Capítulo 31

9002 palavras - Arco festa

Por Edan

Dia de volta as aulas, não sei se fico feliz ou totalmente entediado em voltar para a escola. Claro que acordar cedo, ter trabalhos para fazer e provas não me atraem em nada, nem meu distante lado masoquista gosta disso. Mas também, ficar o dia todo mergulhado no tédio é outra coisa que sinceramente não estou nem um pouco afim de encarar.

Preciso aprender a me decidir melhor sobre algumas coisas.

Olho para meu lado no sofá, que está vazio. Normalmente a Carol dorme comigo tanto na minha cama, quanto aqui no sofá, em cima de mim. Mas hoje ela não pode vir dormir aqui por precisar ficar um pouco em casa. Segundo ela, é para seus pais não ficarem a enchendo das suas frequentes saídas, e também sobre o fato de quase sempre dormir fora. Entendo ela e seus motivos de quererem Carol por perto, fora que essa garota sozinha pode fazer um estrago bem grande. Mas acordar sozinho depois de ser tão mal-acostumado é bem solitário. Além disso, estou sofrendo de antecedência, acordei pelo menos meia hora antes do que deveria, e estou morrendo de cansaço por ter conseguido dormir apenas no meio da madrugada.

Me ajeito para deitar de forma mais confortável, me movendo bem lentamente. Fico encarando o teto, mergulhado na penumbra que é minha casa. Minha vontade de voltar para a escola está mais baixa do que eu esperava. Eu realmente devo me levantar?

Será que devo?

Eu poderia ficar aqui quietinho, deixar o dia passar, que não daria em nada mesmo. Minha real desculpa para me levantar todos os dias era acreditar que algo de bom poderia acontecer comigo caso eu continuasse tentando, mas até recentemente eu acabei perdendo a fé nisso...

Eu sei que não vai acontecer. Posso estar desistindo fácil, eu poderia contar com o Leandro, a Raquel e novamente com a Anne, mas a realidade é que não quero contar com eles, eu desisti mesmo. Não quero que meus amigos usem de seu tempo se preocupando comigo.

Existem tantas coisas que eu quero para eles, tantas coisas boas que espero que aconteçam com todos eles, mas que não vão acontecer enquanto eu estiver aqui.

Cada um dos sorrisos que espero deles, da minha querida irmã Raquel, do meu melhor amigo Leandro, e também da chata da Anne... Não apenas eles que são mais próximos, espero isso para todos os demais. Iris, Tamires, Carol, e todos os outros, desejo o mesmo a eles. Eu espero demais que eles fiquem e sejam felizes, assim eles podem me esquecer de uma vez... Para que não sofram quando tudo finalmente acabar, e eu não estiver aqui. A última coisa que quero deles é preocupação. Não quero ser um peso ainda maior para eles.

Ergo meu corpo, quase que em um movimento automático, deixando o sofá e indo para a cozinha. Meus olhos passam pelo vaso, posso ver como a rosa negra novamente se tornou caída, suas pétalas se desprendiam, por algum motivo entendido que significa, ela está novamente envolta nas sombras, igual como estou agora. Sombras tão nítidas que posso enxerga-las passando a minha volta. São frias, mórbidas, cada toque delas em mim parecem roubar mais e mais o pouco de vida que ainda tenho.

Essa é a sensação que sempre tenho, todas as vezes que minha mente é tomada pela escuridão, uma parte de mim desaparece. É o sinal que a vida está me deixando cada vez mais. Eu mal sei como consigo fingir que estou bem, meu corpo inteiro dói, minha mente grita coisas que deixei de tentar entender, mas sempre sei de algo, é uma eterna súplica para que tudo acabe...

Me vejo de frente para a pia da cozinha, novamente com uma faca a minha frente, que nem mesmo sei de onde ela surgiu. Eu preferiria uma corda e pendurar no meu quarto, mas não tenho uma corda aqui, e nem um lugar na casa onde pendurar, e remédios não são uma opção viável, então... Terá que ser dessa forma.

Tenho certeza que ninguém vai notar se eu faltar, ou melhor, sumir de um momento para o outro. Se eu for agora, quem seria o primeiro a vir aqui e descobrir... Talvez meu tio, ou... Talvez a Anne, provavelmente ela entenderá que perdeu a nossa aposta, afinal eu não me importo nem mesmo com minha vida. Bem, isso não deve ser pensado... Eu sei que fiz o que pude por eles, por todos eles, mas também sei que não posso fazer nenhum deles feliz de fato, afinal eu não sou útil, não tenho um propósito... Mas anseio para que todos sejam felizes...

Pego a faca, olhando para a lâmina, a virando para mim. Como na viagem, a escuridão eterna está me chamando por mais uma vez, e eu quero abraçar essa escuridão, e ser abraçado por ela para nunca mais voltar.

- Pai, mãe... Vocês estão ai? Estão me observando agora?... Se estiverem, por favor... Desviem seus olhos de mim...

Fecho meus olhos, respirando fundo. Aperto a faca com mais força.

É agora.

Meu celular apita de repente de forma bem barulhenta na sala, acabo dando um pulo de susto, fazendo todos os meus pensamentos desaparecerem de imediato. A faca se desprende da minha mão na hora, caindo dentro da pia vazia e pouco molhada. Fico sem reação, me recuperando lentamente de tudo isso. Novamente a mesma sensação de antes, o mesmo tremor no meu corpo, medo.

Balanço a cabeça, abrindo a torneira e jogando um punhado de água gelada no rosto. Tudo está em silêncio, sendo rompido apenas pela minha respiração que está descontrolada. Seco meu rosto com a barra da minha camisa, deixando a cozinha, encontrando meu celular deixado sobre a mesa de centro. Estranho, não lembro de ter deixado ele aí na noite passada. O pego e vejo uma mensagem na tela.

"Bom dia Edan. Está ansioso para a volta às aulas? Estou ansiosa por isso, finalmente de volta a grande e chata rotina... E também ansiosa para te ver hoje! Não falte, senão vou na sua casa puxar sua orelha, e você sabe que eu faço isso mesmo!"

Anne.

Não sei o que dizer. De longe e sem saber, a Anne conseguiu me impedir de fazer algo muito grande. Nem eu mesmo sei mais o que aconteceria se não fosse por ela, não sei o quão longe iria dessa vez... Provavelmente eu teria cruzado essa linha.

Leio novamente sua mensagem, sentindo um choque passando por todo o meu corpo, acompanhado de um pavor. Me lembro de várias coisas que ela me disse antes. E eu não sei como, mas se eu fizesse qualquer coisa, sei que seria Anne quem me encontraria... Ela quem abriria a porta da minha casa me procurando, e me encontraria ou no chão com marcas da faca no meu corpo.

