Capítulo 8 - Adaptações
DEPOIS QUE TERMINARAM o ensino médio e se mudaram para Santos, Beatriz e Fabiana perceberam que a vida longe dos pais não seria fácil e que elas seriam obrigadas a batalhar de verdade para alcançar os seus objetivos que, de início, era se formar na universidade e trabalhar com Arqueologia.
Com a sua mesada cortada pelo pai e as únicas economias que ainda tinha guardadas em uma conta-poupança no banco, Beatriz precisou usar parte do dinheiro que lhe era depositado pelos pais desde a sua infância para custear o aluguel do apartamento modesto onde ela e a amiga morariam na cidade litorânea. Todo o resto, foi sendo usado gradativamente conforme os primeiros meses transcorriam, e enquanto os gastos com livros, apostilas, alimentação e transporte não paravam de aumentar.
Até que ambas encontrassem um emprego que lhes pagasse ao menos um salário mínimo, aquele dinheiro era o único que elas teriam para viver ali razoavelmente bem, sem que tivessem que desistir de seu sonho ou acabassem tendo que retornar para São Paulo, indo de encontro às expectativas negativas que o empresário João Diniz tinha a esse respeito.
Oito meses depois, quando, enfim, o homem entendeu que as duas meninas não voltariam mais para casa e que iriam até o fim com o seu plano de se tornarem arqueólogas, a pedido da esposa Virgínia, ele finalmente cedeu e passou a depositar a mesada regular de Fabiana na conta que havia criado para ela, tão logo assumira a sua guarda legal. Embora ainda se recusasse a custear a própria filha, Beatriz, ele achava que aquele dinheiro — cerca de quatro salários mínimos — seria suficiente para que as duas se virassem em Santos e não precisassem passar por necessidades.
Algum tempo depois do término do primeiro semestre da faculdade, Fabiana conseguiu uma vaga de atendente na biblioteca da UniSan e passou a trabalhar todas as manhãs e tardes, dando suporte para os alunos de várias disciplinas que entravam lá procurando livros e artigos de todos os tipos. Embora não fosse o seu trabalho principal, ela também ajudava no cybercafé instalado no interior do local, servindo os pedidos e auxiliando com o acesso à internet aos alunos.
Beatriz, por sua vez, não tinha tanta experiência com xerox e fotocópias, mas conseguiu um emprego na gráfica universitária que ficava instalada dentro do campus da UniSan e que lhe pagava um salário mínimo [1] para que ela trabalhasse ali de segunda à sexta, das oito às dezessete horas.
— O último atendente que eu tinha era um folgado — queixou-se o dono da gráfica, um senhor de cinquenta e tantos anos, calvo e de barriga proeminente, no dia da entrevista de Beatriz. — Ficava ouvindo música com seus fones o dia inteiro e ainda usava o meu escritório lá atrás pra dormir depois do almoço, quando eu me ausentava da gráfica.
Beatriz o ouvia atentamente, usando uma roupa social alinhada e com as duas mãos sobre o colo. Estava sentada de frente para a mesa do gorducho, dentro do escritório do estabelecimento. Nunca tinha sido entrevistada antes e não sabia bem como se comportar.
— Tem alguma experiência com computadores, impressoras ou máquinas de xerox? — perguntou-lhe ele, curioso.
— Nunca mexi com máquinas de xerox, mas fiz um curso de informática há algum tempo. Sei mexer bem com qualquer software e me viro com impressoras também.
Ele estava com o currículo da garota em mãos e podia conferir o que ela lhe dizia. Chamou-lhe a atenção também os inúmeros cursos extracurriculares que ela tinha relacionado no documento e quão preparada ela parecia estar para uma carreira administrativa.
— Vou te mostrar como operar as impressoras e a xerox. Você me parece uma moça bem inteligente. Tenho certeza que não vai ter problema algum em aprender rápido o que quer que seja.
— Quer dizer que... o emprego é meu?
— Esteja aqui à minha porta amanhã, às sete e meia. Vou lhe dar uma chance. Não faça com que eu me arrependa.
Como previsto, Beatriz não teve qualquer dificuldade em aprender a manusear as impressoras disponíveis na gráfica e, em poucas semanas, ela dominava até mesmo a plotter, que as turmas de Arquitetura e Urbanismo da UniSan solicitavam bastante o uso devido às suas plantas baixas e projetos diversos que necessitavam de impressões maiores do que o padrão.
Atraídos pela beleza sem igual da moça paulistana atrás do balcão, a movimentação da jovem clientela do local duplicou em pouco tempo, e não eram raras as paqueras e convites diversos que ela recebia enquanto executava de maneira muito competente o seu trabalho diário. Alguns daqueles contatos chegavam quase ao nível de assédio descarado, mas ela logo aprendeu a ignorá-los, bem como colocar em prática o que o seu velho chefe sempre lhe pedia:
— Seja simpática e agradável. Mas, se o cliente quiser avançar o sinal ou ganhar vantagem em cima de você, saiba ser dura e justa, sem nunca tirar o sorriso do rosto.
Para Fabiana, a adaptação na biblioteca da faculdade foi ainda mais rápida. Em pouco tempo, ela já havia dominado o uso simplificado do sistema de cadastramento computacional do local e aprendeu facilmente a organizar as inúmeras estantes de publicações da instituição por ordem alfabética, por temas e por autores.
