank sempre aparecia para saber se eu estava vivo e bem. — Ele ri. — Ela também sempre tentava me arrastar de volta.

— Por que nunca me falou disso?

— Eu sei lá. Você não sai por aí dizendo "Oi, eu sou Kennedy Biscotti, herdeiro de uma fortuna bilionária". — Sacode os ombros. — É legal quando as pessoas se aproximam de você sem nenhum segundo interesse.

Não posso dizer que não me sinto enganada, mas entendo ele.

— Você sabia sobre mim o tempo todo?

— Não o tempo todo. Fui juntando as peças aos pouquinhos, tentando entender quem você era. O problema é que quanto mais eu te conhecia, mais encantado por você eu ficava. Você tem noção do quanto é cativante, Barbara?

Eu coro um pouco.

Adoro descobrir os segredos dele, mas preciso admitir que me sinto meio estúpida porque Kenny sempre foi bom em decifrar minhas mentiras, e eu jamais teria suspeitado dele assim.

— Podemos não mentir mais um para o outro? — Peço. — Gosto quando você é sincero comigo.

Ele assente.

— Também gosto quando você é sincera, mas acho que você já sabe demais sobre mim, e continua não me contando tanto quanto eu adoraria saber de você, Barbara.

Apoia os cotovelos no balcão e me encara.

— E o quanto você quer saber?

— Tudo!

— Acho que não dá para dizer tudo sobre mim em uma noite só. — Rio.

— Então acho que eu ainda vou ter te roubar outras madrugadas, se não se importar. — Kenny dá risada.

— Eu não me importo.

Então eu conto sobre a minha mãe, sobre o Chris, sobre roubar. Falo sobre o meu passado e sobre o meu presente. Conto tudo que ele precisa saber sobre o #NãoSilencieAsMulheres. Falo da minha aparição na TV, e dos últimos eventos que, mesmo conturbados, ainda me deixam orgulhosa. A minha carta aberta teve milhares de compartilhamentos online, e eu estou adorando descobrir a proporção que a minha voz é capaz de tomar.

— Precisa saber que ainda acho o seu posicionamento político atraente.

Ele beberica um gole do drink e me oferece. Sua mão firme ao redor de um copo gelado. Seu pomo de adão se movendo ao deglutir uma golada. Precisa saber que ainda acho sua boca atraente, quero dizer, mas só dou risada. Sei que estou pensando sob efeito do álcool.

Puxo o seu braço esquerdo, e meus dedos finos deslizam pela tatuagem em preto e vermelho no pulso, fazendo um contorno.

— A dama de copas... Becka — falo. — Vocês namoraram por muito tempo?

— Um ano e sete.

— Você gosta dela?

— Estou lisonjeado com o seu ciúme, Barbara. — Kennedy se gaba com um sorriso.

Odeio a facilidade com que ele se esquiva de tudo aquilo que não quer responder.

— Isso não responde a minha pergunta! — Rebato. — Você gosta dela?

— Como eu posso explicar...? — Pondera. Agora a sua mão está segurando a minha. — Eu estou mais ligado ao presente do que ao passado no momento, Barbie. Isso responde sua pergunta?

— Seria mais objetivo se dissesse "sim" ou "não".

— Não posso responder "objetivamente" a uma pergunta subjetiva.

— Não tem nada de subjetivo em "você gosta dela, sim ou não? ".

Kennedy dá risada.

— O que você está tentando me perguntar de verdade, Barbara?

Eu suspiro. Odeio ele, penso, só que não odeio. Odeio o jeito que ele me decifra, só que também não odeio isso. Adoro tudo nele, esse é o problema. Adoro ele!

— Quero saber se você gosta de mim por mim — confesso. — Ou se gosta de mim porque eu te lembro dela.

— Bom, sendo bastante subjetivo... — Ele bebe um gole. — A minha ex tinha uma opinião política forte, mas era bem diferente da sua, e eu nunca achei isso sensual. Ela era muito inteligente, mas ao mesmo tempo não tinha conteúdo. Era ambiciosa, mas nem um pouco modesta. E ela tinha regras bem estritas sobre quando eu podia beijar ela. Tinha regras bem estritas sobre tudo, na verdade. E por mais que eu a adorasse, Barbara, sempre parecia que eu estava fazendo alguma coisa errada, então... se for para tirar algo positivo de tudo que me aconteceu, eu fico grato pelo namoro ter terminado, e por ter conhecido você.

— Por que não me dá a resposta objetiva? — Insisto, meio alta demais de bebida para processar tamanha subjetividade.

— Te conhecer me fez perceber que você não se parece nem um pouco com ela — resume. — E você é a minha "Bittencourt" favorita. Gosto muito mais de você.

— Tem certeza? — Rio, disfarçando o quanto fico satisfeita com a resposta. Provoco: —Porque eu também tenho uma regra muito estrita sobre quando você pode me beijar.

— Mesmo? E qual é? — Parece curioso.

— Ã-hã. A regra é: Você devia estar fazendo isso agora.

Kennedy ri brevemente. Engancha uma mão na minha nuca, e nossos lábios se encostam, entreabertos. Um beijo delicado. Só bocas, sem línguas, e ele se afasta devagar.

— Sendo um pouco mais objetivo — diz. — Eu roubaria um banco com você, Barbara Vazquez.

— Para de dizer isso! — Eu o empurro, fraquinho. Um riso escapando sem querer. — Nós não vamos roubar um banco, Kenny.

Ele dá risada.

— Eu sei que não. — A mão grande ainda na minha nuca, imbramada entre fios claros. — O que eu quero dizer é que com você vale a pena o risco de sofrer um tiro ou acabar na cadeia, pela chance de levar o prêmio para casa.

Não consigo evitar um sorriso.

— Eu sou o prêmio? — Levanto uma sobrancelha, parecendo ofendida.

— Ai, droga...! Não quis dizer que você é um objeto, um troféu... — Se enrola. — Quando você repete, não soa do mesmo jeito que eu imaginei.

Eu só dou risada, sacodindo a cabeça em negação.

— Tudo bem... — Cedo. — É controversa, mas ainda é a melhor declaração de amor que eu já escutei.

— A melhor de todas?

— A originalidade vale muitos pontos. — Rio.

Ele me beija de novo, dessa vez com línguas. Engancho a minha mão no seu pescoço, sentindo a pele morna. Ele se curva, deitando o meu corpo sobre o balcão, a boca desliza pelo meu rosto, encontra a minha orelha para sussurrar:

— Não posso ser seu amigo, se eu nem consigo manter minha boca longe de você, gatinha. — Dá um sorriso com os lábios bem perto dos meus.

— Quer saber? Acho que eu já tenho amigos demais. — E o puxo para o beijo outra vez.


***

Comenta aqui de qual cidade você é pra eu saber em que lugares essa história chegou ? <3

E não esqueça de votar!!!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top