Eu sequer consigo pensar qual seria a reação em cada momento, o olhar dela ao me ver dessa forma, completamente sem vida. Não consigo imaginar quais seriam seus pensamentos, muito menos no choque ou o desespero que ela sentiria na hora... Não, a Anne não deve passar por isso. Ela não merece passar por isso. Não posso fazer isso com ela.

Passo as mãos pelo rosto, me sinto aflito da cabeça aos pés. Eu tenho que sair daqui. E rápido.

*****

Nem sei o quão rápido eu me vesti hoje. Peguei as primeiras roupas que vi, as vesti correndo, agarrei minha mochila e já estou me colocando para fora de casa, junto com ração para o Mítico e da pequena Kayle em mãos. Gosto de colocar uma boa quantidade para ele, para que possa ficar alimentado pelo menos até de tarde, mas ainda não sei a quantidade de ração para uma gata, mas hoje vou colocar um pouco a mais. Não voltarei para casa tão cedo hoje.

Eu o encontro deitado ao lado da porta, ele parece cabisbaixo, e bem ao lado dele, deitada bem acolhida está a gatinha que ele me fez adotar quando saímos para caminhar. Eu me lembro bem quando ele correu em direção a algumas caixas e lá estava ela, encolhida e assustada. Eu mesmo já tinha me sensibilizado em ver a pequena ali sozinha, eu não conseguiria deixar ela ali sozinha, e ainda mais com o Mítico com um olhar preocupado e ainda mais chorando... Acho que me pedindo para que eu fizesse alguma coisa... Assim peguei a gatinha da rua e adotei ela. Enquanto voltávamos para casa, escolhi o nome de Kayle.

Assim que meu cachorro me vê, posso encontrar alguma surpresa em seus olhos. Ele se aproxima de mim em silêncio, juntamente a pequena gata com miados baixos, cada um lambendo uma das minhas mãos, acho que me pedindo para afagar suas cabeças. É isso que faço, em uma das minhas péssimas tentativas de ser carinhoso, me abaixo em frente aos dois, acarinhado os dois. Aliás, o Mítico nunca fez isso pelas manhãs, será que hoje ele sentiu o que eu estava fazendo?

Ignoro isso, coloco a ração de ambos no chão, tranco tudo e saio de casa. Somente agora que já estou a caminho da escola, vejo como o clima está hoje. O céu está nublado, com uma aparência de chuva muito grande devido as nuvens em tons de cinza escuro, está ventando de leve e incessantemente... Mas em contraparte ao clima de chuva, está bem abafado, quase sem nenhum vento.

Não sei se gosto desse clima, ele é estranho.

Agora que penso, aconteceram tantas coisas nesse mês de férias, que mal consigo acreditar que eu tenha ficado só um mês fora. A viagem, meu aniversário, minha prima Gisele vindo a mim me pedir ajuda. Tudo isso faz parecer que se passou muito mais tempo do que realmente foi. A sensação de ter sido um pouco de uma vida diferente me agradou.

Porém agora devo voltar a minha vida normal, vida essa que tentei arrancar a alguns minutos atrás, mas fui impedido. Nem sei o que dizer a mim mesmo. A sensação de estar em casa parece pior, eu mesmo não sei definir. Preciso distrair a cabeça, tudo se parece com uma grande armadilha para mim. Não, pensar nisso não ajuda.

Olho em volta, o caminho que sempre costumo fazer. Observo os comércios fechados, as árvores tomando um ínfimo espaço nas calçadas, os sons dos veículos a poucas ruas de distância. O mesmo mundo de todas as manhãs que caminho para a escola. Não é tão agradável quanto acordar e ver muito matagal e árvores em uma casa do interior, mas é aceitável. A medida que avanço, outros alunos começam a aparecer, seja caminhando ou vindo de algum ponto de ônibus. Já são vários rostos conhecidos, vários alunos que já vi perambulando por aí, mas nenhum rosto da minha classe

Finalmente alcanço o colégio, avançando pelos portões, sem sequer se importar com os alunos que estão estacionados por ali. Chego as mesas do refeitório que normalmente estão desertas nesse horário da manhã. Tenho sorte de elas ficarem já na parte coberta do prédio e em um canto pouco interessante aos alunos, por mais que fique em frente a cantina, a distância é até considerável para um bando de adolescentes preguiçosos.

Existem mais algumas mesas do lado de fora onde todos os alunos gostam de ficar para tomar sol e também um vento para se refrescar, mas é tão lotado logo cedo, e estão tão mal cuidadas que tenho a sensação que vou cair se ousar me sentar em qualquer um daqueles bancos enferrujados. Ou seja, lugar lotado com muitos alunos, muito barulho e risco de beijar a mesa ou o chão a qualquer momento, acredito que são bons motivos para continuar por aqui. Deixo minha mochila ao meu lado, e então me sento, debruçando a cabeça sobre meus braços. Sei que poderei descansar, sem ser interrompido.

Alguém me abraça de lado, de repente e bem rápido me dando um leve susto. Acho que comemorei cedo demais o fato de descansar sem ser interrompido - Olá Edan! Bom dia meu chatolino favorito! – Raquel, em sua empolgação matinal, quase tão parecida com a de Anne. Eu a observo de soslaio com bastante tédio. Ela está com um largo sorriso.

Bocejo, e apoio o rosto na mão em um movimento lento – Bom dia Raquel... Está animada hoje.

- Muito animada, eu estou... – Ela olha em volta, seu sorriso se desmancha em um bico e uma cara triste, tampando o rosto com uma mão. – Estou... De volta à escola! Socorro! Me tira daqui!

Raquel finge um desespero, grudando suas mãos nos meus braços e me sacudindo – Posso até te tirar daqui, mas quero saber por onde vai ficar andando até a hora de voltar para casa.

Ela começa a rir, encostando ao meu lado – Seu chato. Cortando meu barato assim, eu só pensei em voltar correndo para a minha cama... Como está hoje irmãozinho?

- Estou com sono, isso serve? – Arqueio as sobrancelhas.

- Serve e muito bem. Estou do mesmo jeito. – Ela ergue os ombros, me fazendo lembrar o quanto ela gosta de ficar na cama. – Vou te falar, se soubesse que seria tão difícil sair da cama, eu teria ido dormir mais cedo.

- Você tentou isso no começo do ano, não se lembra? – Ela me observa, negando com a cabeça em um rostinho inocente – Você até disse que a única coisa que conseguiu foi roncar mais alto.