De um modo geral, o ambiente era muito silencioso e tranquilo na maior parte do dia. Ficava mais agitado e movimentado durante a tarde, por conta da saída dos alunos do período matutino da faculdade. Alguns deles costumavam se encontrar na cafeteria da biblioteca para ler, usar os computadores do cybercafé ou realizar trabalhos em grupos. Durante esse período, a ruiva e o seu colega de trabalho, Paulo, eram bastante requisitados no sentido de atender os mais variados pedidos dos universitários, e só voltavam a ter paz no fim da tarde, quando ela, então, já começava a se preparar para ir até o campus de Arqueologia e assistir as próprias aulas.
Ainda no primeiro semestre de curso, Beatriz e Fabiana tiveram que formar um grupo com outras pessoas da sala devido a um trabalho de Antropologia que precisavam fazer, foi quando conheceram Moacir e Isabela. Desde aquela época, o rapaz já se mostrava bastante bem-humorado e tinha as melhores sacadas cômicas em meio aos assuntos sérios que os professores abordavam nas aulas. Embora tivesse alguns desafetos entre os mais de vinte e cinco colegas de turma — justamente por ele ser engraçado em excesso —, a grande maioria dos futuros arqueólogos gostava dele.
Isabela era conhecida como a "patricinha" da turma por conta das roupas caras de grife que usava no dia-a-dia da universidade. Era nascida e crescida em Santos e o pai era um importante engenheiro ambiental que trabalhava na Petrobrás. Jamais repetia um modelito que fosse, e até mesmo os pares de brincos eram sempre diferentes durante os cinco dias da semana. Apesar de transparecer um ar esnobe e distante dos demais plebeus, era uma garota extremamente simples que gostava muito de fazer novas amizades.
Algum tempo depois, Fabiana conheceu Sandra na biblioteca da universidade. As duas nunca sequer tinham trocado um "boa noite" dentro da sala em que estudavam juntas há vários meses, mas depois que a garota morena precisou de ajuda para encontrar um livro sobre Civilizações Maias num dos corredores frios do local onde a ruiva trabalhava, as duas passaram a conversar constantemente durante os intervalos. Em pouco tempo, ela também se aproximou dos demais amigos do grupo e não demorou a criar laços de amizades com todos eles.
Judite foi a última a realmente ser integrada ao conjunto devido à sua timidez. Desde o começo do semestre, vivia sempre isolada pelos cantos da classe e quase nunca se ouvia a sua voz, mesmo quando os professores direcionavam perguntas voltadas à turma cujas respostas ela sabia. Era extremamente focada nos estudos, além de observadora, e só foi ter alguma interação com alguém da sala quando o professor de Sociologia obrigou a todos formarem duplas para a realização de uma prova dissertativa aplicada por ele. Na ocasião, quem resolveu juntar as carteiras da classe com ela foi a falante e expressiva Sandra que, pouco depois, simpatizou com a paulistana devido à sua incrível sapiência.
— Ei, Juju... eu posso te chamar de "Juju"?
A outra fez que sim, sorrindo.
— Por que você não vem pra praia com a gente no final de semana? A Isa, aquela bonitona ali vestindo Gucci — e a morena apontou para a garota caucasiana que usava um conjunto branco de saia e blusa da marca citada, a uns oito metros de distância delas no pátio central da faculdade. —, tá organizando um fim de semana com a galera na casa de veraneio dos pais dela. A gente vai pra Praia do Gonzaga na sexta à noite e só volta no domingo à tarde. Eu vejo que você tá precisando pegar um solzinho mesmo — e apontou a pele extremamente clara do braço da garota, antes de dar um risinho debochado. — Se você quiser, pode mandar uma mensagem no meu Facebook que eu respondo na mesma hora. Vai ser muito legal se vier com a gente. Pode ter certeza!
O fim de semana na casa de praia dos Ferreira Goulart foi o primeiro em que todos eles estiveram juntos, e também um dos mais divertidos naquele primeiro ano de faculdade. O país ainda estava em polvorosa devido aos jogos da Seleção Brasileira de futebol masculino na África do Sul, e o litoral sul paulista estava bastante agitado durante aquele mês de julho, por ser considerado um período de férias estendidas.
Beatriz e Fabiana economizavam tudo que ganhavam para pagar as contas do apartamento e os gastos cada vez mais crescentes com o material da universidade. Exatamente por isso, não costumavam se dar ao luxo de sair muito para se divertir na cidade litorânea. Quando o convite para o fim de semana na praia surgiu, ambas chegaram a pensar em declinar, mas uma acabou convencendo a outra de que precisavam desanuviar um pouco a cabeça depois de um semestre tão atribulado.
— E, depois — comentou Fabiana. —, é só um final de semana. Não vamos ficar endividadas se comprarmos duas águas de coco ou um picolé na praia, não é mesmo?
Beatriz acabou concordando com ela. Foi até o armário de roupas que dividiam, deu uma boa olhada numa das gavetas mais abaixo e constatou que não tinham roupas de banho para usar.
— Precisamos arranjar uns biquínis urgentemente!
[1] Nessa época, no Brasil, o valor do salário mínimo estava fixado em R$ 545,00.
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