- Tirou o dia pra pegar no meu pé? – Me questiona rindo.

- Não exatamente, mas você faz o mesmo comigo... – Bocejo de sono, me espreguiçando – Só estou te lembrando que isso não deu certo.

- Muito obrigado por ser tão motivador – Raquel da uma risada.

- Disponha... – Sussurro, bocejando outra vez.

- A última vez que te vi foi no seu aniversário, e já fiquei com saudades de você. – Vejo Raquel se encostando no meu ombro, lentamente me envolvendo em um abraço apertado. Por mais que eu já tenha feito isso outras vezes, ainda não sei tão bem como reagir. Passo um braço em volta dela, e assim permanecemos por algum tempo – Aproveitou os últimos dias de férias?

Penso no que aconteceu nos últimos dias de férias, Anne pedindo desculpas por muitas coisas e agindo estranho, a passagem de Tamires e Daniela em casa, a adoção recente de uma gata, os acontecimentos de hoje... – Acho que foi no mínimo movimentado.

- Pelo menos, né? – Raquel me da um sorriso. Ela não precisa saber de hoje.

- Se pergunta de mim, então me diga... Aproveitou os seus últimos dias de férias?

Ela balança a mão, sinalizando um "mais ou menos" – Eu fiquei treinando boa parte dos dias. Saí com o Ricardo, ficamos andando pelo centro, achamos uma pista de kart, e do jeito que ele fez uma propaganda, me deu muita vontade de correr algum dia.

- Você tem vontade de correr? – Acabo pendendo a cabeça para o lado.

- É claro que sim, parece ser muito divertido. – Percebo os olhos de Raquel brilhando.

- Pelo visto você gostou bastante disso. – Apoio minha cabeça na mão, olhando para ela de canto.

Ela balança a cabeça várias vezes – Não tem como não gostar da ideia. Me empolguei muito com isso, devemos marcar um dia para todos irmos... E isso inclui você irmãozinho. – Ela termina de dizer, tocando seu indicador no meu ombro algumas vezes, o que atraiu meu olhar.

- E por que eu deveria ir mesmo? – Bocejo novamente, agora com menos sono.

- Para se divertir também ué. Podemos chamar o pessoal e marcamos um dia para correr uma meia hora que seja. – ela sorri, bem empolgada com isso. Eu apenas dou de ombros com ela, sem dizer mais nada – E você, está disposto para voltar as aulas hoje?

- Não, de jeito nenhum... – Respiro profundamente em irritação.

- Como não? Pode isso não Edan, tem que estar totalmente disposto. – Ela me diz rindo.

Ergo uma sobrancelha – E por acaso você está com todo esse pique para voltar as aulas?

- Totalmente com pique! – Ela diz, estufando o peito e fazendo pose. Continuo a observando, eu não consigo acreditar em tanta empolgação matinal, e acho que isso está estampado na minha cara. Em menos de três segundos essa pose toda desaparece, e Raquel começa a rir mais uma vez – Ta bom seu mala, eu to sem coragem nenhuma. Não posso nem fingir estar com ânimo.

- Até pode fingir, o duro é eu acreditar nisso... – O sinal toca, alto e bem escandaloso por pelo menos uns dez segundos ou mais. Olho para Raquel, que está tampando os ouvidos com os dedos, e pela sua expressão, está tentando ao máximo abafar o barulho. Eu mesmo nem tento, o que me rende alguns minutos de dor de cabeça e também um zumbido matinal. No exato momento que o sinal para de tocar, eu me levanto, alcançando minha mochila. – Vamos?

- Fazer o que né. – Ela revira os olhos, se levantando logo em seguida, e dali subimos para a sala.

*****

Já me estabeleci de volta na minha cadeira, mas apenas deixei minha mochila encostada na parede, bem debaixo da minha cadeira. Raquel mal ficou na sala e já saiu novamente, talvez ela tenha ido se encontrar com Ricardo. Agora me vejo sozinho, observando os outros alunos papeando entre eles. Pelo que pesco das conversas, acho que todos estão contando as histórias de suas férias, lugares que foram, as festas, o que fizeram e os vários nadas que também fizeram, alguns com histórias bem mais mirabolantes do que outras. Enfim, todos colocando a conversa em dia.

Penso comigo, será que Leandro e a Anne já chegaram? Será que acompanham a Raquel na falsa empolgação dela de voltar as aulas?

Pensando na Anne, toda vez que. ela surge na minha mente, começo a sentir mil coisas diferentes, tão difíceis de entender.

Aliás, algo estranho vem acontecendo em praticamente todas as vezes que penso em Anne. Sempre me sinto com vontade de parar o que estou fazendo, ou até parar de ficar na minha comum ociosidade para começar a desenhar. Estranho, é uma sensação que surge do nada, em cada uma das vezes que penso nela. Quando Anne esteve em casa e mostrei meus desenhos, preferi não falar que tudo aquilo surgiu porque eu estava desocupado, por algum motivo, pensando nela. Não tenho ideia de como ela iria reagir se soubesse disso.

E claro, agora que estou pensando nela, a mesma vontade de desenhar volta a minha mente, e já estou buscando por algum caderno na minha mochila.

Vou ao fundo do meu caderno, buscando por uma folha em branco. Alcanço um lápis perdido pela minha mochila, encaro o branco da folha, fazendo minha mente trabalhar atrás de alguma ideia para esse momento. Tiro alguns fios do meu cabelo da frente do olho, e começo a rabiscar a folha de leve, ouvindo vozes se aproximando de mim, o que acaba chamando minha atenção de leve.

Ergo meus olhos em um movimento rápido, percebendo Anne e Fabiano chegando perto em uma conversa levemente animada. Sinto-me incomodado pela presença desses dois, acho que muito mais por Fabiano estar junto dela, mas eu mesmo não entendo o motivo disso. Guardo essa sensação e me forço a esquecer, conseguindo essa façanha com sucesso. Evito encara-los, me mantendo concentrado no que estou fazendo, mas minha curiosidade me faz querer ouvir o que esses dois estão conversando.

- ... Precisamos arrastar os moveis da sala para tentar achar onde aquele bicho tinha se escondido. – Escuto Fabiano contando em risadas, e Anne compartilha da mesma animação. Olho rápido para eles, vejo que Anne já havia deixado sua mochila sobre a mesa e estava de frente para o namorado. Estavam estupidamente próximos, isso me faz sentir um embrulho no estomago.

- Mas sério, eu não consigo acreditar que apareceu um rato desses logo na sua casa. – Anne comenta rindo, se apoiando em sua mesa. – Seus pais cuidam tanto e o bairro é tão bom.

- Eu não tenho ideia de como apareceu, mas foi um dos grandes. – Ele deu de ombros, ainda rindo. Eu volto meus olhos para minha folha, continuando a rabiscar seja lá o que for – Eu lá quieto na sala, e eu vejo aquele bicho brotando debaixo do sofá.

Anne continua rindo com a história, levando a mão à barriga de tanto rir – E você pulou de susto quando viu ele correndo. Eu adoraria ter visto isso. Iria rir muito mais.

- Por sorte, o pai conseguiu achar aquele rato, e expulsou a vassouradas. Minha mãe não sabia se tremia ou se ficava rindo da situação toda. – O ouço dizer, sua voz está animada.

- Sua mãe sempre ri das coisas muito facilmente, a reação dela deve ter sido ótima. As vezes nós acabamos rindo dela e não da situação. – Anne deu de ombros.

- Concordo, minha mãe consegue ser mais divertida sempre.

Um pequeno silêncio se instala entre eles, o que me permite me concentrar melhor no que fazia na folha. Somente agora começo a perceber o que eu estava desenhando. Era o esboço de um personagem, mas não o reconheço. Nunca vi nenhum igual ele em nenhuma obra, seja em algum livro, filme ou animação. Era algo bem único. – Bom dia Edan!

O cumprimento, e ainda mais a aproximação tão repentina de Anne me assusta, a ponto de eu pular na cadeira. Eu olho para ela, piscando algumas vezes me recuperando do susto. Olho para Fabiano, que não olha para mim, mas contém o riso com uma mão tapando a boca. Provavelmente quer rir por causa do meu susto. – Bom dia Anne, Fabiano... – Como sempre, minha voz é tediosa demais até para mim mesmo.

Fabiano de imediato endurece seu olhar para mim, dando um leve aceno com a cabeça, enquanto Anne olha de mim para a folha rabiscada na minha mesa. Posso ver bem a curiosidade crescendo em seu olhar – O que está fazendo de interessante?

Olho novamente para a folha, passando a mão pelo queixo enquanto avalio o desenho – Ainda não sei... Eu... Só estou rabiscando qualquer coisa e... Saiu isso.

Ela permanece olhando para a folha alguns segundos, olhando novamente para mim. Posso perceber como seus olhos passam dos meus olhos para minha boca algumas vezes, o que me deixa levemente intrigado – Está bom, você pegou o jeito de novo. O que acha Fabiano, não está ótimo?

Ele aproxima-se devagar da minha mesa, com bem menos animação do que a alguns momentos atrás. Fabiano se debruçou na minha mesa e olhou por um tempo – Gostei, mesmo sendo só um esboço... – ele endireita sua postura, posso ver que ele bufa de leve, antes de ser confrontado tanto pelo meu olhar quanto o de Anne – Você tem talento para isso, tenho que admitir.

- Imagino quanta coisa o Edan pode fazer. – Anne diz com animação, retornando seus olhos para mim. Com minha visão periférica, percebo Fabiano revirando os olhos, cruzando seus braços e encostando-se à mesa atrás de si. Ele não nos olha mais, porém Anne continua atenta em mim – Quando estiver pronto, pode me mostrar?

Concordo com um aceno, retornando meus olhos ao desenho. Apoio o rosto na mão – Vai demorar um pouco, mas quando terminar irei mostrar.

- Eu vou cobrar em! – Ela me diz, me fazendo olhar para ela com o canto dos olhos. Ela da um sorriso e começa a rir um pouco – Mentira, não vou cobrar não.

Vejo Anne se virando para Fabiano, que pelo jeito estava tentando conter sua impaciência. Eles falam mais algumas coisas, que agora parecem insignificantes para mim. Algo inunda meus pensamentos. A forma como Anne agiu me incomoda. Pode ser idiotice da minha parte, mas eu sei muito bem que a Anne não falaria nada sobre "me cobrar", ela apenas seria invasiva como sempre foi. Tenho a sensação de que existe algo de diferente nela. Visualmente, não tem nada de diferente, mas novamente eu sinto que existe algo. É como se alguma coisa dentro de mim me deixasse ciente disso.

Olho novamente na direção de Anne, mas ela já está se afastando com Fabiano para a porta da sala. Balanço a cabeça negativamente, voltando a me concentrar no meu desenho, rabiscando novos traços. Ficar pensando nisso não vai ser nada produtivo.

- De volta as aulas, que tédio... – Anne diz de repente, se sentando ao meu lado. Olho para ela, certo de que agora mesmo ela estava longe. Quando ela chegou tão perto?

- Preferia ficar em casa? – Largo o lápis na minha mesa, apoiando o rosto na mão, a observando. Ela está se espreguiçando, pegando sua cadeira e deixando ao meu lado. Presto atenção em cada um dos seus movimentos.

- Mil vezes sim! – Ela me diz com um sorriso, passando as mãos pelo cabelo, o prendendo em um rabo de cavalo com um elástico que tirou do bolso de sua calça. – É uma tortura acordar cedo só para vir para cá... Mas por alguns motivos, eu faço esse esforço.

- Alguns motivos...? – Ergo uma sobrancelha, sem entender.

Ela me deu de ombros com um pequeno sorriso. Seus olhos novamente vão para a folha, e acabo seguindo seu olhar – Pode continuar. Prometo não te interromper.

- Não tem problema, aprendi a lidar com suas interrupções... – Prefiro dizer isso, do que dizer que eu até gostaria que houvessem interrupções de sua parte. Eu fico olhando para Anne uma última vez, me questionando o que raios está acontecendo comigo. Eu não pensaria esse tipo de coisa. Ao que parece, não é apenas a Anne que está estranha de alguma forma. Pego novamente meu lápis, continuando a rabiscando, trazendo novas formas ao personagem.

- Por mais que eu esteja louca de vontade para aproveitar essa sua permissão, eu quero ficar assistindo você desenhando. – Pelo seu tom de voz baixo como um sussurro, consigo perceber toda a animação dela, a ansiedade, fora as expectativas que ela está depositando em mim. Não esperava sentir tantas coisas vindas dela, apenas por ouvir sua voz. A ligação que eu senti com ela antes parece ficar ainda mais forte. Essa sensação é agradável de uma maneira bem estranha, mas apenas ignoro.

- Não vai me parar do nada para apontar algum erro? – Zombo do que ela mesma fazia tempos atrás, sem retirar meus olhos do desenho.

- Não, eu já passei disso... – Eu esperava que Anne fosse falar mais algo, mas me enganei. Os ruídos a nossa volta se tornam mais altos devido a cada vez mais alunos estarem chegando, mas ao mesmo tempo, todos os barulhos parecem distantes. – Desculpa interromper... Está criando esse personagem do zero?

- Estou sim, comecei a rabiscar e ele surgiu – Paro por um segundo.

Ela não diz nada de imediato. A vejo passando a mão pelo rosto – Sei lá, ele parece diferente. Estou com a sensação de que já vi alguma coisa parecida.

Ergo as sobrancelhas, sem dizer nada. Pior que estou com o mesmo pensamento, só não sei de onde que eu estou me inspirando para fazer esse desenho.

- Esse personagem não é de alguma história que você fez? – Ela me questiona, e isso me deixa pensativo. Volto meus olhos ao desenho, antes de responder.

Analiso novamente o que eu estava fazendo, passando uma mão pelo queixo. Apesar de ser um esboço, eu sei identificar bem o que está na folha. O personagem está de costas, possui um corpo um pouco magro, seu braço direito é normal, mas o esquerdo se difere, aparentando uma garra com aparência muito mais agressiva, seu rosto está sombreado e um pouco coberto, além de algo curioso. Ele está vestindo o que parece um largo manto. Além disso, ele está ao canto da página, me dando margem para desenhar mais coisas caso eu queira, talvez um cão, e alguma outra personagem em frente, e um último ao fundo. É uma ideia interessante.

Volto a pensar no que Anne me perguntou, e então a respondo – Não sei dizer, apesar de me parecer bem familiar.

Ela olha para a folha por mais um tempo – É só uma ideia que me surgiu, mas... Você poderia desenhar algo mais. Talvez um cão aqui, acho que uma garota bem aqui... E aqui ao fundo, mais distante um último personagem... Tipo, para dar uma impressão de que está olhando eles, sabe? O que acha disso?

Antes que Anne terminasse de falar, eu estou olhando para ela, não sei se surpreso, ou assustado. É exatamente a mesma coisa que eu estava pensando, até mesmo as posições dos outros prováveis desenhos ela disse com uma precisão assombrosa. – Acabou de pensar nisso?

- É, foi uma ideia que me passou de repente... Não sei se gostou... – Ela diz, um pouco contida.

- Não é isso, achei a ideia muito boa... É só que eu... Pensei algo bem perto disso. – Arqueio as sobrancelhas, apontando para o ponto do "último personagem" que ela mencionou. – E aqui, o que acha de eu colocar um personagem, sei lá, com um casaco?

- Isso, também tive essa ideia! – Ela me diz com um sorriso.

Ta legal, eu estou em choque agora.

O que acabou de acontecer aqui?

*****

Estou bem indeciso nesse momento. A aula está um verdadeiro tédio, provavelmente pelo detalhe de ser o primeiro dia depois das férias, e ninguém está se importando em fazer algo além de papear de maneira desenfreada. Boa parte das primeiras aulas eu permaneci olhando pela janela, tentando me manter distante como pudesse, mas a barulheira é tanta que mal consigo fugir daqui. As risadas alheias sempre me puxam bruscamente de volta.

Olho para minha sala, boa parte dos alunos estão de pé, conversando em alto volume. Alguns alunos estão sentados jogando cartas e vários outros ao redor, Leandro está entre eles, pelo barulho e risadas vindas deles, o jogo parece ser truco. Mudo meu olhar para outro canto da sala, o professor está bem atarefado em sua mesa, cercado por várias alunas que não param de falar do que fizeram em suas férias. Imagino o que ele deve estar pensando, se está realmente interessado nas histórias de três adolescentes potencialmente atraentes, ou se está fingindo muito bem... Apesar de que é difícil não notar os toques incessantes que elas fazem no professor. Olho em volta para outros alunos conversando entre si, ou apenas de olho em seus celulares. Raquel e Anne estão conversando entre elas em baixo tom, em mais um dos momentos de conversas misteriosas que só essas duas têm. Bufo com esse tédio.

Eu deveria ter ficado em casa.

Uma sensação desagradável toma meu corpo de repente. A lembrança do que eu estava para fazer essa manhã faz um temor surgir em meu peito, além de uma sensação desconfortável se instalar em mim. As cenas do que poderia ter acontecido comigo passam em flashes na minha imaginação, seja com uma faca em mim, com uma corda me deixando com um nó na garganta, ou sentindo efeitos de uma pilha excessiva de remédios. Definitivamente, eu não deveria ter ficado em casa, não sei mais o que teria acontecido, mas sei que eu não estaria mais aqui. E o pior é ter a certeza de quem me encontraria em casa nessa situação. Percebo algo que me arranca dos meus pensamentos. Anne está me olhando.

Isso me deixa desconfortável. Não é como sempre, um simples olhar normal, ela parece assombrada em puro terror, é quase como se...

Ela acabasse de ler meus pensamentos...

Não, isso é impossível. É só uma impressão... Mas então... Por que ela parece tão assustada?

Raquel está olhando para ela, e então seu olhar vindo até mim. Posso ver como ela está confusa com a reação da Anne. Não sei como reagir. Eu desvio meu olhar para a janela, tentando me esquecer desse ocorrido, tanto o dessa manhã como o de agora. Apesar de tentar manter esses pensamentos afastados, eu sei que Anne está me observando. Sei, e posso sentir.

Ando sentindo muitas coisas ultimamente, muitas em relação à Anne. Não sei se acho isso uma coisa agradável, desagradável, ou muito fora da curva de tão estranho.

Uma ideia me surge, isso pode ser devido a tal lenda que Anne me contou há tanto tempo atrás. Por mais que eu ainda não acredite totalmente, e na verdade continue acreditando que seja pura fantasia de adultos frustrados amorosamente, essa lenda das Rosas Gêmeas explicaria muito bem a ligação que sinto ter com essa doida, além de várias outras coisas.

Acho que estou pensando demais. Abro meu caderno, voltando ao mesmo desenho de mais cedo. Ele já está praticamente terminado, com todos os pontos que eu imaginei. Fico olhando a imagem, os traços, os efeitos que tentei colocar. Todos os personagens, o rapaz com o braço diferente e o manto, a garota bem próxima e também esse cão bem maior do que um normal. Vendo agora eu consigo saber de onde veio a ideia, é uma história que meu pai havia me contado por cima, de um aventureiro com uma amiga e um fiel animal de estimação, e quando cresci, decidi por aumentar a história em vários pontos, sejam em profundidade e densidade. É realmente uma história que eu escrevi, mas algo me incomoda. O personagem mais ao fundo, afastado. Me esforço um pouco, mas lembro de toda a história, e em nenhum ponto dela tem a aparição de um cara com um casaco. Isso me incomoda um pouco, não sei de onde ele veio.

- Olha só que coisa bonita! – Raquel diz, surgindo de repente ao meu lado. Olho para ela, e Anne está junto, ambas estão olhando para a folha. Apesar de sua aparição repentina, eu não me assusto. – Você deu mesmo um jeito nele Anne.

Anne ri um pouco sem graça, mas antes que ela falasse algo, eu me adianto – É, posso dizer que ela fez alguma coisa mudar em mim. Eu ainda não vejo nenhum significado em desenhar, mas não sinto mais como sendo algo vazio.

- Eu gostei disso, e quero ouvir mais. – Anne me deu um sorriso de canto, enquanto Raquel se encosta na minha cadeira.

Reviro os olhos, e nego balançando a cabeça – Nem ouse pedir para saber mais. Eu mesmo ainda não entendo o que isso representa. Eu só sinto vontade de desenhar quando... – Paro de falar um segundo, revendo as palavras que estavam para sair da minha boca – ... É repentino demais, entende?

- Aquele surto de inspiração que vem do nada? – Ela me questiona com um sorriso.

- Isso, exatamente isso! – Confirmo, apoiando o rosto na mão. Com toda certeza, eu NÃO VOU entregar para Anne que eu sinto vontade de desenhar ou de fazer qualquer outra coisa quando ela está em meus pensamentos. Ela poderia entender as coisas bem errado, ou acabar se sentindo demais por ser a fonte das minhas ideias e pensamentos. Muito menos com Raquel do lado, seria uma zoeira da minha irmã pra cima de mim por muito mais tempo do que eu poderia querer suportar.

- Na boa, eu me sinto falando inglês com duas pessoas fluentes em espanhol. – Raquel comenta, mexendo em uma mecha do seu cabelo e rindo, atraindo nossa atenção – Eu entendo o que dizem, mas entendo muito mais ou menos.

- Se quiser, eu traduzo o que estamos falando. – Anne diz com uma risada.

- Quero não, assim é mais divertido. Eu entendo mais ou menos esse dialeto de artistas, mas é tão interessante que acabo presa nessa conversa de vocês. – Ela diz rindo, balançando a cabeça.

Anne acaba rindo com o que Raquel acaba de dizer. Acho que consigo sentir um pouco dessa animação que Anne sente – Não era mais fácil dizer que estamos conversando em grego?

Raquel cruza seus braços, revirando os olhos – Não, isso é muito chato. Todo mundo fala isso, e a conversa de vocês não é agressiva a ponto de parecer alemão.

- É coisa da Raquel. Ela é doida mesmo – Digo, balançando a cabeça.

Raquel me observa, arqueando as sobrancelhas, se fazendo de ofendida. – Muito obrigada pela parte que me toca. Eu também te amo muito.

O sinal para o intervalo começa a tocar, nos tirando do nosso assunto. Sem nem ao menos esperar, todos os alunos começam a se mover para fora da sala. Eu sequer me movo, vejo que Anne da indícios de que vai junto, mas a bagunça formada na porta da sala desencoraja ela. Raquel por sua vez sai da sala quase correndo, se lançando junto à bagunça. Eu mal consigo ver Leandro. Por fim, restamos apenas eu, Anne, o professor e alguns poucos alunos. Eu então me levanto, rumando para fora da sala, e Anne vem logo atrás de mim. Ao invés de me direcionar ao pátio no andar de baixo, eu vou para a direção oposta. Tem um lugar que eu quero ver, desde muito tempo atrás.

Caminho pelos corredores, chegando à escada e subindo, eventualmente chegando ao último andar. Aqui está vazio, as vozes de todos os alunos estão bem distantes. Isso é agradável e me tranquiliza por saber que as chances de eu ser pego são extremamente baixas. Deslizo pelos corredores, chegando à porta do almoxarifado que eu estive apenas duas vezes. Tenho certeza de que está tudo vazio por aqui, e me permito avançar.

- O que está fazendo? – Escuto atrás de mim, antes que eu pudesse tocar a maçaneta.

Me viro, Anne está atrás de mim, com os braços cruzados. – Achei que não seria mais invasiva.

Ela me da um sorriso de canto, chegando mais perto de mim. – Falei que não seria invasiva, mas não disse nada sobre te seguir.

- Justo. – Concordo balançando a cabeça. Realmente vejo lógica em seu argumento. Eu a observo de soslaio por curtos segundos – Mas isso não explica o porquê de ter me seguido.

- Seria porque eu tinha perguntado se estava com fome, e você só saiu andando na direção oposta de todo mundo, sem nem falar nada? – Ela me questiona com um sorriso de curiosidade. Ela para ao meu lado, olhando para a porta – Eu só fiquei curiosa para saber o que iria fazer, e te segui até aqui.

Eu paro por um segundo, pensando em como responder – Eu posso te mostrar, apenas se isso não der problemas para você. Seu namorado não vai se incomodar se você não der as caras?

Anne balança a cabeça negativamente – Ele vai sobreviver mais alguns minutos sem mim... E agora, eu não estou nem ai para o que ele vai achar.

O que Anne me diz acaba me deixando sem uma resposta. Não sei se isso é por causa das coisas que já aconteceram entre nós e mantemos em segredo, mas a vontade que tenho agora é de "apenas" agarrar essa chata aqui mesmo, deixar ela contra a parede e beija-la sem parar, mas contenho esse impulso, por mais que ele esteja gritando dentro de mim. Me viro para a porta do almoxarifado, respirando profundamente para conter qualquer impulso. – Venha comigo, mostrarei o que eu estava indo ver. – Abro a porta, sendo recebido pelo ambiente escuro, cheio de caixas e estantes.

Acendo a luz assim que entro. Aqui está abafado, mas nada tão incomodo como da primeira vez que estive aqui. Vou direto para a estante, puxando um pouco para ter espaço para podermos passar. A passagem que abri daquela vez ainda está aqui, praticamente intocada. Olho para trás, Anne está me observando, seu olhar está cerrado, mas mantem um sorriso de curiosidade. Sinto a vontade de avisar a ela que, se quisesse voltar, poderia a qualquer momento, mas eu não faço isso. Como em um pensamento conectado, posso ver em seus olhos que ela virá comigo para qualquer lugar que eu quiser leva-la. Eu sei e vejo isso.

Saco meu celular e ligo a lanterna, atravessando pelo espaço recém-aberto entre a estante e a parede. Passo a luz pelo lugar, o ambiente continua como antes, um monte de tralhas por aqui, além da camada de poeira no chão. Me viro, estendendo a mão para que Anne venha junto, e assim ela vem, passando lentamente. Passamos pelo corredor em passos curtos, chegando à porta entreaberta. Empurro e chegamos às escadas dos fundos. Está tudo muito escuro como da primeira vez, mas dessa vez irei subir. Anne está próxima de mim, sei que ela está com um pouco de receio por estar aqui. Acabo segurando sua mão para transmitir alguma segurança, e ela retribui o aperto levemente. Eu a puxo comigo, subindo as escadas lentamente até atingirmos o topo.

A porta aparenta estar trancada, mas com um pouco de esforço eu a empurro, dando passagem para o terraço. Um vento frio passa pelo meu rosto, me fazendo perceber como as escadas estavam quentes.

Olho para Anne, ela está olhando em volta. – Você já esteve aqui antes?

- Nunca, é minha primeira vez também... – respondo, andando em volta, conhecendo melhor o ambiente. O lugar por inteiro parece não ser muito visitado. Vejo alguns cabeamentos pelos cantos, uma caixa de força disposta na parede, antenas nos pontos mais altos, observo também toda a tubulação do ar-condicionado, e principalmente o horizonte para todos os lados.

- O que veio ver aqui? – Escuto Anne, sua voz é um pouco contida.

- Eu ainda não sei... – Respondo. Eu me aproximo da beirada do prédio, olhando primeiro para baixo, sentindo o vento que existe aqui em cima passando com certa intensidade pelo meu corpo, levemente me empurrando para trás. Vejo as pessoas andando pela rua, alguns alunos, o topo de várias casas, da quadra, é muito diferente ver tudo daqui de cima. Uma vertigem bate pelo meu corpo, perco um pouco da minha noção de espaço, tanto que quase perco meu equilíbrio também, devido ao vento que insiste em me empurrar para trás. A sensação de me jogar daqui de cima surge em minha mente, mas afasto isso. Eu não posso fazer isso, não com Anne aqui. Eu recuo até estar a uma distância considerável da beirada do prédio, direcionando meus olhos para o horizonte, o mesmo que sempre observo da janela da sala. – Acho que vim olhar o mundo. Gostaria de me acompanhar?

- Com toda certeza sim... – Escuto os passos de Anne, se aproximando devagar de mim. Eu me sento no chão primeiro, e a vejo se sentando ao meu lado, se mantendo bem perto de mim.

Seus olhos permanecem em mim, Anne mantém um pequeno sorriso em seu rosto, mas não sei a razão desse sorriso. Na verdade, não preciso saber, apenas aproveitar. Por algum motivo, minha mente ecoa várias vezes que devo curtir esse momento ao máximo, afinal não sei qual serei meu último momento. Levo minha mão ao seu cabelo, subindo devagar até sua nuca, podendo sentir a suavidade ao toque. Não me lembro qual a última vez que pude sentir o cabelo dessa chata. A vontade que sinto de beijar essa garota não passou em nada, parece que aumentou ainda mais.

Direciono meu olhar ao horizonte a nossa volta, aproveitando a vista e também tentando me distrair. Por mais que seja um ambiente urbano a frente e algumas arvores mais ao longe, ainda é bonito aos meus olhos. Aqui é calmo, tranquilo. O vento é mais suave agora, a luz do dia não é incomoda em nenhum momento.

- Sabe... – Ela começa a falar, quase que em um sussurro – Já tem um tempo que eu queria te perguntar algo... O que você tanto olha ao longe?

Não sei como responder ela. Eu mesmo não sei o que tanto olho no horizonte. Não sei o que meus olhos, ou melhor, o que eu busco. Quantas vezes eu fiz exatamente isso, me sentei o olhei para o longe, procurando por algo que eu mesmo não sei o que é. Abaixo meu olhar por um segundo, sabendo que eu nunca atingi uma resposta, talvez nunca tenha chegado perto de uma. Apesar disso, eu sei o que responder – Talvez um sentido para as coisas... Um sentido e um propósito para mim... É minha hipótese.

- É uma boa hipótese... – Sua voz foi vacilante. – Sempre tive curiosidade em saber, em vários momentos eu via você olhando para o longe, mas nunca soube o que você estava vendo.

Balanço a cabeça negativamente – Na maioria das vezes eu mesmo não sei o que eu estou enxergando... Ou tentando enxergar...

Tudo o que recebo de Anne é seu silêncio. Instintivamente eu olho para ela, e o que encontro é um olhar indecifrável para mim – Na maioria das vezes, você parece perdido...

- É provável que eu realmente esteja... – Dou um pesado suspiro. É tudo que posso dizer, apesar de saber que eu já estou perdido há muito tempo, mas é claro, ela não precisa ter certeza disso.

Anne encosta sua cabeça no meu ombro, se aconchegando em mim. O silêncio impera entre nós por alguns momentos – Espero que encontre o que tanto busca... Não sei o que é, mas espero que consiga.

- Algum dia, quem sabe eu encontre, e não fique mais tão perdido... – Somente agora percebo que conversamos em sussurros, por mais que estejamos sozinhos. Volto meu olhar ao horizonte, dessa vez, apenas aproveitando a vista como gosto de fazer

- Eu só queria ter feito mais por você... – Ela me diz, por algum motivo sinto tristeza vinda de Anne. Não apenas de sua voz, mas dela por inteira. – Eu não fiz nem metade do que eu precisava, e bem menos do que eu gostaria...

- O que quer dizer? – continuo fazendo carinho nela, bem mais lentamente. Estranho o que ela acaba de falar. Anne está estranha de alguns tempos para cá. Suas atitudes estão muito diferentes.... Não sei o que está acontecendo com ela.

Percebo que Anne passa a mão pelo rosto, e então se vira para mim, dando um sorriso – Não se preocupe com isso Edan, não é importante.

Ergo uma sobrancelha, olhando para ela de canto – Será que eu acredito em você?

- Claro que pode acreditar em mim, idiota! – Ela da um sorriso, me dando um tapa no braço.

Respiro profundamente, soltando o ar pela boca. – Ta, tudo bem. Vou fingir que acredito... Mas pelo menos, posso dizer que você já faz muito por mim, bem mais do que o necessário.

- Eu queria fazer mais... Preciso fazer mais... – Ela aperta sua mão na minha camisa.

- Não queria que fizesse esse tipo de coisa por mim... – Estendo minha mão a ela. Ela me olha, e hesitando, segura minha mão, entrelaçando nossos dedos de forma lenta. – Apesar de não querer, eu agradeço por tudo isso.

Ela sorri, apertando um pouco minha mão – Não precisa me agradecer por nada. Cada coisa eu fiz por vontade própria, em todas às vezes, só pra te ver bem... Fiz por você...

Não sei o que deu em mim, mas nesse momento abraço Anne, tão forte quanto consigo. Sem dizer nada, ela me retribui. Nunca foi tão confortável como foi agora. Nem sei dizer por quantos motivos eu fiz isso. Pelo esforço desnecessário que ela fez por mim, por todas as vezes que ela pegou no meu pé, que me irritou por algum motivo idiota, ou por ter invadido minha casa, por ter olhado na minha direção, ter se preocupado comigo e feito mais do que eu esperava só para me ver bem, nem sei pelo que mais... Vindo dela, tudo parece ser especial...

Ela afasta de mim, com um pequeno sorriso – Vamos voltar, podem dar falta de nós dois.

- Provavelmente sim. – Concordo com um balançar de cabeça.

- Além disso, vamos acabar com esse clima de despedida. – Ela diz rindo, se levantando. Eu acompanho seu movimento, me erguendo também. Realmente, isso pareceu muito um clima de despedida entre nós. Caramba, que bizarro. – Até parece que estou indo embora.

- Eu nem falo nada. – Digo, retornando para a porta de onde viemos, e Anne vem logo atrás de mim. Sinto que ela segura minha mão, me impedindo de ir em frente. Eu me viro para ela, encontrando um olhar diferente nela. – O que foi?

Anne abaixa um pouco seu olhar, e então olha para o horizonte. Percebo algo estranho, diferente vindo de Anne... Um sentimento que não entendo – Você... Estará sempre aqui para mim?

Permaneço a observando. Entendi o que ela quis dizer, de alguma forma entendi. Não foi apenas um pedido comum de Anne, foi algo que veio de mais fundo... Acho que esse foi um pedido que veio do fundo da sua alma, mas não sei porque acho isso. – Sim... Eu farei o que puder para sempre estar aqui para você... Eu prometo.

A observo por um instante, com o silêncio se mantendo entre nós dois. Anne se vira para mim com um sorriso único em seu rosto. Ela se aproxima de mim, levando suas mãos a gola da minha camisa e me puxando para um beijo intenso. Como eu queria isso. Trago ela para mim envolvendo sua cintura. Sinto suas mãos passam em volta do meu pescoço, tornando tudo ainda mais profundo e duradouro. Perdi totalmente a noção do tempo, e mal tenho interesse em recuperar essa noção. Anne afasta devagar de mim, olhando nos meus olhos e então para minha boca, passando os dedos pelo meu rosto, voltando a se aproximar para nos beijar ainda mais, desfrutando desse momento apenas nosso.

Nos afastamos devagar, mantendo nossos olhares unidos. – Agora sim, nós podemos voltar.

Concordo balançando a cabeça, e seguimos juntos de volta as escadas.

*****

Gostaria de poder andar um pouco por ai, mas por enquanto não vou poder. Me vejo rodeado por Anne, Leandro, Tamires e Carol. Olho em volta, surpreso por não ver Fabiano aqui, praticamente servindo de escolta para Anne. De certa forma, isso me deixa aliviado.

- Está confirmado, a festa vai ser esse sábado. – Carol comenta, animada como se divulgasse algo importante. – Vocês irão?

- Ainda não tenho certeza se vou... – Leandro diz, erguendo os ombros – Eu até quero, mas tenho que ver se a Iris vai vir junto, ou se ela vai se incomodar se eu ir sozinho.

- A vida de quem namora em... – Tamires zomba, olhando para cada um de nós – Eu vou sim,o Paulo estará comigo, mas ficaremos pouco tempo por já termos outros compromissos.

Carol olha para mim e para Anne – E vocês? O que me dizem?

Eu já tenho minha resposta pronta desde que ouvi sobre isso da primeira vez. Eu apenas nego com a cabeça – Eu tenho que ir né, afinal sou namorada dele. – Anne diz isso bufando.

- Não parece muito que você quer ir na festa... – Carol ergue uma sobrancelha – Aconteceu alguma coisa?

- Nada demais, eu realmente não estou empolgada para isso... – Anne da de ombros, posso sentir o desanimo vindo dela.

Leandro passa a mão pelo queixo – Pode ser legal. Acho que podemos ir todos.

- Eu concordo, vai acabar sendo divertido. – Tamires comenta com um sorriso, olhando para mim, e aponta o indicador – Será divertido também para você. Eu acho que deveria ir.

Anne da um suspiro – Pode ser legal, quem sabe né. Também acho que deveria vir Edan.

Carol me da um sorriso de canto – E essas festas do Fabiano são ótimas para nós solteiros. Garanto que vai se divertir muito de vários jeitos fantasma.

- Mesmo é? – Questiono, erguendo uma sobrancelha e tentando disfarçar o total desinteresse na minha voz. Percebo que Anne acabou de torcer a boca.

- Com certeza. Eu e seu amigo aqui já nos "entendemos" em uma das festas do Fabiano, quando ele ainda era solteiro – Carol diz rindo, e Leandro começa a rir.

- Não venha me falar nada Edan. – Leandro se adianta, contendo suas risadas – Lembre-se do que eu te falei quando era solteiro e me sentia livre para fazer o que quisesse. E isso foi antes de eu estar com a Iris.

Acabo pendendo a cabeça para o lado – Mas eu nem iria falar nada. Na verdade, nem ligo.

Todos a minha volta começam a rir, até Anne esboça um sorriso.

- Mas ainda assim, acho bom você ir. – Carol se adianta, cruzando os braços – Nem digo para aproveitar com alguma pessoa, mas sim porque essa festa promete ser muito boa.

Hesito por um segundo. Olho para Anne, que apenas da de ombros. Leandro faz um gesto afirmativo, junto de Tamires. Eu acabo bufando – Ta legal, eu vou...

Carol me da um sorriso de canto, com certa malícia, mas algo mais. Tenho a sensação de que ela está escondendo alguma coisa de mim. – Eu te garanto, essa festa promete muitas coisas que serão inesquecíveis. 

Considerações finais: 
Então... O que posso dizer aqui é que o inicio desse capítulo não foi planejado. Sabe quando os personagens estão agindo sozinhos? Então... A atitude do Edan foi completamente automática dele, eu não tentei isso. Além disso, cada vez mais coisas estranhas estão acontecendo, e ainda mais coisas envolvendo a Anne.

Enfim, espero que tenham gostado desse capítulo, que sigam acompanhando. Estamos entrando na reta final. Rosas Gêmeas seguirá até o capítulo 40, e ainda tem muitas coisas para acontecer. Gostou? Não gostou? Tem teorias? não hesite em contar. E eu os espero no próximo capítulo.

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